14 de dezembro de 1972
"A representação teatral de ações simultâneas não foi invenção do nosso tempo, ao contrário do que poderão pensar a pessoas inclinadas a acreditar que o passado terá sido pouco mais do que um espesso casulo ou um ovo de trevas. Um palco que hoje se estrutura em vários níveis e planos, e onde os atores que gesticulem e falem em articulação ou não com outros atores, repete mistérios medievais e representações mais recuadas ainda.
Tudo isto são banalíssimas verificações, certamente o pretexto adequado a uma reflexão anacronicamente moralista, pois se trata, como anuncia o título, de ver o mundo como um palco imenso de ações simultâneas, muitas delas decorrentes umas das outras, outras ainda marcadas pelo absurdo dos contrastes. Também a reflexão não terá nada de original. Este modo de ser do mundo é o responsável pela multidão de misantropos que arrastarão a vida numa áspera derrota, recusando-se a ser peso na balança e cúmplices no absurdo. Infelizmente para eles o mundo inclui-os na sua grande máquina misturadora: tudo é gente transportada nos remoinhos movediços da História, girando ao parecer no mesmo lugar, e contudo avançando no fluido inapreensível do tempo. Talvez seja a insensível fricção desse fluido que envelhece os homens como a água que corre sobre as pedras, as desgasta, as reduz a lâminas, a areia, e, por fim a átomos invisíveis...
Revertamos, porém, ao ponto: o mundo é, evidentemente, um palco imenso de ações simultâneas, de que partem três homens para a Lua, fortes de ciência e técnica, e onde centenas de outros homens se esforçam humildes por tomar lugar numa carruagem de metropolitano, num autocarro, num elétrico, num simples táxi, se possível... E isto para só falarmos no angustiante, mas no entender de muita gente pitoresco, problema dos transportes, porque se contemplarmos o plano da moral comezinha veremos cinquenta religiões, entre pequenas e grandes, difundirem por todos os meios palavras de paz, enquanto as guerras metodicamente vão fazendo pela vida... e pela morte. Repare-se também no presidente Thieu do Vietname do Sul, que benevolamente condescende em tréguas de Natal, sob condição (ou pouco menos) de que a guerra prossiga depois desse breve intervalo que provavelmente nem bastará para enterrar decentemente os mortos. Veja-se, para não sair daquelas partes do mundo, como um povo tem vindo a ser literalmente sangrado há dezenas de anos, não obstante o clamor de protesto que a todas as horas se levanta das nações. Atente-se nos altíssimos e luxuosos edifícios de cujos terraços quaisquer honestos olhos distinguirão o vexame dos bairros de lata, agora cosmopolitamente rebatizados como bidonvilles. Tome-se a medida do conforto e veja-se como ela se recusa a assentar no corpo de quem nasceu sobre estrelas malévolas.
Esta enumeração não acabaria nunca, mesmo que pretendêssemos dedicar-lhe as colunas inteiras do jornal. O teatro do mundo é realmente grande e capaz de conter a multiplicação de todas as disformidades e injustiças, sobre a capa pacificadora de uma resignação infinita que se exprime na desolada verificação de que o mundo já assim era quando nascemos, razão bastante boa para que aos olhos de muita gente assim deva continuar... Entretanto, neste teatro absurdo o pano vai caindo, para cada um de nós, na altura devida. É uma espécie de roleta russa em que todos acabaremos por ser alvejados. Em todo o caso, mesmo sem misantropia excessiva, haveremos de convir que o mundo assim organizado merecia bem que o pano caísse de vez. Universalmente. Tranquilizemo-nos, porém: o homem é o animal mais resistente da Terra, porque se nutre de um a alimento invisível chamado esperança.
in, "As opiniões que o DL teve", 1.ª edição de 1974
14 de Dezembro de 1972
Edição Porto Editora, edição de 2014) páginas 74 a 76
Sem comentários:
Enviar um comentário