É sempre uma enorme satisfação poder divulgar o trabalho dos Saramaguianos espalhados pelo mundo, aqui deixo mais uma prova de uma opinião e análise sobre o "Ensaio sobre a Cegueira".
E o Brasil sempre tão perto e acarinhando o legado de José Saramago.
Um enorme agradecimento ao Elenilson Nascimento!
A análise do blogger Elenilson Nascimento, aqui em
"Minha resenha sobre o livro "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago. "Talvez, ainda hoje, o preconceito com a obra de Saramago seja por causa do gesto de total lucidez, mesmo na loucura, a rejeição sumária a todo o sistema do mais do mesmo que ai está. Pode-se concordar ou não. A questão nos seus livros não é ideológica, mas literária. Uma curiosidade: ao longo de sua vida, Saramago resistira em ceder os direitos sobre seus livros para o cinema." Confira aqui: http://cabinecultural.com/2016/10/20/literatura-ensaio-sobre-a-cegueira-jose-saramago/
fonte: Cabine Cultural/UOL
#LiteraturaClandestina #Saramago"
“O autor português expressa os valores sociais que quer condenar como a crueldade, o egoísmo, a indiferença, o consumismo e a competição, que fazem com que os cegos estejam “sempre em guerra”, mas exalta os valores que pretende que prevaleçam como o respeito ao outro, a dignidade, a coragem, a solidariedade, e a convivência…”
Por Elenilson Nascimento
Sempre tive as minhas dificuldades com Saramago, autor português comunista que, quando vivo (*faleceu em 2010), era atuante, incentivador de cultura e voraz leitor, mas não pelo seu trabalho, afinal sempre achei eficaz as suas descrições do caráter humano, porém até hoje não gosto da maneira como ele organizava os seus textos: parágrafos gigantes, sem pontuação, sem travessões para separar os diálogos e afins. Contudo, a minha admiração com relação à sua vida foi bem maior do que as minhas limitações e preconceitos. Sim, eu tinha muitos preconceitos com relação ao que eu achava ser uma falta de cuidado com o texto, mas que, com o tempo, aceitei como sendo uma técnica de escrita bem particular do autor. Lembrando que se fosse eu que enviasse um livro assim para os editores brasileiros, na sua maioria excludentes e corporativistas, todos me reprovariam sem pensar duas vezes e ainda iriam me chamar de analfabeto. Pois bem…
“Ensaio Sobre a Cegueira” é um livro difícil para quem não está acostumado com o português de Portugal, além das barreiras já citadas, mas a história é fascinante e eu já tinha lido “História do Cerco de Lisboa”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”, três livros maravilhosos da obra do autor. Aí abrir o “Ensaio…” em uma página qualquer e me deparei com a frase: “O medo cega… são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”. Pensei: “Tenho que comer logo este livro!”. Mesmo porque eu queria fazer algum tipo de comparação com o filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. E tudo começa quando um homem, a caminho do trabalho, dentro de um carro, parado em um sinal de trânsito, espera pacientemente o sinal ficar verde. Sua espera é interrompida por uma “nuvem branca” que cobre toda a sua visão. Este é o primeiro que fica cego. No meio do desespero, ele é levado para casa por um desconhecido que, aproveitando da sua incapacidade física, rouba o seu carro. Tudo indica ser um vírus desconhecido transmitido pelo ar, pois, mais tarde, a mulher deste primeiro cego se contamina; e Saramago começa a apresentar ao leitor os demais personagens: a rapariga de óculos escuros que quando fazia um programa se vê “dentro de um pote de leite”; o médico, oftalmologista para ser exato; a mulher do médico; o velho da venda preta; o farmacêutico que cantou a rapariga de óculos escuros na farmácia; o rapazinho estrábico, além do ladrão do carro do primeiro cego. E queria ressaltar também um personagem pouco citado e que só apareceu quase no final da história, mas que achei muito pertinente: o cão das lágrimas.
Jorge Amado e José Saramago na porta da Fundação Jorge Amado,
Pelourinho, Salvador – BA: o português daria o Nobel ao brasileiro
(foto: divulgação/Fundação José Saramago)
Engraçado como Saramago optou em não citar nomes, mas adjetivá-los. No decorrer da trama, a tal “cegueira branca” vai se espalhando pelo mundo inteiro, sem controle e sem nenhuma explicação, atingindo todas as pessoas, sem distinção de raça, idade, crença religiosa, opção sexual. Mas a única isenta de tal sofrimento é a mulher do médico – sem nenhuma explicação aparente por parte do autor, vale ressaltar. Diante da epidemia sem controle, o governo resolve colocar em quarentena todas as pessoas que ficaram cegas, sob condições subumanas. Uma vez lá dentro, não há nada o que fazer a não ser tentar sobreviver. Para isso, os protagonistas se unem e tentam sobreviver em um lugar onde pessoas mais se parecem com animais. “Mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos”, escreveu Saramago. Na camarata, como o autor chama a prisão, que na verdade é um velho sanatório, o ser humano se rebaixa ao nível de um animal irracional. Fazem suas necessidades em qualquer lugar, matam sem saber exatamente o motivo, estupram mulheres apenas pelo prazer de comandar alguém ou alguma coisa (*uma das cenas mais chocantes), comem a carne de seus amigos mortos… Enquanto isso, do lado de fora, cada vez mais pessoas vão ficando cegas. Os governadores, os presidentes, os funcionários públicos, os mendigos, os religiosos… todos. E o caos se forma no mundo!
Porém, num incêndio, sem explicações mais detalhadas, os cegos se vêem livres daquela prisão, descobrem que todo o mundo – isso mesmo, o mundo todo está cego. Não há mais quem enxergue nada, há não ser o “mar de leite”. “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”. Fora da prisão, o desafio agora é sobreviver do lado de fora da quarentena. A mulher do médico, a única que pode ver e guiá-los, descreve as cenas aterradoras: corpos em estágio avançado de putrefação espalhados pela cidade em meio a fezes, ratos, lixo e pessoas vivas brigando pelos motivos mais diversos. A luta agora não é por um emprego, por dinheiro ou por sucesso, e sim por comida. “As ruas estão cheias de cegos que andam à cata de comida. Entram e saem das lojas, de mãos vazias entram, de mãos saem quase sempre, depois discutem entre eles (…) O lixo nas ruas, que parece ter-se duplicado desde ontem, os excrementos humanos, meio liquefeitos pela chuva violenta os de antes, pastosos, saturam de fedor a atmosfera, como uma névoa densa através da qual só com grande esforço é possível avançar”.
Impossível não se impactar com a cena. Não existe meio de transporte, telecomunicação ou qualquer coisa do tipo. Nem energia elétrica. As casas agora não são de ninguém, e sim de quem invadir primeiro. É o degrau mais baixo que um ser humano pode chegar. “A cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. Quando enfim, o grupo consegue um abrigo na casa do primeiro cego, que já estava ocupada por um escritor, Saramago parece querer mostrar a vergonha dos seres humanos perante suas próprias imperfeições. A cena dos cegos tirando suas roupas sujas para tomar banho e mesmo cegos com vergonha de se despirem na frente uns dos outros ficou simplesmente perfeita. “Se quiserem, posso pôr cada um de vocês numa parte da casa”, respondeu ironicamente a mulher do médico. “A cegueira é a providência dos feios…”
Anotação enviada por Saramago aos amigos mais próximos, na tarde de 8 de agosto de 1995, anunciando que tinha acabado de escrever “Ensaio sobre a Cegueira”.
(imagem: divulgação/Fundação José Saramago)
Saramago também brinca com a importância dos livros: “Agora ninguém os pode ler, portanto é como se não existissem…” O autor neste “Ensaio Sobre a Cegueira” nos faz refletir sobre nós mesmos. Sobre nossos medos, nossas vergonhas, nossas inseguranças, nossos preconceitos. Através de uma cegueira física, ele ilustra a cegueira da nossa própria alma. Como se os nossos corações estivessem como aquela cidade, como se estivéssemos nos transformando, cada vez mais rápido, a um estado social caótico. Mas o autor também sinaliza para uma solução: “Organizando-se, organizar-se já é, de certa maneira, começar a ter olhos” – exatamente como o grupo de protagonistas no livro. “O mundo está cheio de cegos vivos (…) Morremos de doenças, de acidentes, de acasos. Morreremos de cegueira e de cancro, de cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida (AIDS?), de cegueira e de enfarte… (…) O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver…”
Quase no final do livro, o médico e a sua mulher chegam numa igreja onde a mulher do médico diz que parecia ter alucinações, pois o homem pregado na cruz tinha uma venda branca nos olhos, além de todas as outras imagens de santos também tinham vendas nos olhos: um homem com um livro aberto com um menino pequeno sentado, um velho de barbas compridas com três chaves nas mãos, um homem com o corpo cravejado de flechas e todos os outros santos tinham os olhos tapados. Só havia uma mulher que não tinham os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. “A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.
O final do livro não vou contar aqui. Mas garanto é surpreendente. E como todo bom livro, “Ensaio Sobre a Cegueira” também deu origem à um roteiro cinematográfico, cujo diretor, como já foi citado, foi um brasileiro que pegou toda a essência do livro. Em suma, pegue o livro e depois veja o filme. Ou o oposto, pois esse é um dos melhores livros da minha estante e acredito que vai arrebatar qualquer um. “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”. Estou louco agora para pegar o “Ensaio Sobre a Lucidez”, que também começa com um evento insólito. Num dia eleitoral, a maioria da população sai de casa para abarrotar as urnas com votos em branco. O sistema político entra em colapso, mas dessa vez o que se segue não é uma queda na loucura e na bestialidade. Ao contrário em o “Ensaio Sobre a Cegueira”, as pessoas neste livro são tomadas uma inquebrantável sensatez, que lhes permite manter as engrenagens funcionando.
Talvez, ainda hoje, o preconceito com a obra de Saramago seja por causa do gesto de total lucidez, mesmo na loucura, a rejeição sumária a todo o sistema do mais do mesmo que ai está. Pode-se concordar ou não. A questão nos seus livros não é ideológica, mas literária. Uma curiosidade: ao longo de sua vida, Saramago resistira em ceder os direitos sobre seus livros para o cinema. No entanto, em 2008, com a adaptação do “Ensaio Sobre a Cegueira”, ele ficou tão feliz com o resultado que ficou muito emocionado na pré-estreia – procure no YouTube. O filme obteve mundialmente críticas mistas, dividindo opiniões. O escritor disse a Meirelles “estar tão feliz de ter visto o filme como estava quando acabou de escrever o livro”. Em outra declaração, Saramago disse que “agora conhecia a cara de suas personagens”. Em suma, Saramago escreveu uma obra maravilhosa, não foi à toa que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura por este livro. (“ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”, de José Saramago, romance, 310 págs, 19 edição, Cia. das Letras – 2001)
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina
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