Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 14 de janeiro de 2017

"Ángel González" - Revisitar "Outros Cadernos de Saramago" (14/1/2009)

Revisitar "Outros Cadernos de Saramago"
http://caderno.josesaramago.org/21658.html

Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2009

"Ángel González"
"Há um ano, precisamente no dia 12 de Janeiro, num hospital de Madrid, morreu Ángel González. Hospitalizado eu próprio em Lanzarote por causa de uma doença similar à que o levou, atendi a chamada telefónica de um jornal que queria publicar umas palavras sobre a infausta notícia. Em termos que o meu interlocutor mal deve ter ouvido, tão intensa era a minha emoção, disse que havia perdido um amigo que era, ao mesmo tempo, um dos maiores poetas de Espanha. Em sua lembrança deixo hoje aqui um dos seus poemas, que traduzo do espanhol. ASSIM PARECE Acusado pelos críticos literários de realista,os meus parentes, em troca, atribuem-me o defeito contrário; afirmam que não tenho sentido algum da realidade. Sou para eles, sem dúvida, um funesto espectáculo: analistas de textos, parentes da província,pelos vistos, a todos defraudei que lhe vamos fazer! Citarei alguns casos: Certas tias devotas não se podem conter, e choram ao olhar-me. Outras muito mais tímidas fazem-me arroz doce, como quando eu era pequeno, e sorriem contritas, e dizem-me: que alto, se o teu pai te visse…,e ficam suspensas, sem saber que mais dizer. No entanto, não ignoro que os seus gestos ambíguos dissimulam uma sincera compaixão irremediável que brillha humidamente nos seus olhares e nos seus piedosos dentes postiços de coelho. E não são só elas. De noite a minha velha tia Clotilde regressa da tumba para agitar diante da minha cara os dedos como sarmentos e repetir em tom admonitório: De beleza não se come! Que julgas que é a vida? Por sua parte, a minha falecida mãe, com voz delgada e triste, augura para a minha existência um lamentável final: manicómios, asilos, calvície, blenorragia. Eu não sei que dizer-lhes, e elas regressam ao seu silêncio. O mesmo, igual que então. Como quando era pequeno. Parece que a morte não chegou a passar por nós."

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