"O ignorado aniversário da morte de Saramago" de Marco Aurélio Abrão Conte[1]
O trabalho que se publica pode ser consultado aqui
em http://www.jornalmetropole.com.br/o-ignorado-aniversario-da-morte-de-saramago/
“Medo da morte não consigo ter
Mas outros, mais humanos e banais
Medos que a gente tem, mesmo sem crer
Como o medo que eu tenho de morrer
Só por querer viver um pouco mais.”
Manuela de Freitas, a partir de declarações de José Saramago
“Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.”
Álvaro de Campos
"Que Fernando Pessoa profetizasse, através de seu heterônimo engenheiro, a escassa e intermitente memória a que são reduzidos os mortos, não é de espantar, dada sua aguda percepção da alma e do comportamento humanos. Também não é espantoso, conquanto a intertextualidade seja genial, que José Saramago (1922-2010), propondo-se a revisitar o mito pessoano, em 1984, com o romance O ano da morte de Ricardo Reis, fizesse com que seu protagonista ouvisse do autor de Mensagem, recém-falecido na diegese ambientada em 1936, que, imediatamente após a morte, o homem outra vez atravessaria emblemáticos nove meses, nos quais deveria habituar-se a “ter estado e já não estar” – definição de morte dada pelo Nobel de literatura.
No dia 18 de junho passado, o aniversário de morte de José de Sousa Saramago, talvez sufocado pelos caóticos acontecimentos na esfera política, foi simplesmente ignorado pelos veículos midiáticos brasileiros. Mesmo em Portugal, país onde o escritor passou setenta anos de sua vida antes de se mudar para a ilha canária de Lanzarote, poucos foram os jornais que relembraram o autor falecido há sete anos. Ao que parece, apenas a Porto Editora, que publica a obra do escritor em seu país de origem, e a fundação que leva seu nome, presidida por sua viúva, a jornalista espanhola Pilar del Río, promoveram eventos em homenagem ao romancista: na Casa dos Bicos, em Lisboa, sede da Fundação José Saramago, foi apresentado o concerto-teatral Levantei-me do Chão, Lado B, inspirado no primeiro sucesso do escritor; e, na Feira do Livro de Lisboa, no espaço da editora – que, na mesma semana, lançou Claraboia, romance escrito em 1953 que permaneceu inédito até a morte do escritor –, o autor e sua obra foram homenageados.
Segundo Harold Bloom, Saramago foi um dos mais importantes escritores da literatura universal do século XX. Conquanto tenha sido um escritor tardio, publicou, aos 25 anos de idade, o romance Terra do Pecado – assim chamado por razões comerciais, haja vista que o título por ele escolhido era A viúva –, o qual rejeitou até os últimos anos de sua vida, quando foi convencido por Zeferino Coelho, da Editorial Caminho, então responsável pela publicação de sua obra, a relançar o livro. Neste, que nem de longe lembra a marcante prosa saramaguiana a que fomos apresentados na década de 1980, já estavam presentes, mesmo que de forma embrionária, alguns dos maiores temas de sua posterior produção: a incoerência das religiões e a força da mulher, retratados pelo Dr. Viegas e pela empregada doméstica Benedita. “Felizmente”, como escreveu, o jovem não obteve sucesso e passou quase vinte anos sem nada publicar, dedicando-se às mais diversas profissões, como a de serralheiro mecânico e a de funcionário público numa agência de seguros, até tornar-se conhecido na sociedade lisboeta por sua atuação na Editorial Estúdios Cor e nos vários jornais para os quais escreveu. No prefácio da reedição da obra, o autor diz que não sentia ter algo relevante para escrever e, portanto, resistiu à vaidade de publicar apenas pelo prazer da publicação.
A partir de 1966, o autor publica os livros que seriam responsáveis por sedimentar seu estilo literário, mesmo que a literatura fosse então um trabalho secundário em sua vida: poemas, crônicas, traduções e artigos jornalísticos. Em 1975, no entanto, ao ver-se desempregado – consequência da contrarrevolução de novembro – e desamparado pelo Partido Comunista Português, para o qual sempre militou, decide dedicar-se exclusivamente à escrita e publica, dois anos depois, Manual de pintura e caligrafia, chamado em seu subtítulo de ensaio de romance, no qual o protagonista H., pintor insatisfeito com os rumos de sua produção e de sua vida, decide investir na carreira de escritor. Talvez o mais autobiográfico dos livros do autor – ressalte-se que é nesta obra que Saramago afirma que “tudo é autobiografia” –, o romance evidencia uma escrita madura, decidida, irônica e sensível, revelando que, sim, José teria algo a dizer a partir de então.
E disse! Das mais diversas e criativas formas. Em 1980, auxiliado pelas vozes alentejanas, o escritor vaza Levantado do Chão no revolucionário estilo que o tornaria célebre. Subvertendo a pontuação, transpondo traços da oralidade à prosa romanesca e impondo ao leitor uma simbiose entre o discurso direto e indireto, o livro fora imediatamente aclamado em seu país, criando uma expectativa em torno do que seria daquele escritor, que iniciava uma carreira num momento da vida em que, como disse Gabriel Garcia Márquez, seu dileto amigo, “a maioria dos escritores já estão a deixar de escrever”. Dois anos mais tarde, com Memorial do Convento, o autor consolida seu estilo e influência na literatura, traçando um retrato do reinado de D. João V corroído por sua ácida ironia, dando voz aos que, historicamente, não a tiveram, tentando evitar que a grandeza do feito, o Palácio Nacional de Mafra, ofuscasse a vital importância dos que o construíram .
José Saramago, veemente crítico da União Europeia, usa de sua Jangada de Pedra para estimular a reflexão acerca do que representariam os dois ibéricos países no conjunto de uma Europa historicamente conduzida por interesses econômicos das nações mais potentes. Ao propor que Portugal e Espanha descolem-se geograficamente do velho continente e estacionem entre o Brasil e a África – não coincidentemente, dois territórios já conhecidos e explorados pelos portugueses – o autor evidencia a necessidade de comunicação entre a Península Ibérica e os países de que mais se aproxima culturalmente, como os da América Latina.
O polêmico escritor, propõe, ainda, a revisitação histórica de mitos portugueses – como os de Dom Sebastião e Camões, na peça Que farei com este livro?, e o de Fernando Pessoa no romance de 1984 –, de episódios históricos responsáveis pela formação da contemporaneidade portuguesa – como a própria formação do país, em História do Cerco de Lisboa, em que, narrando a retomada da cidade das mãos mouras, reflete acerca da importância da Igreja Católica e de seus Cruzados na sociedade portuguesa; a Revolução dos Cravos – tão presente no chamado por Horácio Costa de período formativo de sua obra – em A Noite, peça de 1979 – e de pilares culturais da sociedade ocidental – como o controverso OEvangelho segundo Jesus Cristo, cuja retirada do Prêmio Literário Europeu, vinda do então subsecretário de cultura Sousa Lara, leva José e Pilar a mudarem-se para as Ilhas Canárias; e o incendiário Caim, último romance publicado em vida pelo escritor, no qual chega a afirmar violentamente, abdicando das sutilezas de sua conhecida ironia, que “deus é um filho da puta”.
A genialidade de Saramago evidenciou em sua literatura a total fragilidade da condição humana no mundo: a civilização desmantelada, na qual o homem usa da razão para prejudicar seus semelhantes, em Ensaio sobre a Cegueira, poderosa e insólita alegoria da vida contemporânea; o eminente fracasso da democracia – segundo o autor, apenas formal e não substancial – da qual as nações ocidentais se orgulham, em Ensaio sobre a lucidez; a naturalidade da morte, em As intermitências de morte, romance de 2008 em que o autor trata, com invejável bom humor, do fim da vida; a inutilidade da existência, revelada pelo destino do histórico Salomão, morto para que suas patas servissem de porta-guarda-chuvas, em A viagem do elefante; a identidade perdida, alegorizada em O homem duplicado… É imensurável a contribuição do escritor português para a literatura e a reflexão humana.
Desde sua morte, há sete anos, a responsável pela divulgação de sua obra e suas bandeiras sociais – em especial a defesa da Declaração dos Direitos Humanos, foco de seu discurso em Estocolmo quando da recepção do Prêmio Nobel – é Pilar del Río, com quem o escritor dividiu os últimos vinte e três anos de sua vida e por quem nutria – basta que olhemos as dedicatórias de seus livros – verdadeira devoção, tanto é que, ateu convicto e descrente de toda e qualquer metafísica, no documentário José e Pilar, do realizador português Miguel Gonçalves Mendes, ao falar de sua morte, Saramago diz que suas cinzas ficariam sob uma pedra no jardim de sua casa em Lanzarote e diz ter pedido à esposa que, sempre que sentisse sua falta, lhe levasse uma pequena flor, “para que eu saiba que não me esqueceram”. Pilar, “que não deixou que eu morresse”, “minha casa”, “meu pilar”, é o catalisador de um raríssimo momento em que o escritor admite para si uma continuidade pós-morte: saber de algo, mesmo depois de “já não estar”. No mesmo filme, quando da filmagem da inauguração de sua fundação, José Saramago diz ter respondido, ao ser perguntado a respeito das ações que esperava por parte dela, Pilar, após sua morte: “continuar-me”, ao que a jornalista vem cumprindo – passou a publicar a obra do autor pela Porto Editora para que, segundo disse, tivesse mais alcance e melhor tratamento; discursou em diversas e importantes ocasiões a respeito dos temas por ele tratados em seus romances; e dedica-se exclusivamente à fundação da qual é presidenta – termo que ambos defenderam.
Saramago, mesmo depois de morto, permanece atual num ocidente cada vez mais desumanizado. Sua obra, pungente e vigorosa, pode/deve ser lida como um preciso retrato de uma sociedade guiada por escusos interesses de devassas instituições políticas, religiosas e, sobretudo, econômicas – faz-se possível, por exemplo, analisar a postura da imprensa no impedimento de Dilma Rousseff à luz da peça A Noite, a atual condição política brasileira sob as reflexões de Ensaio sobre a lucidez, ou o drama dos refugiados sírios a partir do Ensaio sobre a cegueira. Pena é que, culturalmente, as mídias, e consequentemente seus consumidores, habituaram-se a relembrar célebres mortos apenas quando de suas datas mais esteticamente agradáveis: como se dará em 2020, ano em que sua morte completará os redondos 10 anos, ou em 2022, centenário de seu nascimento. Álvaro de Campos tinha razão. Os homens, em sua maioria, perderam-na. José Saramago foi um grito de alerta em relação a esta perda, mesmo que hoje seja ouvido apenas aniversariamente pelas grandes multidões. Serve de consolo, no entanto, que a produção saramaguiana, esta sim, siga imortal e aja como uma tentativa de resgate das consciências humanas num momento em que elas são cada vez mais necessárias.
“Um dia desaparece o Sol… e acabou. E o Universo nem sequer se dará conta de que nós existimos. O Universo não saberá que o Homero escreveu a Ilíada”.
[1] Graduando em Letras na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara.
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