Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 1 de março de 2018

"5 coisas que você pode aprender com o amor de José Saramago e Pilar del Rio" por Milena Buarque para o "Huffpost Brasil" (09/06/2017)

A presente crónica pode ser recuperada e consultada aqui
em http://www.huffpostbrasil.com/milena-buarque/5-coisas-que-voce-pode-aprender-com-o-amor-de-jose-saramago-e-pi_a_22100750/

de Milena Buarque Jornalista, escritora, blogueira e pedestrianista (09/06/2017)

"5 coisas que você pode aprender com o amor de José Saramago e Pilar del Rio
São elas: estar no mundo, momento-chave, família, respeito e raízes."


"Cena do documentário 'José e Pilar' (2010), de Miguel Gonçalves Mendes"


José de Sousa, em seu bilhete de identidade informal, conta que talvez tenha sido um dos primeiros casos em que o filho dá nome ao pai: Saramago não é de família, era apenas alcunha e acabou adotado pelo pai depois de ser colocado em José por um ousado funcionário da Conservatória do Registro Civil da Golegã, em Portugal.

E é como um 'bilhete de identidade informal', não só seu, mas também de Pilar del Río, sua companheira, que o livro "José e Pilar" pode ser lido.

Reunindo as entrevistas que deram origem ao documentário de Miguel Gonçalves Mendes (2010), a grande novidade do livro é trazer algumas conversas inéditas, que não foram parar no produto final. Prefaciado por Valter Hugo Mãe, a obra foi publicada em 2012, dois anos após o filme.

Estava em minha estante há um bom tempo, esperando para ser lido justamente pela razão de que teria sido lido de imediato. Explico: cartas e conversas são, para mim, uma enorme tentação. Pode ser que um pouco de minha curiosidade jornalística se converta em bisbilhotices, mas a verdade é que só é possível conhecer de fato um autor quando você se vale de outros meios que não as suas obras. Facetas, pois – diria José Saramago.

Dada a colocar atenção em sincronias – coisa que fariam José e Pilar rirem de mim –, o dia em que termino o livro marca justamente um mês para os sete anos de morte de Saramago (18 de junho de 2010) e, curiosamente, é o mesmo em que vi o documentário anos atrás (a ferramenta de lembranças do Facebook tem a sua utilidade).

A divisão adotada no livro é outro adicional. Com 'capítulos' intercalados dedicados a cada um, é possível visualizar claramente em quais pontos os dois se aproximam e se distanciam. Apesar de Pilar colocar-se como a jornalista e tradutora que ajudou a 'organizar' a vida de Saramago – e sua carreira tardia –, é interessante como o livro nos permite ver um pouco mais dela.

"Participamos da mesma forma de estar no mundo" é o que ela diz a respeito das semelhanças e diferenças dos dois. Acredito que esta frase sintetize, concordando com Pilar, a relação dos dois.

Sem pretensões, as conversas com o diretor Miguel Gonçalves Mendes evidenciam uma confluência de opiniões acerca de variados assuntos: José sereno e Pilar veemente veem da mesma forma a nocividade das relações familiares, o amor, o mundo, a religião, os papéis cívicos e políticos dos jornalistas e dos escritores, a cultura e a morte.

Eles de fato partilham, participam e estão* no mundo juntos. Este seria um dos maiores ideais no amor – até para os dois, tão críticos e avessos à eternidade ou ao destino. É de se entender, claro: encontraram-se quando muito já haviam caminhado pela vida. Ainda assim, para eles, não haveria amor ou vida maior se separados.



Este mesmo estar no mundo é a primeira lição que tiro de José e de Pilar. Compartilho abaixo outros cinco aprendizados desta conversa que travamos os quatro:

2. Momento-chave, por José: Se há um momento na minha vida que é um momento-chave é esse, o momento da decisão: é agora ou nunca que eu vou saber finalmente se sou escritor ou se não sou escritor. E tinha sessenta anos, meu caro.

José Saramago recebeu o Prêmio Nobel de Literatura aos 76 anos. Longe do círculo de intelectuais portugueses, até aquele momento sempre fora tratado com desconfiança e ceticismo – assunto longamente abordado pelos dois em muitas entrevistas.

Quando resolveu escrever, Saramago encontrava-se desempregado. Foi para o Alentejo, para uma unidade coletiva de produção e saiu com um romance. É um dos maiores escritores portugueses.

3. Família, por Pilar: A família é um grupo social. (...) É o grupo social mais perverso que pode haver para o indivíduo. É constituído e passa a existir e nós o mantemos. E eu citava o exemplo de [Bernardo] Bertolucci, que dizia que a primeira mentira que os seres humanos dizem é justamente por culpa da família, o primeiro fingimento, a primeira hipocrisia... Aprendemos a ter uma vida dupla e a sermos diferentes do que queremos ser (...).

4. Respeito e amor, por José: Somos muito respeitadores de cada um de nós em relação ao outro. Isso não quer dizer que não se aprenda com o outro, que não se transmita ao outro algo daquilo que é nosso, e não quer dizer que isso que se transmite não seja incorporado no outro. Pois se eu leio hoje um livro e se esse livro influi em mim, como é que não há de influir a pessoa com quem eu vivo um ano, dois, três, quatro, cinco, dez anos? Mas nem eu me converto no livro nem me converto na outra pessoa. (...) Interpenetramos a toda a hora.

5. Raízes e o mundo, por Pilar: Às vezes se criam raízes, mas onde eu estiver levarei sempre umas tesouras para cortar as raízes. As raízes... cada um vive no lugar onde está neste momento, e as raízes deste dia são cada dia, não estar apegado aos lugares. O mundo é muito grande para apegar-se só e exclusivamente a um lugar.

* Ignorei a morte de Saramago ao escrever este texto, pois ela foi completamente esquecida no decorrer da leitura. Bem, é como se ele seguisse vivo, não? (Mais um comentário para o qual ele balançaria a cabecinha.)

*Texto publicado originalmente no Coletivo We Love.

*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo. Mundialmente, o HuffPost oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

Sem comentários:

Enviar um comentário