Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 8 de março de 2018

Entrevista de Pilar del Río à revista "marie claire" da Globo (02/09/2017)

Entrevista de Adriana Ferreira Silva da revista "marie claire" (Globo Brasil), publicada em 02/09/2017 e que pode ser consultada e recuperada aqui

Pilar del Rio: "Nunca fui 'esposa de José Saramago', muito menos seria 'viúva de'. 
É uma palavra horripilante"

Companheira do escritor português José Saramago, Pilar del Río fala sobre o dia a dia com o Nobel de Literatura em entrevista exclusiva à Marie Claire. Ela também conta detalhes da amizade entre ele e o brasileiro Jorge Amado, que resultou numa troca de correspondências reunida no livro "Com o Mar por Meio - A Amizade de Jorge Amado e José Saramago em Cartas"


Madrid / 2009 

Não há nada que ofenda mais a jornalista Pilar del Río do que ser chamada de “a viúva de Saramago”. “Nunca fui ‘esposa de’, muito menos seria a ‘viúva de’, diz à Marie Claire. “Além disso, é uma palavra horripilante.” A história de amor da espanhola de 67 anos com o único Prêmio Nobel em língua portuguesa, morto em 2010, é, por si só, digna de um livro. Ela conheceu Saramago quando tinha 36 e ele, 64. Procurou-o para dizer o quanto era apaixonada pela obra O Ano da Morte de Ricardo Reis – e, assim, ele se apaixonou por ela. Dois anos depois, estavam casados e nunca mais se desgrudaram. Faziam todas as turnês juntos e ela se tornou sua tradutora para o espanhol e a primeira leitora de todos os livros que vieram a seguir.

Em uma viagem à Alemanha, conheceram o casal Jorge Amado e Zélia Gattai. Começava ali uma amizade que seguiria até a morte do baiano, em 2001. Os detalhes dessa parceria surgem agora em Com o Mar por Meio – A Amizade de Jorge Amado e José Saramago em Cartas (Cia. das Letras, 120 págs., R$ 59,90), que reúne a correspondência trocada entre os dois (com interferências carinhosas de Pilar e Zélia). A obra traz preciosidades, como o texto que o português escreveu quando soube da partida do amigo. Nesta entrevista, Pilar, que preside a Fundação José Saramago, fala sobre a convivência entre os dois e também sobre seu relacionamento com o companheiro de vida. 

MC Como conheceram Jorge Amado?
PR O encontro pessoal foi tardio, na década de 80. O literário, muito anterior. Creio que a primeira vez que nos vimos foi na Alemanha: Jorge Amado estava rodeado de gente e houve um breve intercâmbio de cumprimentos. Depois, em Lisboa, começou o tratamento entre camaradas. Viajaram juntos por diversos países, partilharam iniciativas e conversas.

MC Como era o relacionamento com Jorge e Zélia?
PR Quando nos encontrávamos, era como se o tempo não passasse. Um continuar de uma conversa começada meses antes. Isso é amizade, não é? Sem cerimônias e protocolos.

MC Que boas lembranças tem dos encontros com o casal de amigos?
PR De histórias engraçadas e brincadeiras. Lembro dos sofás que Jorge tinha na casa de Paris: ele dizia que um era primeira classe e o outro, classe turística. Dormi uma siesta uma vez no business. Lembro também da definição que um menino fez de Jorge Amado uma vez, sem saber que ele estava no grupo que caminhava no Pelourinho, em direção à Fundação Jorge Amado. O garoto falou que, naquela casa, tinha vivido um escritor “muito famoso do século 15”, e Jorge disse que isso, sim, era a imortalidade.

MC Como Saramago recebeu a notícia da morte de Amado?
PR José tinha aceitado a ideia de viver num tempo em que Jorge não estivesse, pois ele esteve doente vários anos, e isso fez com que os amigos se habituassem à sua ausência. Mas a notícia foi um golpe. José escreveu sobre ele considerando-o vivo. Preferia pensar que, um dia, o fax, àquela altura pouco usado, voltaria a imprimir uma nota manuscrita com a festiva letra de Jorge Amado.

MC Você viveu mais de 20 anos com Saramago. Como foi recriar a rotina sem ele?
PR Não tenho rotina. Desde o momento em que começamos a vida em comum, sabíamos que, por lei natural, ele morreria antes. Vivemos sempre com a consciência de que cada dia era único. Insisto, sem rotina. Com o que aprendi vivendo assim continuo a viver depois de sua morte: são muitos anos de recordações acumuladas.

MC O que guarda da convivência com ele?
PR A naturalidade da vida sem preconceitos, sem normas que invariavelmente podam a liberdade e os melhores valores da gente.

MC Você não gosta de ser chamada de “a viúva de Saramago”. Acha que, se fosse a senhora a escritora famosa, ele seria “o viúvo de Pilar”? Ou isso é reflexo do machismo?
PR Obviamente é reflexo do machismo e do patriarcado asfixiante em que vivemos. Claro que os homens não são os “viúvos de...”. Mas, além disso, nunca fui “esposa de”, muito menos seria “viúva de”. É uma palavra horripilante. Cada um de nós é o que é, nos definimos por nossas opções, não pela pessoa com quem partilhamos a casa. Essa preguiça mental de reduzir as pessoas ou situá-las de maneira mais fácil é indigna e indignante.



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