Recuperamos artigos de edições antigas. Este foi originalmente publicado na ELLE de outubro de 1988.
Por: Helena Vasconcelos -- Imagem: © D.R."
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em https://www.elle.pt/sem-categoria/30anosellept-jose-saramago-conversa/
José Saramago é um ouvinte atento. Faz perguntas, ri-se, analisa. Almoçamos tranquilamente num restaurante onde todos o conhecem e o tratam com o carinho de quem sente orgulho em recebê-lo. «Coma a carne assada, Sr. Dr., olhe que está muito boa. E tenho aqui um vinho que devia provar.
García Marquéz justificou uma vez a sua amizade com Fidel de Castro dizendo que o que os aproxima é a solidão. Em Fidel, a solidão do poder. Nele, García Marquéz, a solidão da fama. Pergunto a José Saramago se se sente afetado por essa «solidão da fama». Ri-se e parece um pouco impaciente. Sobre a solidão do poder nada sabe, acaba por afirmar. Quanto à solidão da fama, reconhece que não se pode comparar o relativo conhecimento que as pessoas têm de si com o de um personagem como Marquéz.
«Comigo passa-se exatamente o contrário. O facto de as pessoas me reconhecerem, saberem o que faço,. Quem sou, tem-me dado, pelo menos até agora, um sentimento de comunhão, de ligação com os outros. Gosto que me procurem, que falem comigo do que leram, do efeito que isso lhes provocou. Agrada-me essa sensação de companhia».
Às vezes torna-se cansativo porque lhe dizem normalmente as mesmas coisas, os sentimentos não variam muito, as reação menos ainda, e ele acaba por dar por si a repetir-se, o que é desagradável. «É mais uma sensação de vazio do que de solidão. As palavras deixam de ter sentido e só me apetece o silêncio, o que é impossível, porque se as pessoas me procuram é porque me querem ouvir».
A relação com os outros é então uma questão de moral? A resposta é tranquila: «Acho que sim. Há uma relação de afecto entre quem escreve e quem lê. E o afecto não pode ser desiludido. Não quero dizer que tenha de ser deliberadamente cultivado, porque isso seria mais uma questão de relações publicas do que um afecto real. As pessoas aproximam-se, vêm de corpo inteiro e um autor, seja ele qual for, não pode dizer não. Diz não em nome de quê? Da sua tranquilidade, da sua comodidade? Então não se exponha.»
Falamos das suas recentes viagens ao Brasil, à Venezuela e à URSS, conta-me episódios da «hiper-congressite» que as acompanha e continuaremos a conversar dias depois em sua casa numa confortável divisão repleta de livros. Nas paredes, obras de amigos e uma gravura de Ilda Reis, que foi mulher de Saramago. Os objetos são oriundos dos quatro cantos do mundo. Uma fotografia da atual mulher, Pilar, reina sobre a atmosfera. Há um aparelho de alta-fidelidade, uma televisão, e um vídeo.
Não sei como é o seu método de trabalho. Os livros demonstram ser o produto de uma pesquisa, contêm uma enorme quantidade de dados. Há amigos meus, escritores, que perguntam como é que escrevo numa maquina máquina que é esta velhíssima, tem 40 anos. «Há pessoas que me dizem assim, principalmente em relação ao Memorial do Convento: ‘Mas você deve ter passado anos na Torre do Tombo, a investigar!’ E parece-me que as pessoas vêem mesmo uma torre enorme, cheia de papéis e livros como a Biblioteca do Eco ou o Labirinto do Borges e eu lá no meio daquela confusão toda a investigar, a pesquisar. Não, não é nada disso. Por exemplo, em relação ao século XVIII: elabora uma bibliografia. Tanto textos da época como textos contemporâneos sobre o assunto. Depois, a partir do geral, vou tentando chegar ao pormenor. Vou tentando estreitar, especializar o conhecimento. Tenho que saber onde parar, evidentemente, de contrário, sou submergido pelos factos acumulados. É o que chamo determinar o sentido material. E acho que sei sempre menos do que quero que os outros acreditem. Trata-se simplesmente de encontrar as coisas onde elas estão. É só preciso saber procurar. A partir daí, tenho o fulcro da história. No Memorial há um capítulo de cerca de vinte páginas sobre o transporte de pedra da varanda do Convento. Eu tinha apenas três ou quatro informações, a saber: peso da pedra – 30 toneladas. Distância entre Pêro Pinheiro e Mafra – 15 Km. Duração do tempo de transporte – oito dias. 600 homens para esse transporte. E 200 juntas de bois. A partir destes dados e com um pouco de imaginação o resultado foram vinte páginas. Quanto ao Ano da Morte de Ricardo Reis, para dar outro exemplo, há detalhes curiosos. A crítica, principalmente a estrangeira, fez notar que o tempo meteorológico desde a chegada de Ricardo Reis a Lisboa, é um tempo de chuva, e isso mantém-se por mais umas semanas. A crítica toma isso como uma deliberação do autor para criar uma atmosfera pesada, cinzenta. Pois eu lamento muito mas não tenho nada a ver com isso. É um facto que esse Inverno em Lisboa, e está escrito na imprensa da época, foi anormalmente chuvoso. Tive a preocupação de saber o tempo que fazia, quase dia-a-dia. Limito-me a relatar os factos. Naturalmente não tenho tanta imaginação como parece!»
Mas ele foca o seu interesse nas pessoas. Ao contar a história dos personagens vai relatando factos e estes estão integrados na História.
«É claro que a mim o que me interessa são as pessoas. Isto pode ser dito por qualquer escritor.» As pessoas na História, exatamente isso, seres da História que são simultaneamente agentes e sujeitos estão no Memorial do Convento, no Levantado do Chão, n’O Ano da Morte de Ricardo Reis, até no Manual de Pintura e Caligrafia e, é claro, na Jangada de Pedra.
Saramago recusa falar sobre os seus próximos livros («Não quero que se divulgue nada, sobre isso tenho que me defender»). Conhecem-se apenas os títulos: História do Cerco de Lisboa e O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Falemos da sua famosa ironia, tão apontada e parafraseada pelos críticos.
«Sou algumas coisas enquanto escritor que não sou na vida. Posso ser irónico, ter uma atitude irónica perante o funcionamento da sociedade, por exemplo. Tenho uma atitude melancolicamente irónica, se se quiser. Mas não uso de ironia nas minhas relações com as pessoas. É verdade que os meus livros são extremamente irónicos. Talvez (e estou a pensar nisso agora), talvez eu utilize os livros como forma de equilíbrio, para não usar, com as pessoas, essa tal ironia, que a meu ver estabelece relações colonizadoras. Digamos, portanto, que os meus livros são a maneira de eu não cair nessa tentação, nessa fraqueza. A ironia nos meus livros tem a função de ajudar-me a ver melhor as coisas. Não raro utilizo-a contra coisas e pessoas que muito amo. Não quero dizer que seja uma espécie de auto-flagelação, nada disso. É um modo ainda contraditório, de exprimir uma relação afectuosa. Lembro-me de um pormenor, ainda no Memorial, que gostaria de contar. É um pormenor estranho, do qual só me apercebi muito perto do final. Estava quase terminado e só então me dei conta que tinha escrito uma história de amor –entre Baltasar e Blimunda – e que aqueles dois seres, que se amam tanto, não trocam entre eles uma única palavra de amor. Isto não foi deliberado por mim, à partida. Não decidi, quando comecei a escrever que ia contar uma história de amor em que não fosse introduzida nenhuma das expressões de amor de uso corrente. Mas aconteceu. E é bastante irónico, não é?»
A literatura tem influência na vida das pessoas? Pode desencaminhar, ajudar, estimular? E se assim é, qual a responsabilidade do escritor?
«Acho que sim, que pode ‘desencaminhar’ as pessoas. Desencaminhar não no sentido pejorativo do termo. Pode fazê-las mudar de caminho, o que não quer dizer que seja de um bom para um mau. Mas não creio que um livro possa mudar a vida de uma pessoa. Pode ter uma certa influeência. Não tenho dúvidas sobre a responsabilidade do escritor, ele tem-na. Não quero dizer que tenha a preocupação, à partida, de escrever com intenções moralistas ou moralizantes, preocupado em não afetar negativamente a vida das pessoas. Mas não se pode esquecer que, se não é de certo modo para penetrar na vida do leitor, não vale a pena escrever. Um grande amor pode mudar radicalmente a vida de uma pessoa, o que duvido que se passe com a leitura de um livro, ainda que seja um grande livro. É claro que estamos sempre a evoluir. Vamos sendo não outros mas os mesmos de outra maneira. Mas não é por ler este ou aquele autor que vamos oscilando, mudando de personalidade.»
O Memorial é um livro muito sensual?
«É verdade que há sensualidade na minha escrita, uma sensualidade que não tem obviamente que ver com as situações descritas. É uma sensualidade intrínseca à escrita. Está lá, é algo que se pode cheirar, tocar, ver. O sentido dos sentidos. Não pretendo fazer leitura erótica, evidentemente, mas são descrições carnais em que a aproximação é feita através da mediatização da escrita. É a sensualidade da própria escrita que exprime, no fundo, a sensualidade específica de uma situação – amorosa, erótica.»
Ao longo da conversa somos interrompidos inúmeras vezes pelo telefone. O atendedor de chamadas está ligado e ouvimos as mensagens. Marcações de encontros, mais conferências, pedidos de entrevistas. Quando é algum amigo, José Saramago levanta-se, vai atender, conversa um pouco, desculpa-se da pressa. É um homem muito bem educado, gentil, afectuoso. Vai à cozinha e traz uns doces espanhóis maravilhosos.
Um crítico espanhol, Jordi Costa, fala da ilusão, porque de ilusão se trata, que o autor dá ao leitor de «manejar os cordelinhos». Diz mesmo que os livros de José Saramago são para leitores perspicazes. É mais um indício que ele confirma.
«Gosto que o narrador partilhe com o leitor o conhecimento geral da situação. Não que queria dar ao leitor a ilusão de que é mais perspicaz do que o seu próprio autor, uma vez que a perspicácia do leitor assenta no conhecimento que o narrador lhe vai transmitindo. É mais uma partilha, uma cumplicidade, o que existe entre ambos. De resto, o leitor funciona como uma das peças fundamentais do arsenal do escritor. De certo modo o leitor é utilizado como os personagens. Não se transforma num personagem. Mas toma parte da acção, de certa maneira.»
Mas José Saramago prega partidas ao leitor. Vai de mansinho, conta-lhe tudo, faz com que ele se sinta por dentro dos acontecimentos e de repente, zás, prega-lhe uma partida.
«Eu diria antes que o narrador usa uma espécie de má-fé. Enquanto está a partilhar com o leitor um certo gosto de narrar, sabe – e isso não o diz – que umas páginas à frente lhe vai dizer, ‘meu caro, desculpa, mas não era nada disto, as coisas são completamente diferentes’. E o leito que foi, digamos, engando, passa a precaver-se.»
Mas torna a cair, sempre, constato, espantada. José Saramago não me deixa continuar – «Bem, pelo menos eu tento que ele cai. Sempre».
Este artigo foi originalmente publicado na ELLE de outubro de 1988
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