Uma aproximação ao "Memorial do Convento" de José Saramago
Trabalho fotográfico de Humberto Joaquim
(...) "Quando de longe avistam os muros brancos da basílica, não gritam, Jerusalém, Jerusalém, por isso é mentira o que disse aquele frade que pregou quando foi levada de Pêro Pinheiro a pedra a Mafra, que todos estes homens são cruzados duma nova cruzada, que cruzados são estes que tão pouco sabem da cruzadia." (...) Pag. 295
(...) "Vem chovendo, mas não tanto que o trabalho tenha de parar, excepto o dos pedreiros, pois a água desfaz a argamassa, empoça nas larguíssimas paredes, por isso recolhem-se os operários aos telheiros, à espera que levante, enquanto os canteiros, que são gente fina, batem abrigados o mármore, tanto para a cantaria como para o lavrado, provavelmente prefeririam descansar. A estes tanto faz que as paredes cresçam depressa como devagar, têm o risco da pedra a seguir, caneluras, acantos, festões, acrotérios, grinaldas, estando acabada a obra logo a levam os carregadores a pau e corda, para o telheiro onde com outras ficará guardada, chegando a hora a irão buscar do mesmo modo, salvo se for tão pesada que requeira cabrestante e plano inclinado." (...) Pag. 218
(...) "Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo da inspiração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma acção de não menor grandeza que a basílica que não pode haver. O arquitecto ponderou, Mil frades, quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quantos, Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena para eles a basílica que desenhei e está a ser construída, com muitos vagares, se me é permitido o reparo, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, Assim se fará, dando vossa majestade as necessárias ordens." (...) Pags. 281/282
(...) "Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direcção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce, é pânico já, enfim vai ter voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todos morrerão, É Mafra, além, grita Baltasar, parece o gajeiro a bradar do cesto da gávea, Terra, nunca comparação alguma foi tão exacta, porque esta é a terra de Baltasar, reconhece-a, mesmo nunca a tendo vista do ar, quem sabe se por termos no coração uma orografia particular que, para cada um de nós, acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasar grita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo." (...) Pag. 201
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