Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 2 de maio de 2020

Palácio Nacional de Mafra pela objectiva do fotografo Humberto Joaquim

Uma aproximação ao "Memorial do Convento" de José Saramago

Trabalho fotográfico de Humberto Joaquim 

(...) "Quando de longe avistam os muros brancos da basílica, não gritam, Jerusalém, Jerusalém, por isso é mentira o que disse aquele frade que pregou quando foi levada de Pêro Pinheiro a pedra a Mafra, que todos estes homens são cruzados duma nova cruzada, que cruzados são estes que tão pouco sabem da cruzadia." (...) Pag. 295


(...) "Vem chovendo, mas não tanto que o trabalho tenha de parar, excepto o dos pedreiros, pois a água desfaz a argamassa, empoça nas larguíssimas paredes, por isso recolhem-se os operários aos telheiros, à espera que levante, enquanto os canteiros, que são gente fina, batem abrigados o mármore, tanto para a cantaria como para o lavrado, provavelmente prefeririam descansar. A estes tanto faz que as paredes cresçam depressa como devagar, têm o risco da pedra a seguir, caneluras, acantos, festões, acrotérios, grinaldas, estando acabada a obra logo a levam os carregadores a pau e corda, para o telheiro onde com outras ficará guardada, chegando a hora a irão buscar do mesmo modo, salvo se for tão pesada que requeira cabrestante e plano inclinado." (...) Pag. 218


(...) "Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo da inspiração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma acção de não menor grandeza que a basílica que não pode haver. O arquitecto ponderou, Mil frades, quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quantos, Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena para eles a basílica que desenhei e está a ser construída, com muitos vagares, se me é permitido o reparo, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, Assim se fará, dando vossa majestade as necessárias ordens." (...) Pags. 281/282


(...) "Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direcção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce, é pânico já, enfim vai ter voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todos morrerão, É Mafra, além, grita Baltasar, parece o gajeiro a bradar do cesto da gávea, Terra, nunca comparação alguma foi tão exacta, porque esta é a terra de Baltasar, reconhece-a, mesmo nunca a tendo vista do ar, quem sabe se por termos no coração uma orografia particular que, para cada um de nós, acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasar grita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo." (...) Pag. 201

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