O mundo literário e o outro, aquele que poderei chamar de civil, sempre demonstrou muita curiosidade e respeito pelo homem - José de Sousa Saramago - que escrevia e pensava na forma de José Saramago.
Aqui se transcreve na integra a entrevista de Humberto Werneck, editor chefe da Playboy Brasil, realizada em Lanzarote, datada de 1995
Entrevista Aqui
http://umcadernoparasaramago.blogspot.pt/2010/06/o-cidadao-portugues-jose-de-sousa.html?m=1
O cidadão português José de Sousa Saramago é um daqueles casos nada comuns de alguém que, já na idade madura, deu uma guinada radical na vida. Vinte anos atrás, estava ele, cinqüentão, solidamente estabelecido em Lisboa e num segundo casamento; vivia de traduções e tinha atrás de si uma breve experiência como jornalista. Nas horas vagas, administrava uma discreta carreira literária, iniciada na juventude com o romance Terra do Pecado, interrompida em seguida por quase duas décadas e desdobrada, a partir de 1966, numa dezena de livros que não chegaram a fazer barulho, a maioria deles coletâneas de poemas e de escritos jornalísticos. Nada permitia supor que José Saramago viria a se tornar quem hoje é: às vésperas de completar (no mês que vem) 76 anos de idade, um romancista lido e admirado em todo o mundo, traduzido para 21 idiomas e insistentemente apontado, desde 1994, como um dos favoritos para ganhar Prêmio Nobel de Literatura, tradicionalmente anunciado no mês de outubro e que seria o primeiro concedido a um autor de língua portuguesa.
Pois foi aí, já quase sexagenário, que a vida de José Saramago - menino pobre que não teve um livro antes dos 19 anos e que na juventude trabalhou como mecânico de automóveis (embora não saiba dirigir) - se pôs a trepidar, num benfazejo terremoto que em pouco mais de uma década haveria de redesenhar a sua paisagem existencial. Aos 57 anos, para começar, ele finalmente decolou como escritor ao publicar o romance Levantado do Chão. Aos 64, encontrou o que acredita ser o seu definitivo amor em alguém 28 anos mais jovem, a jornalista sevilhana María del Pilar del Río Sánchez. Aos 70, transplantou-se das margens do Tejo para uma ressequida ilha vulcânica espanhola onde não corre um ribeirão sequer e toda a água tem que ser tirada do mar, Lanzarote, a mais oriental das sete Canárias, com 50 000 habitantes e 805 quilômetros quadrados.
Ali, numa casa que vem a ser a primeira e até agora única propriedade desse persistente militante comunista, foram escritos seus livros mais recentes, Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes, além dos diários intitulados Cadernos de Lanzarote, encorpando uma obra na qual já se destacavam os romances Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra e O Evangelho Segundo Jesus Cristo. No Brasil, onde o melhor de Saramago já foi publicado, apenas este último título vendeu 85 000 exemplares.
A virada na vida do escritor foi engatilhada de maneira acidental, em 1975, quando, demitido do cargo de diretor-adjunto do Diário de Notícias ele decidiu não procurar emprego, abrindo assim espaço para que a sua criação literária deslanchasse em regime de dedicação exclusiva.
José Saramago, que tem uma filha, Violante, bióloga, de seu primeiro casamento, e dois netos, Ana e Tiago, já era autor consagrado em 1992, quando o ateísmo contundente de O Evangelho Segundo Jesus Cristo desaguou num episódio de censura que acabou determinando a sua mudança para Lanzarote, onde se instalou em fevereiro de 1993. O editor sênior Humberto Werneck, de PLAYBOY, lá esteve para entrevistar o escritor e conta:
"Branca, com dois pavimentos, a casa de José Saramago se chama exatamente isso, 'A Casa', conforme se lê junto ao portão de entrada. Fica no número 3 da Rua Los Topes, numa esquina da minúscula cidade de Tías, mas pode ser que o visitante tenha dificuldade em encontrá-la, pois o dono de A Casa, tendo lido sobre a história do lugar, decidiu restabelecer a sua antiga denominação, hoje inteiramente esquecida, Las Tías de Fajardo.
"Os carteiros de Lanzarote já se conformaram com a esquisitice, e não é impossível que o mesmo acabe acontecendo com os demais lanzarotenhos, sobretudo se o ilustre forasteiro vier a ganhar o Prêmio Nobel. Já são provavelmente maioria os nativos capazes de reconhecer aquele senhor alto, desempenado e sobrancelhudo, com óculos grandes demais para o seu rosto e cabelos grisalhos que escasseiam no alto e abundam, um tanto alvoroçados, na parte de trás da cabeça. Saramago ganhou faz um ano o título de 'filho adotivo' da ilha e só não é 'o' escritor de Lanzarote porque lá vive o romancista espanhol Alberto Vásquez-Figueroa, com quem fez camaradagem.
"Reservado, porém afável, de pouco riso mas longe de merecer a fama de mal-humorado que o persegue, José Saramago acumula as características a princípio excludentes de homem a um tempo caseiro e viajador: duas vezes por mês, em média, ele abandona a paisagem lunar de Lanzarote para atender a compromissos profissionais, sempre em companhia de Pilar del Río, hoje a sua tradutora para o espanhol e revisora das antigas traduções.
"Quando está na ilha, o escritor pouco sai de sua casa, plantada num jardim atapetado de picón, cascalho fino de origem vulcânica de cor preta ou tijolo escuro. A vegetação esparsa inclui duas oliveiras que o escritor quis ter ali por serem as árvores de sua infância na Azinhaga, povoado da região portuguesa de Ribatejo onde nasceu, filho de pais camponeses muito pobres, e onde viveu até mudar-se para Lisboa, aos 2 anos de idade.
"Num dos cantos do jardim há uma piscina (coberta, por causa do vento forte) com 7 metros e meio de comprimento, que o escritor atravessa pelo menos trinta vezes todos os dias - uma das explicações para a excelente forma física em que se encontra a apenas quatro anos de tornar-se octogenário. O mesmo se diga, aliás, da bela e simpática Pilar del Río, que aos 47 anos, mãe de um rapaz de 21, Juan José, que mora com o pai em Sevilha, não aparenta mais que 35.
"Marido e mulher têm, cada qual, seu escritório, e o de Saramago, no segundo piso, deixa ver o mar. As edições portuguesas e estrangeiras de seus livros espremem-se numa estante com quatro prateleiras e bom metro e meio de comprimento. Numa fotografia, uma tabuleta em francês provoca o ateu empedernido: "Dieu te cherche" - Deus te procura. Nesse escritório (onde foram gravadas, em três rodadas, as 7 horas desta entrevista), usando um laptop Canon acoplado a um monitor Samsung, Saramago escreve pela manhã e no final da tarde a sua quota diária de literatura, nunca mais de duas páginas, ao som de Mozart, Bach ou Beethoven, e responde a algumas das cartas, cerca de 100, em média, que lhe chegam todos os meses de vários cantos do mundo.
"Depois do almoço, já embarcado no hábito espanhol da siesta, ele cochila ou apenas relaxa na sala, no andar térreo. Nesses momentos nunca lhe falta a companhia da fauna canina doméstica: o cão d'água português (espécie de poodle) Camões, a yorkshire Greta e o poodle Pepe. À noite, na cozinha, vai repetir-se um ritual: sentam-se os três diante de seu dono, que, faca na mão, distribui rodelas de banana. Pepe foi batizado pelo escritor na esperança de que não sobrasse para ele próprio esse apelido a que, na Espanha, praticamente todos os Josés se acham condenados. Camões assim se chama porque apareceu na casa no dia de 1995 em que Saramago ganhou o Prêmio Camões, concedido anualmente pelos governos de Lisboa e Brasília a um escritor de língua portuguesa e que já distinguiu os brasileiros Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz e Antonio Candido. Camões adora livros: comeu duas biografias do presidente sul-africano Nelson Mandela, em diferentes línguas, e ultimamente se dedicava a roer as bordas de um grosso álbum de pinturas de Goya.
"Ao contrário de outros autores lusitanos, Saramago exige que seus livros sejam publicados no Brasil exatamente como saíram em Portugal, sem concessões destinadas a facilitar o entendimento do leitor brasileiro. Na transcrição desta entrevista, PLAYBOY não chega a adotar a ortografia vigente em Lisboa, mas busca não abrasileirar a fala do escritor. Como, ó pá, ninguém é de ferro, algumas palavras ganharam 'tradução' entre colchetes."
Aos 70 anos, o senhor veio parar nesta ilha, com outra língua, outra cultura. É um exílio?
A palavra é demasiado dramática. Se estou aqui, isso se deve a uma decisão absurda, estúpida do governo [português] de então [chefiado pelo ex-primeiro ministro António Cavaco Silva], em 1992, quando um subsecretário [António Sousa Lara] de Estado da Cultura - imagine, da Cultura... - decidiu que um livro meu, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não podia ser apresentado como candidato ao Prêmio Literário Europeu, porque, segundo ele, ofendia as crenças religiosas do povo português. Fiquei bastante desgostoso, indignado - e foi nessa altura que a minha mulher me disse: "Por que nós não fazemos uma casa em Lanzarote?"
Por que Lanzarote?
Nós tínhamos estado aqui no ano anterior e gostamos muito. Mas quando minha mulher sugeriu fazermos a casa, reagi como seria natural: "Pilar, por favor..." Mas ao cabo de dois dias eu estava a dizer: "Essa idéia afinal de contas não é má..." São duas reações masculinas típicas. Quando a mulher diz ao marido: "E se nós fizéssemos isto assim, assim?", em geral ele responde: "Não, que idéia!" A segunda reação é dizer, 24 ou 48 horas depois, como quem condescende: "Olha que essa tua idéia afinal de contas não é tão má..."
Uma mudança como essa traz problemas de adaptação...
Sim, mas adapto-me muito facilmente a situações novas.
E é chegado a experiências tardias na vida, não?
Tenho que reconhecer que as coisas boas da minha vida aconteceram um pouco tarde. Quando publico o Memorial do Convento, em 1982, estou com 60 anos, e com 60 anos o escritor normalmente tem sua obra feita. Não é que não continue, mas a parte central da sua obra já está feita. Eu tinha alguns livros, mas é com o Memorial do Convento que tudo ganha outra força.
A sua estréia foi lá atrás, aos 25 anos.
Tenho um livro que foi reeditado agora - o meu editor teimou e a minha mulher ajudou nisso -, um romance que publiquei em 1947. Chama-se Terra do Pecado. Não está mal escrito, mas tem pouco a ver comigo hoje. Ainda escrevi um outro livrinho [o romance A Clarabóia], que está por aí, mas, enfim...
Não será publicado?
Em vida minha, não. Depois, se quiserem...
Do que se trata?
É a história de um prédio onde há seis inquilinos, e é como se por cima da escada houvesse uma clarabóia por onde o narrador vê o que se passa embaixo. Não está mal, mas não quero que publiquem.
Depois de Terra do Pecado o senhor ficou quase vinte anos sem escrever. O que houve?
Se eu tivesse tido êxito com aquele primeiro livro... Mas também seria difícil esperar que tivesse. Vivi sempre muito isolado, nunca pertenci a grupos literários, pelas próprias condições sociais em que vivia, sem grandes meios. Sou uma pessoa que não passou pela universidade, portanto não criou amigos nessa roda que se supõe ser de intelectuais. Vivi sempre assim, à margem.
A sua formação literária foi um pouco errática, não é?
Nem sequer errática [ri]... Eu diria condicionada pela minha situação material. Depois da instituição primária, entrei no liceu [ginásio], onde estive só dois anos. A família não podia levar-me até o fim do curso. A partir daí estive numa escola industrial e tirei o curso de serralharia e mecânica. E aos 17, 18 anos fui trabalhar numa oficina de automóveis, onde estive por dois anos.
O que fazia lá?
Desmontava e consertava motores, regulava válvulas, condicionava, mudava juntas de motores. Agora, o que há talvez de importante aí é que nesse curso industrial havia uma disciplina de Literatura, coisa um pouco estranha, e que me abriu o mundo da literatura.
O seu primeiro livro foi mal recebido?
Não. Mas é um livro entre muitos, não tem muita importância. Naquele impulso ainda escrevi A Clarabóia. Não sei se naquela altura tive consciência de que não tinha grandes coisas para dizer e que, portanto, não valia a pena. O melhor que me aconteceu foi ter uma vida suficientemente larga para que aquilo que tinha que chegar chegasse.
Dá a impressão de que o escritor tem um manancial que pode ser explorado seja na juventude, seja na idade madura. Pode-se dizer que está jorrando agora uma coisa que ficou represada?
Se esse manancial existia, pelo menos eu não tinha consciência dele. Nunca fiz uma lista de assuntos e disse: "Vou fazer tudo isso". Cada vez que acabo um livro, fico sem saber o que vai acontecer depois. Cheguei ao ponto a que cheguei dando um passo de cada vez, e esses passos não estavam planeados. Agora, isso tem outra vantagem: me dá uma sensação de... não quero dizer de juventude, mas de...
... vitalidade.
Talvez de uma capacidade imaginativa que pode não ser muito comum quando se chega à idade que tenho. Provavelmente é isso que me leva a dizer: "Que sorte eu tive, de tudo o que tinha a fazer de mais importante estar a fazê-lo nesta fase da minha vida". Porque se tivesse feito aos 50 anos, provavelmente agora não tinha mais nada para dizer. Se nós tivéssemos a certeza de ter uma vida longa, talvez valesse a pena guardar para a parte final dela aquilo que temos realmente para fazer. É a circunstância em que nós nos achamos que nos obriga a decidir, e há dois momentos importantíssimos na minha vida. Um é o aparecimento da Pilar. Foi um mundo novo que se abriu. O outro foi em 1975, quando era diretor-adjunto do Diário de Notícias e, por causa de um movimento que se pode chamar de contragolpe [político], fui posto na rua.
O que foi que houve?
No dia 25 de novembro de 1975 há, de uma parte dos militares, uma intervenção que suspende o curso da revolução [a chamada "Revolução dos Cravos", que a 25 de abril de 1974 pôs fim a 48 anos de ditadura salazarista] tal como ela se vinha desenvolvendo e que põe um travão àquilo que estava a ser o movimento popular. Foi o primeiro sinal de que Portugal iria entrar na "normalidade". O jornal pertencia ao Estado e os responsáveis, então, demitem a redação e a administração. E aí é que tomo a decisão de não procurar trabalho. Tinha muitos inimigos e não era fácil que fosse encontrar trabalho. Mas nem sequer tentei.
Inimigos no mundo jornalístico ou no mundo das letras?
Inimigo nas letras eu tenho é agora. Naquela altura eu não era ninguém.
O senhor se considerava um jornalista ou um escritor?
Nunca me considerei um jornalista. Porque entrei nos jornais sempre pela porta da administração, nunca pela porta da redação. Nunca fiz uma entrevista, uma reportagem, nunca escrevi uma notícia. Também é certo que não me considerava tão escritor assim, porque aquilo que tinha feito não me dava um estatuto de escritor. No fundo, era apenas alguém que estava à espera de que as pedras do puzzle do destino - supondo-se que haja destino, não creio que haja - se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta: "Não vou procurar trabalho". Tinha uma idéia vaga, queria escrever um livro sobre a vida dos camponeses. Comecei a pensar o que faria sobre o lugar onde nasci, mas as circunstâncias me levaram para o Alentejo [região a leste de Lisboa]. Fui para lá em 1976, fiquei semanas ouvindo pessoas, tomando notas, e isso veio a dar no livro Levantado do Chão, que se publicou em 1980.
O que pretendia quando começou a escrever? Fama? Dinheiro?
Eu não queria nada. Queria apenas escrever. E quanto a isso de querer ser rico, eu nem agora penso em ser rico.
O senhor não está rico?
Não. Ao olhar para estas paredes, diga: "Estão feitas com livros". Não tenho bens de outra natureza. Se quisesse ser rico, tinha permitido que se adaptasse o Memorial do Convento a uma novela brasileira.
Houve uma proposta?
A [falecida atriz] Dina Sfat, em Lisboa, disse-me: "Queremos fazer o Memorial do Convento". Eu disse nessa altura: "Não tenho qualquer razão para querer ser rico". Evidentemente que se dirá hoje: "Ah, mas você vive bem". Vivo relativamente bem. Mas isso não é como resultado de um projeto para enriquecer.
O senhor recusou a proposta de Dina Sfat mas aceitou outra, para adaptação cinematográfica de A Jangada de Pedra.
Esse foi um caso em que eu cedi. Mas não cedi a nada senão à simpatia da própria pessoa [a professora húngara Yvette Biró, da Universidade de Nova York]. Ela mostrou um interesse tão grande, de uma forma tão inteligente... O guião [roteiro] está feito, ela está à procura de um produtor, parece que está bastante adiantado - mas a verdade é que não dou seguimento a nada, como se no fundo quisesse que tudo isso abortasse. Há outras situações, como, por exemplo, a que se refere ao Ensaio sobre a Cegueira. Oito produtoras norte-americanas e uma inglesa estão a ler o livro. Já disse ao meu agente: "Deixa-os lá fazer propostas, mas não será adaptado o livro".
Nem se for uma proposta extremamente tentadora?
É preciso pensar sobre o que produtores norte-americanos fariam de um livro como esse.
O que eles fariam?
Aproveitariam o que no livro há de mais exterior, que é a violência e o sexo. E aquilo que é importante, a interrogação sobre como é que nós nos comportamos, que uso fazemos da nossa razão, que cegueira nossa é essa que não é dos olhos mas do espírito, que relações humanas são essas a que chamamos humanas e que de humanas têm tão pouco. A lição que o livro pretende dar desapareceria completamente.
Mesmo nas mãos de um cineasta sensível, um Antonioni?
Bom, há dois ou três nomes que provavelmente me fariam pensar duas vezes. A verdade é que os grandes realizadores [diretores] desapareceram. Os realizadores, hoje, são meros funcionários que fazem aquilo que os produtores mandam. Costumo resolver isso dizendo que não quero ver a cara das minhas personagens. Pois se nem eu as descrevo...
Mas o senhor deve ter imagens na cabeça quando escreve.
Não tenho ninguém na cabeça. Sento-me diante do computador com a idéia de uma história que quero contar, mas não necessito inspirar-me em figuras reais.
É verdade que todos os seus livros partiram de um título?
Foi assim praticamente com todos. Foram títulos dados, não sei por quem, não sei por quê. O Ano da Morte de Ricardo Reis nasceu em Berlim. Eu tinha ido aí com uns quantos escritores e num fim de tarde, cansado, deixo-me cair na cama - e nesse momento caem-me do teto, quase, estas palavras: "O ano da morte de Ricardo Reis".
E O Evangelho Segundo Jesus Cristo?
Esse nasceu de uma ilusão de óptica, em Sevilha. Atravessando uma rua na direção de um quiosque [banca] de jornais e revistas, naquele conjunto de títulos e manchetes pareceu-me ler "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Continuei a andar, depois parei e disse: "Isso não pode ser" - e voltei atrás. De fato, não havia nem evangelho, nem Jesus nem Cristo. Se eu tivesse uma boa visão, se não fosse míope, provavelmente esse livro não existiria. O Ensaio sobre a Cegueira nasce num restaurante. Estou sentado, à espera de que me sirvam, e nesse momento, a propósito de nada, penso: "E se fôssemos todos cegos?"
É verdade que Todos os Nomes nasceu no Brasil?
Nasceu quando fui receber o Prêmio Camões [em janeiro de 1996]. O avião já estava descendo em direção ao aeroporto de Brasília - e de repente passa-me pela cabeça isto: "todos os nomes". Nada disso é definido, aparece como idéias vagas que passam, e algumas delas foram para mim tão claras, ou pelo menos tão insinuantes, que me permitiram dizer: "Isto significa qualquer coisa". Custa trabalho encontrar, depois, um caminho para chegar aonde eu quero. Todos os Nomes, por exemplo, foi bastante complicado e provavelmente não existiria se não tivesse coincidido com a procura dos dados da vida e da morte do meu irmão [Francisco de Sousa]. Eu queria saber as circunstâncias da breve vida desse meu irmão, tem que ver com um livro para o qual tenho já muito material recolhido, que é uma autobiografia...
O Livro das Tentações?
Sim. Uma autobiografia que vai só até os 14 anos.
Não é curioso o senhor ter começado pelo pecado Terra do Pecado - para cinqüenta anos depois chegar à tentação?
Não, mas são outras tentações. Se é uma autobiografia que vai até os meus 14 anos, que tentações podem ser essas? Não as tentações da carne, nem as do poder, da glória, não. Nasce uma criança, e o mundo todo, que está aí para ser conhecido, é como uma tentação. Ora bem, esse irmão mais velho morreu com 4 anos quando eu tinha 2. Se vou escrever um livro sobre a minha vida, tenho que falar nele. Não sabia praticamente nada dele, então pedi um certificado de nascimento - e aí é que começam as surpresas: a data da morte não está lá. Do ponto de vista burocrático, meu irmão está vivo...
Para quem não acredita na vida eterna, hein?
Realmente, não acredito na vida eterna, embora vá inventando formas de dar-lhe alguma eternidade à vida. Quando invento [em Todos os Nomes] uma conservatória [arquivo do Registro Civil] onde estão todos os nomes e um cemitério onde estarão todos os mortos, no fundo é uma forma de dar eternidade àquilo que não é eterno, ou pelo menos dar-lhe permanência. Se não fosse essa história do meu irmão, talvez escrevesse um livro chamado Todos os Nomes, mas seria outro totalmente, porque a minha busca dos dados referentes a ele é que me leva, no romance, a dar numa conservatória. Parece haver uma espécie de predestinação em tudo aquilo que faço. Há coisas que acontecem e que suscitam outras idéias, portanto é tudo uma questão de estar com atenção ao modo como essas idéias se desenvolvem. Algumas delas não têm saída, mas há outras que encontram seu próprio caminho. Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações...
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