Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Biografia, para consulta no site da Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e Bibliotecas

Biografia, para consulta no site da Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e Bibliotecas,


"José de Sousa Saramago nasceu em Azinhaga, no Ribatejo, no dia 16 de Novembro de 1922, e morreu em 18 de Junho de 2010, em Lanzarote, Canárias.
Em 1924, José Saramago, com dois anos de idade, parte, juntamente com os pais, para Lisboa. Uma infância vivida sem desafogo económico e passada entre Lisboa e a casa dos avós maternos – Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha. Por falta de meios económicos, abandona o Liceu com doze anos e ingressa numa escola de ensino profissional onde, durante cinco anos, aprendeu o ofício de serralheiro mecânico. Ainda que frequentasse um curso técnico-profissional, as disciplinas de Francês e de Língua Portuguesa integravam os planos curriculares e Saramago pôde, assim, iniciar-se no gosto pela leitura. Em 1939, depois de terminado o curso, exerceu durante dois anos a profissão de serralheiro mecânico. Em 1944, trabalhou num organismo de Segurança Social como empregado administrativo. Neste mesmo ano, casa-se com Ilda Reis, de quem viria a ter, em 1947, a sua única filha, Violante. Publica o primeiro romance para adultos – Terra do pecado (1947) –, não voltando a publicar até 1966, ano em que é dado à estampa Os poemas possíveis.
Um ano depois, em 1950, José Saramago passa a trabalhar, como responsável pela produção, na editora Estúdios Cor, o que lhe proporcionou um contacto directo com alguns dos principais escritores da época. De 1955 a 1981, intercalou a sua actividade editorial com trabalhos de crítica literária na revista Seara Nova (1967-68) e de tradução. Em 1969 filia-se no Partido Comunista Português. 1970 é o ano que marca o seu divórcio e a publicação de mais três livros: Provavelmente alegria (poesia, 1970), Deste mundo e do outro (crónicas, 1971) e A bagagem do viajante (crónicas, 1973). Entretanto, em 1971, abandona a editora e torna-se coordenador e editor de um suplemento literário do Diário de Lisboa até 1973. Nos meses que se seguiram à Revolução de 1974, Saramago coordena o FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), sob a dependência do Ministério da Educação. De Abril a Novembro de 1975, desempenhou também funções de director-adjunto no Diário de Notícias, mas foi demitido devido às mudanças operadas pelo golpe militar de 25 de Novembro e que travou o processo revolucionário. Sob a acusação de marxista radical, fica de novo sem emprego e sem perspectivas de o arranjar, resolvendo dedicar-se inteiramente à literatura.
Os finais da década de setenta e toda a década de oitenta ficam assinalados pela publicação de vários títulos, entre eles, Levantado do chão (romance, 1980; Prémio Internacional Ennio Flaiano 1992), Memorial do convento (romance, 1982; Prémio Pen Club 1983 e Prémio Literário do Município de Lisboa 1983), O ano da morte de Ricardo Reis (romance, 1986; Prémio Pen Club 1985, Prémio Dom Dinis 1986, Prémio Grinzane-Cavour 1987), A jangada de pedra (romance, 1986) e História do cerco de Lisboa (romance, 1989). Em 1992, Saramago vê vetada pelo Governo Português a candidatura ao Prémio Literário Europeu do romance O evangelho segundo Jesus Cristo (1991; Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores 1991 e Prémio Brancatti 1991) e decide fixar residência na ilha de Lanzarote com Pilar del Río, jornalista espanhola com quem casara em 1988. Nas Canárias, publica a peça de teatro In nomine Dei (1993), que dará origem a um libreto da ópera Divara, com música do conceituado compositor italiano Azio Corghi (1937), estreada nesse mesmo ano em Münster (Alemanha). De resto, foram sete as obras que Saramago viu adaptadas à ópera por este compositor. Com a atribuição do Prémio Nobel de Literatura, em 1998, a obra de José Saramago começa a ser traduzida em várias línguas e a ser adaptada ao teatro e ao cinema. Em 2007, surge a Fundação com o seu nome, sediada em Lisboa, na Casa dos Bicos, apresentando, entre vários objectivos, o de preservar e difundir a literatura portuguesa contemporânea.
Na vasta bibliografia de José Saramago, encontramos livros que se salientam pelas incursões na narrativa de fundo histórico (Memorial do convento (1982), História do cerco de Lisboa (1989), A viagem do elefante (2008)), por investimentos semânticos que configuram as ideias de efemeridade da vida, de eros e thanatos, da busca da identidade e do sentido da existência [Todos os nomes (1997), O conto da ilha desconhecida (1998), O homem duplicado (2002), As intermitências da morte (2005)] de contestação e de transformação social [Manual de pintura e de caligrafia (1977), Objecto quase (1978), A noite (1979), Levantado do chão (1980), O ano da morte de Ricardo Reis (1986), A jangada de pedra (1986), O ano de 1993 (1987), Ensaio sobre a cegueira (1995), A caverna (2000), Ensaio sobre a lucidez (2004)], mas também de denúncia da intransigência religiosa e revisitação de acontecimentos bíblicos [A segunda vida de Francisco de Assis (1987), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), In nomine Dei (1993), Caim (2009)]. Em suma, releituras de um mundo que não «estava bem» e que, dezasseis anos volvidos sobre o Ensaio sobre a cegueira, continua a estar mal, construídas num tom alegórico e sem condescendências.
Mas encontramos também nas estantes um conto infantil singelo e mágico, direccionado a leitores entre os seis e os dez anos, e esquecido pelo seu Autor desde os inícios da década de setenta – A maior flor do mundo (2001). No conto, observa-se a configuração de uma enunciação discursiva que paulatinamente se afasta daquela que será, inicialmente, a voz do autor textual – a qual, assumindo uma deixis pessoal, confessa a sua incapacidade para escrever histórias para crianças (pois «Além de ser preciso saber escolher as palavras, faz falta um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e muito explicada, uma paciência muito grande») – e que se transforma em narrador declaradamente heterodiegético, abandonando todas as marcas discursivas anteriores e instaurando um segundo nível diegético («Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta sem literatura: "vou ou não vou?" E foi.»). E, com ele, também nós, leitores, iniciamos essa viagem, atravessamos o mundo todo, chegamos ao grande rio Nilo, recolhemos a água com as mãos, voltamos a atravessar o mundo, e damos de beber três gotas de água à plantinha sedenta, e repetiremos essa viagem «vinte vezes» ou «cem mil», não importa, pois o que interessa é ver «a flor aprumada» a dar «cheiro no ar», é realizarmos algo maior do que nós mesmos.
As ilustrações de João Caetano (v.), em técnica mista – pintura e colagem – valeram-lhe o Prémio Nacional de Ilustração 2001 e ampliam magnificamente os sentidos do texto, demarcando os dois níveis diegéticos ao mesmo tempo que dissolvem regras pragmáticas atinentes ao processo de comunicação literária. Neste caso, a representação pictural da voz discursiva que se apresenta no primeiro nível diegético plasma o autor empírico José Saramago, estatuindo uma relação de identidade. Ainda no que respeita às ilustrações, é também curiosa a primeira imagem, de uma sequência de três, que encerra o livro: o narrador do primeiro nível diegético, sentado à secretária, com um copo vazio, olhando, perplexo, o milagre – a maior flor do mundo –, e testemunhando ser a literatura o lugar de todos os possíveis.
A maior flor do mundo obteve a distinção «altamente recomendado» da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, do Brasil, em 2001. E é «de leitura obrigatória para os adultos», a fim de aprenderem «o que há tanto tempo têm andado a ensinar», como se afirma no paratexto da contracapa.
Em 2007, o realizador galego Juan Pablo Etcheverry transformou este conto infantil numa curta-metragem, utilizando plasticina tradicional 2D. A banda sonora de Emílio Aragón harmoniza-se com a poeticidade do texto. 

Bibliografia: A maior flor do mundo (2001), Lisboa: Caminho.

[Ana Cristina Vasconcelos] - 05/2013"

Outro apontamento,

Prémio Nobel de Literatura 1998. Nascido no Ribatejo, mas desde muito novo a residir em Lisboa, José Saramago é um caso paradigmático de escritor autodidacta: com um curso em serralharia mecânica concluído em 1939, vai, ao longo dos anos, repartir a sua actividade profissional pela tradução, a direcção literária e de produção numa casa editora, colaborações várias em jornais e revistas (salientando-se a função de crítico literário que manteve na Seara Nova e o jornalismo propriamente dito, tendo orientado o «Suplemento Literário» do Diário de Lisboa e sido director-adjunto do Diário de Notícias, já no período pós-revolucionário de 1974-75). 
Tendo embora iniciado a sua carreira nas letras em 1947, com o livro Terra do Pecado, é em 1980, com o romance Levantado do Chão, história da vida de uma família camponesa do Alentejo desde o início do século até à revolução de Abril e ao advento da reforma agrária, que José Saramago produz aquilo a que já se convencionou chamar o seu «primeiro grande romance». Primeiro porque a partir daí eles se têm sucedido regularmente como outros tantos «grandes romances», o maior dos quais, por ter constituído um autêntico «caso» de celebridade tanto nacional como internacional, com tradução para uma vintena de línguas e adaptação a libretto de ópera, foi sem dúvida Memorial do Convento (1982). 
Fascinante relato da construção do convento de Mafra e do esforço dos homens que o construíram, Memorial do Convento trata também do sonho do «padre voador», Bartolomeu de Gusmão, e da construção da sua Passarola, que voará mercê das vontades dos homens que Blimunda, a que vê através dos corpos e da terra, irá, pacientemente, aprisionando num frasco. Tudo isto é servido por um estilo que passará a constituir forte marca do autor e que se define, basicamente, pela supressão de alguns sinais de pontuação, nomeadamente pontos finais e travessões para introduzir o diálogo entre as personagens, o que vai resultar num ritmo fluido, marcadamente oral e muito próprio, tanto da escrita como da narrativa. 
Estas características irão, aliás, contribuir para transformar os seus livros em objecto de interesse para encenadores, músicos e realizadores de cinema: Memorial do Convento, de que o autor recusou autorizar uma adaptação cinematográfica, foi já adaptado a ópera pelo compositor italiano Azio Corghi, com o título «Blimunda». A estreia mundial, com encenação de Jérôme Savary, realizou-se no Teatro alla Scala, de Milão, em Maio de 1990. Também da peça In Nomine Dei foi extraído um libretto: o da ópera «Divara», estreada em Münster (Alemanha), em 31 de Outubro de 1993, com música de Azio Corghi e encenação de Dietrich Hilsdorf. 
De romance histórico se tem inevitavelmente falado em relação à produção romanesca de Saramago, embora o próprio autor recuse tal etiqueta aplicada às suas obras. E se os romances de José Saramago estão definitivamente modelados numa dimensão histórica (quer os que remetem para o passado – a maioria – quer, por exemplo A Jangada de Pedra (1986), que surge como ficção de uma hipótese fantástica situada num futuro), não o estarão menos numa dimensão propriamente humana, naquilo em que a acção e reflexão dos homens, mesmo, ou principalmente, dos mais modestos no interior de cada época histórica, pode pesar para ocasionar desvios, ainda que ficcionais, da «verdade» que a História consignou. Na opinião de Maria Alzira Seixo, será precisamente «desta conjunção entre continuidade temporal e intervenção humana» que Saramago irá «extrair uma noção de alteridade que [...] é a proposta de diálogo entre todo o diverso, ou melhor, de conjunção acertada e dramática das várias condições que situam o homem no mundo, seu entrecruzar doce e fecundo, sua irreparável desarmonia que se deplora e compensa em literatura». 
Se o romance de José Saramago é histórico, pela dimensão histórica, e fantástico, pela dimensão fantástica, ele é principalmente dos homens e das mulheres na história e da sua capacidade de ver e agir sobre o real para além do crível e do evidente. Parte da extraordinária receptividade que as suas obras têm merecido em todo o mundo, e que culminou com a atribuição do Nobel, dever-se-á, sem dúvida, a esse carácter humanista, a esse reduto de confiança e esperança no poder do humano que a sua obra projecta. 
De facto, mesmo antes da consagração máxima trazida pelo Nobel, Saramago era já o autor português contemporâneo mais traduzido, com livros editados em todo o mundo, da América do Norte à China, e detinha já um capital de prestígio reconhecido pela atribuição de vários prémios literários internacionais e nacionais – de onde se destacam o Prémio Camões, em 1995 e os prémios Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores (1993) e de Consagração de Carreira, da Sociedade Portuguesa de Autores (1995) –, doutoramentos honoris causa pelas Universidades de Turim (Itália), Manchester (Inglaterra), Sevilha, Toledo e Castilla-La Mancha (Espanha) e graus honoríficos, como o de Comendador da Ordem Militar de Santiago da Espada e Chevalier de l'Ordre des Arts e des Lettres (atribuído pelo governo francês). É, além disso, membro honoris causa do Conselho do Instituto de Filosofia do Direito e de Estudos Histórico-Políticos da Universidade de Pisa (Itália); membro da Academia Universal das Culturas (Paris); membro correspondente da Academia Argentina das Letras e membro do Parlamento Internacional de Escritores (Estrasburgo). 

Parte do espólio de José Saramago encontra-se no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998

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