Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

"Ensaio sobre a Cegueira" - «E se nós fossemos todos cegos?»

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” - epígrafe da obra
As formas várias de olhar, as formas de ver, o que se observa e o que se repara.
Intuir, absorver informação, interpretar e desenvolver a capacidade de interagir com o mundo que nos rodeia. 
Esta obra, é, se assim se pode dizer, uma grande "porrada", naquilo a que se chama a consciência humana. Encerra em si, e abre, ao mesmo tempo, para o mundo, uma explanação sobre a evolução do ser humano. 
A cegueira que se espalha numa manifestação de epidemia galopante, coloca várias questões apresentadas em patamares diferentes. Podemos observar a questão da precariedade pessoal, quando confrontados com uma deficiência ou diminuição das capacidades individuais; a questão da solidariedade da população, nos seus diferentes planos ou relações. o "eu e o tu", o "eu e o nós", o "nós e os outros"; a intervenção das instituições que garantem e governam as sociedades perante o caos. 
Todos estes níveis de observação, foram colocados dentro de uma enorme metáfora, esquematizados de forma densamente pragmática, tendo em conta, aquilo que é a evolução do ser humano e a sua histórica incapacidade de evoluir em humanidade, num contexto global, que se pretende evoluído e (utopicamente) geradora de todas as condições e princípios básicos com que se deve reger a humanidade.
Esta epidemia, a "cegueira branca", talvez a maior limitação que o ser humano possa sofrer, aqui enquadrada num contexto de massas, de população  afectada, fará descer a "unidade", o conjunto de afectados pela mesma doença, ao seu próprio inferno - a falta de dignidade na perspectiva individual potenciada pelo caos do grupo. 
Saramago, recorre a este "castigo", para demonstrar que a lucidez de espírito dos que vêm, está afectada pela incapacidade do homem gerar e criar valores, como a humanidade, a urbanidade, a bondade, e que, adormecidos sobre o seu próprio egoísmo, perante uma brutal calamidade são obrigados a descer ao nível mais baixo da sua dignidade.
Neste patamar, onde os homens são equivalentes a todo e a qualquer animal, que sobrevive pelo instinto mais básico e primitivo, surge em contraponto com o caos, a imagem da esperança - a imagem do "cão das lágrimas" que lambe o sofrimento da "mulher do médico" e lhe transmite algum conforto.

Quem deverá ler esta obra?
Qual o público leitor alvo?
Homens e mulheres, que conseguem olhar para as atrocidades do mundo, como que, se de um reality show tratasse.

Cuidado... a cegueira... vive e sobrevive, neste pasto, neste caldo de humanidade... 

(o cão que lambe as lágrimas que escorrem
pela face da "mulher do médico")



(...) "Há muitas formas de cegueira. Estamos a falar de cegueiras metafóricas e não de cegueiras reais. Uma forma de cegueira é não querer compreender, é levantar uma barreira para que as coisas de fora não nos venham agredir e há uma infinidade de formas de ser cego. Vamos imaginar que uma pessoa não é cega... e quando diz que não se quer chatear até parece alguém que está consciente do passado do mundo e, simplesmente, não quer que o mundo o aborreça. Essa pessoa não se dá conta que essa é a sua cegueira." (...)

em, "Uma longa viagem com José Saramago"
João Céu e Silva
Porto Editora, página 85




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