Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

"Memorial do Convento" e a célebre gralha do "estridor operático" que passou a "escritor operário"



(...) "Irrata-o encontrar uma gralha nos seus livros?"
Quando pegamos no livro novo e o abrimos, a gralha normalmente aparece imediatamente, é a primeira bofetada que levamos. Na primeira edição do "Memorial do Convento" saiu uma gralha que é o retrato da época... Ao falar da música que se tocava naquela época nas igrejas eu designo-a como «estridor operática» e o que aconteceu foi que o compositor da gráfica escreveu «escritor operário». Isto aconteceu em 1982, quando ainda há alguma coisa do período revolucionário e o homem leu mal aquilo e depois não se apercebeu que não fazia sentido - também pode acontecer que o tenha feito intencionalmente, nunca se saberá - e o «estridor operático» ficou transformado em «escritor operário» até que na segunda ou terceira edição se emendou. Achei graça, aquilo tinha realmente piada, mas uma gralha irrita-me sempre e principalmente o que me aborrece mais é não a ter visto nem o revisor." (...)

em, "Uma longa viagem com José Saramago"
João Céu e Silva
Porto Editora, página166


Transcrição da localização da gralha

(...) "O cravo foi deixado pelos galegos do lado de fora do portão, não faltava mais nada verem eles a máquina de voar, e para a abegoaria o levaram, com grande esforço, Baltasar e Blimunda, não tanto pelo peso, mas por lhes faltarem arte e ciência, sem contar que as vibrações das cordas pareciam queixumes magoados e por causa deles se lhes apertava o coração, também duvidoso e assustado de tão extrema fragilidade. Nessa mesma tarde veio Domenico Scarlatti, ali se sentou a afinar o cravo, enquanto Baltasar entrançava vimes e Blimunda cosia velas, trabalhos calados que não perturbavam a obra do músico. E tendo concluído a afinação, ajustado os saltarelos que o transporte havia desacertado, verificado as penas de pato uma por uma, Scarlatti pôs-se a tocar, primeiro deixando correr os dedos sobre as teclas, como se soltasse as notas das suas prisões, depois organizando os sons em pequenos segmentos, como se escolhesse entre o certo e o errado, entre a forma repetida e a forma perturbada, entre a frase e o seu corte, enfim articulando em discurso novo o que parecera antes fragmentário e contraditório. De música sabiam pouco Baltasar e Blimunda, a salmodia dos frades, raramente o estridor operático do Te Deum, toadas populares campestres e urbanas, cada qual suas, porém nada que se parecesse com estes sons que o italiano tirava do cravo, que tanto pareciam brinquedo. infantil como colérica objurgação, tanto parecia divertirem-se anjos como zangar-se Deus." (...)

em "Memorial do Convento"
Caminho, Página 116
(edições corrigidas) 

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