(...) "Irrata-o encontrar uma gralha nos seus livros?"
Quando pegamos no livro novo e o abrimos, a gralha normalmente aparece imediatamente, é a primeira bofetada que levamos. Na primeira edição do "Memorial do Convento" saiu uma gralha que é o retrato da época... Ao falar da música que se tocava naquela época nas igrejas eu designo-a como «estridor operática» e o que aconteceu foi que o compositor da gráfica escreveu «escritor operário». Isto aconteceu em 1982, quando ainda há alguma coisa do período revolucionário e o homem leu mal aquilo e depois não se apercebeu que não fazia sentido - também pode acontecer que o tenha feito intencionalmente, nunca se saberá - e o «estridor operático» ficou transformado em «escritor operário» até que na segunda ou terceira edição se emendou. Achei graça, aquilo tinha realmente piada, mas uma gralha irrita-me sempre e principalmente o que me aborrece mais é não a ter visto nem o revisor." (...)
em, "Uma longa viagem com José Saramago"
João Céu e Silva
Porto Editora, página166
Transcrição da localização da gralha
(...) "O cravo foi deixado pelos galegos do lado de fora do portão, não faltava mais nada verem eles a máquina de voar, e para a abegoaria o levaram, com grande esforço, Baltasar e Blimunda, não tanto pelo peso, mas por lhes faltarem arte e ciência, sem contar que as vibrações das cordas pareciam queixumes magoados e por causa deles se lhes apertava o coração, também duvidoso e assustado de tão extrema fragilidade. Nessa mesma tarde veio Domenico Scarlatti, ali se sentou a afinar o cravo, enquanto Baltasar entrançava vimes e Blimunda cosia velas, trabalhos calados que não perturbavam a obra do músico. E tendo concluído a afinação, ajustado os saltarelos que o transporte havia desacertado, verificado as penas de pato uma por uma, Scarlatti pôs-se a tocar, primeiro deixando correr os dedos sobre as teclas, como se soltasse as notas das suas prisões, depois organizando os sons em pequenos segmentos, como se escolhesse entre o certo e o errado, entre a forma repetida e a forma perturbada, entre a frase e o seu corte, enfim articulando em discurso novo o que parecera antes fragmentário e contraditório. De música sabiam pouco Baltasar e Blimunda, a salmodia dos frades, raramente o estridor operático do Te Deum, toadas populares campestres e urbanas, cada qual suas, porém nada que se parecesse com estes sons que o italiano tirava do cravo, que tanto pareciam brinquedo. infantil como colérica objurgação, tanto parecia divertirem-se anjos como zangar-se Deus." (...)
em "Memorial do Convento"
Caminho, Página 116
(edições corrigidas)
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