(ocasião em que José Saramago apresenta a reflexão sobre a obra)
(...) Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. Juntou os papéis, vinte anos dia sobre dia, folha após folha, guardou-os numa gaveta da pequena secretária, fechou as janelas, e pôs a correr a água quente para se lavar. Passava um pouco das sete horas. (...)
em, O Ano da Morte de Ricardo Reis
Caminho, 11.ª edição (páginas 23 e 24)
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