Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 20 de dezembro de 2015

"José e Pilar Um filme cheio de vida" (Público 14/10/2010)

"José e Pilar Um filme cheio de vida", por Isabel Coutinho, aqui
em http://www.publico.pt/temas/jornal/jose-e-pilar-um-filme-cheio-de-vida-20399926


"Com o documentário Autografia/Um Retrato de Mário Cesariny, Miguel Gonçalves Mendes recebeu o Prémio de Melhor Documentário Português no DocLisboa 2004. Regressa hoje ao festival com José e Pilar, o filme da sessão de abertura, já esgotadíssima, na Culturgest

Há uma certa escuridão naquele corredor do Museu Nacional de Arte Antiga, mas a câmara de Miguel Gonçalves Mendes aproxima-se e o espectador do documentário José e Pilar percebe que o homem que está a olhar para a vitrina da exposição Encompassing the Globe é o Prémio Nobel da Literatura português.

José Saramago, absorto nos seus pensamentos, contempla o banco que pertenceu ao arquiduque da Áustria, Maximiliano II, e foi feito com os ossos do elefante que lhe foi oferecido pelo seu tio, João III de Portugal. A peça, agora de museu, está ligada ao romance A Viagem do Elefante que Saramago escreveu durante os anos em que a câmara do realizador português entrou dentro da intimidade do Nobel e da sua mulher, Pilar del Río.

Pode ser visualizado aqui, via YouTube


Quando fez José e Pilar, Miguel Gonçalves Mendes tinha um objectivo: não dar aos espectadores a sensação que estavam a ver um documentário. "Não quis que fosse um documentário tradicional, com um lado pedagógico, a falar do homem e da obra", explica o realizador. Isso já estava feito em outros suportes (livros, reportagens de televisão, etc.). O que lhe interessava era contar esta história como se fosse uma narrativa clássica em termos de estrutura: "Um homem que quer escrever um livro, que adoece, que tem medo de não conseguir acabar o livro, mas consegue recuperar e não só acaba esse romance, como ainda tem uma ideia para outro."

Se no documentário Autografia/Um Retrato de Mário Cesariny, pelo qual Miguel Gonçalves Mendes recebeu o Prémio de Melhor Documentário Português no DocLisboa 2004, se sentia haver alguém a despedir-se, no sentido quase testamentário, em José e Pilar há sofreguidão de vida e de desejo de viver. "De José e de Pilar, aquilo que mais me fica é que a vida é só esta, ponto final. E, no caso de José, como ele diz, tudo lhe aconteceu demasiado tarde, há um caso de urgência." O escritor morreu no dia 18 de Junho de 2010 e o filme foi montado antes de ele morrer. "No dia em que morreu, jurámos a nós próprios não tocar em nada da montagem", conta Mendes. "Seria um processo suicida, íamos destruir o filme todo." Na altura, um amigo lembrou ao realizador: "Miguel, o filme é dos vivos para os vivos."

Um filme sem falsidades

"Eu tenho ideias para romances. Ela [Pilar] tem ideias para a vida. E eu não sei o que é mais importante", diz a determinada altura, brincalhão, José Saramago. Mas é claro que sabia. Miguel Gonçalves Mendes acompanhou o casal por vários locais do mundo durante mais de três anos, tem filmadas cerca de 240 horas de material e passou um ano e meio na mesa de montagem. Fez uma primeira versão de José e Pilar com seis horas, outra de três e a versão final que abre hoje, às 21h00, a VII edição do DocLisboa, na Culturgest, em Lisboa, tem duas horas.

José Saramago viu a versão de três horas. Muitas vezes, durante a rodagem, o escritor teve dúvidas sobre a pertinência de se filmarem determinadas coisas, explica Miguel Mendes, mas quando viu o resultado disse-lhe que, mais do que um filme sobre ele e Pilar, era um filme sobre a vida. "Pareceu-lhe mais interessante do que estava à espera", conta Pilar del Río, num e-mail enviado ao P2 a partir de Milão. "Riu-se com algumas cenas, achámos que estávamos feios noutras, inteligentes por vezes, fortes nas discussões... Ficámos surpreendidos ao ver como representávamos pouco, com o estarmos sem maquilhagem, de estar o José, de roupão, como se não existissem câmaras...", diz. Sentiram que parte da vida deles voltava, que tinham o privilégio de a ver como numa máquina do tempo, com naturalidade, porque "é um filme sem falsidades, cheio de verdade, de pequenas coisas, de vida, simplesmente", continua Pilar. O retrato que Miguel fez do vosso quotidiano é real? Revê-se nele? "Absolutamente. Miguel foi um retratista fiel, embora com personalidade própria. Fez o retrato que qualquer pintor quereria assinar. Sabe manejar os pincéis e a câmara. E os tempos. Tem carácter como realizador, chegará longe."

Em José e Pilar assistimos à rotina do dia-a-dia, à inauguração da biblioteca, aos cães a rondar a casa, ao casamento, a funerais, ao regresso à Azinhaga e a Castril, à criação da fundação, aos momentos da doença. Numa das cenas mais impressionantes vemos José Saramago na cama do hospital a olhar para um computador onde, em directo, está a ser transmitida a imagem dos amigos e família a desejarem-lhe "Ano Feliz 2008".

Sabe que eu te amo, né?

Momentos interessantes são também aqueles que se passam no México na Feira de Guadalajara e no Brasil, quando o autor de Memorial do Convento foi lá lançar A Viagem do Elefante. Há a conferência de imprensa em que José se queixa que os jornalistas lhe fazem sempre as mesmas perguntas onde quer que vá. Uma jovem aproxima-se do escritor e repete várias vezes algo que o escritor não percebe ("Saramago, eu te amo"), acabando por lhe segredar ao ouvido: "Você sabe que eu te amo, né?" O escritor português desmancha-se a rir. O editor brasileiro Luiz Schwarcz e a sua mulher, Lilia, antropóloga, em casa de quem Saramago ficava no Brasil, emocionaram-se muito. "O humor do filme nos agradou imenso, como vocês diriam. Não temos muito a dizer. Sentimos muito do que privamos ao ter José e Pilar sempre em casa", responderam por e-mail. Este filme tem a capacidade de emocionar e de fazer rir quem o vê. Os protagonistas, José e Pilar, não se emocionaram, simplesmente reviveram. E riram-se de algumas coisas que se passaram e que a câmara viu.

Para Pilar del Río, não há nenhuma lição a tirar deste filme, "só a experiência de compartilhar com alguém muito amado, com José Saramago, parte da sua vida, entrar na sua intimidade, porque Saramago abriu as suas portas e expôs-se". "Parece-me isso tão admirável que eu, sim, estou emocionada ante o exemplo magnífico, da generosidade assombrosa de José Saramago neste filme, na sua vida. Como o filme revela."

José e Pilar chega aos cinemas portugueses a 18 de Novembro e terá antestreia a 16 de Novembro, data do aniversário de Saramago."




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