"Relendo ocasionalmente a conferência de Luciana Stegágno Picchio no Instituto de Cooperação Iberoamericana, em Madrid, em Maio do ano passado, quando da «Semana» dedicada a este autor, encontro a afirmação de que Levantado do Chão marcou uma «passagem» em toda a minha escrita, tanto em sentido temporal como estilístico e de género. Creio que de facto é assim, e eu próprio, sem esquecer a Viagem, o tenho designado por «livro de mudança», o que vem a dar mais ou menos no mesmo. Mas esta declaração de Luciana, agora refrescada pela leitura, leva-me a perguntar se os meus romances não serão, todos eles, afinal, não apenas «livros de passagem» como também autênticos «actos de passagem», que, implicando obviamente as respectivas personagens, talvez envolvam, mais do que pareça, o próprio autor. Não digo em todos os casos nem da mesma maneira. Por exemplo: de passagem a uma consciência se trata no Manual; da passagem de uma época a outra creio estar feito muito do Memorial; em passagens da vida à morte e da morte à vida passa Ricardo Reis o seu tempo; passagem, em sentido total, é a Jangada; passagem mais do que todas radical é a que quis deixar inscrita no Cerco; finalmente, se o Evangelho não é a passagem de todas as passagens, então perca eu o nome que tenho... Do que aí fica não tiro conclusões, nem para sim, nem para não. A primeira operação investigadora a cometer seria confrontar as sucessivas fases da minha vida com os livros que as prepararam ou delas foram consequência - e isso quem o fará? Não eu, porque de certeza me perderia no labirinto que inevitavelmente estaria a emaranhar no mesmo instante em que começasse a pôr a claro as primeiras relações de causa e efeito..."
in, "Cadernos de Lanzarote Diário II"
Caminho, páginas 196 e 197
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