1989 - José Saramago com Mário Soares, na apresentação do seu livro
"História do Cerco de Lisboa", no Castelo de São Jorge - Lisboa (Foto © Eduardo Tomé)
19 de Novembro (1995)
Para um livro que vai ser publicado, sobre Mário Soares e a cultura, escrevi o seguinte:
«Cinco milhões e meio de analfabetos funcionais num País de dez milhões de habitantes são pesadelos a mais para qualquer governante, e em particular para um presidente da República, uma vez que ele está obriga-do a ser, por propósito, quando não por definição, presidente de todos, ou, com mais rigor, presidente para todos. Na hora de deixar por imperativo constitucional a função mais alta do Estado, que durante dez anos desempenhou, o presidente Mário Soares irá provavelmente fazer o balanço da sua magistratura, ponderando os acertos e os erros, os seus próprios, decerto, mas também os do País que é o seu, sem esquecer as ilusões perdidas e as frustrações mais ou menos dolorosas que são a expiação de todo o homem, seja ele presidente ou cidadão comum. Um tal balanço, para ser completo, não poderá ignorar o que foi a acção política anterior de Mário Soares, isto é, desde a revolução que nos trouxe a liberdade e a possibilidade duma democracia até à primeira eleição que o tornou presidente. Em tudo aquilo que é hoje Portugal, encontra-se, mais do que qualquer outra, a marca indelével, positiva ou negativa, em branco ou em cinza, da pessoa de Mário Soares e das suas ideias e práticas políticas, tanto no plano nacional como europeu. Esse balanço político, que ardentemente desejo poder ouvir ou ler, em caso algum deverá representar um adeus à vida pública. Tal como o entendo, representaria, isso sim, a assunção do significado pessoal e público de uma vida que ininterruptamente tem acompanhado, e em não poucos momentos determinou de forma decisiva, o rumo da vida colectiva portuguesa. Representaria, igualmente, o modo mais aberto e generoso de avançar no caminho onde mais me agradaria encontrá-lo a partir do dia em que deixe o cargo de presidente da República e os seus condicionamentos constitucionais, tácticos ou apenas prudentes: a luta, como simples e pedestre cidadão, pela sobrevivência cultural de Portugal.
«Por mais que às orelhas nos gritem os pregoeiros da chamada modernização, quase todos eles meros adventícios deslumbrados pelo exercício de um poder afinal mais fácil do que imaginavam, a nossa terra está doente de gravidade, como doente também o está a nossa democracia, tão levianamente invocada quando se trata de chamar ao voto. Aqueles cinco milhões e meio de analfabetos funcionais, conviria não esquecer, são, na sua grande maioria, eleitores. Eleitores que vão votar sem terem percebido com suficiente clareza o conteúdo real das propostas políticas, sociais e económicas dos partidos, eleitores a quem, quantas vezes, porque honestamente não se lhes poderia aplaudir a consciência da opção, baixamente se lhes vai lisonjeando o instinto, como se o não saber fosse, afinal, uma expressão superior de sabedoria. Não faltam a Portugal problemas, mas o menor não é decerto a questão cultural colectiva, isto é, nacional, diante de cujas dimensões perde algum sentido, por exemplo, a habitual e interminável discussão sobre os dinheiros públicos destinados a subsidiar o teatro, o cinema ou a ópera. A doença está na raiz. As folhas, quando murchas, os frutos, quando desenxabidos, representam somente os sinais mais evidentes do mal profundo que nos está corroendo.
«A cultura portuguesa, aquela que, segundo a gíria tecnocrática destes tempos, se veio processando e desenvolvendo nos níveis superiores da criação artística e literária e da investigação científica, teve sempre em Mário Soares, enquanto presidente da República, não apenas o observador atento a que em todos os casos o cargo estava obrigando, mas a presença calorosa e interveniente de alguém que, por vocação e exercício, é, e foi sempre, um homem de cultura. A partir da hora em que deixar o palácio de Belém, Mário Soares não terá mais de cumprir o dever protocolar, mas para ele sempre grato, de proferir discursos, inaugurar congressos e entregar prémios. Deixará os palcos e as cadeiras de espaldar alto, tornar-se-á num simples cidadão português entre cidadãos portugueses. Rendo homenagem, como escritor que sou, a esse presidente da República para quem a cultura nunca foi palavra vã nem pretexto demagógico. E, como cidadão que acima de tudo me prezo de ser, apelo ao cidadão Mário Soares para que, a partir daquele dia, já liberto de travas institucionais, ponha o seu prestígio pessoal e a sua influência cívica ao serviço da batalha por uma educação e por uma formação seriamente entendidas. É o futuro dos Portugueses que está em causa. Por muito importantes que sejam as memórias políticas que Mário Soares venha a escrever, é ainda para o futuro do País que deverá olhar. Será uma maneira também de continuar a ser presidente. A melhor de todas.»
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 201 a 203 (19 de Novembro de 1995)
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