26 de Abril (de 1996)
"Sobre a fotografia:
Não há nenhum motivo para sorrirmos ao ciclope, ao monstro de um só olho que é a câmara fotográfica. E, apesar disso, nunca estamos tão desarmados como diante duma objectiva. Ao princípio cremos poder enganá-la, ou porque fechámos o rosto e endurecemos o olhar, ou porque simulámos a expressão que a memória do espelho nos disse ser a mais favorável. Nesse momento começa uma luta entre a paciência do fotógrafo e a resistência de quem se lhe opõe. A paciência do fotógrafo é infinita, a resistência de quem está a ser fotografado acabará sempre por quebrar-se. Cada disparo do obturador atinge um ponto vital das defesas, aos poucos a muralha vai sendo derrubada, até que, por fim, as verdades que por trás dela se escondiam começam a aparecer, não ainda as verdades todas, mas uns quantos fragmentos delas, e também o medo do fotografado de que o processo continue até à exaustão de si mesmo. Em geral, não se chega tão longe. Piedoso, o fotógrafo pára no último instante, detém o fotografado quando ele já vai a cair no abismo, e tudo mais ou menos se recompõe. Mais ou menos. Mal refeito do susto, o fotografado suspira julgando-se livre, enquanto o fotógrafo se afasta a pensar nos bocadinhos de alma que leva dentro da caixa, como o pescador à linha vai contando os peixes que roubou ao cardume."
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 123 e 124
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