Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 25 de junho de 2016

"Sou um grito de dor e indignação" Pilar del Río entrevista José Saramago - Revista "Blimunda" #49 (Junho de 2016)


A entrevista pode ser recuperada e descarregada gratuitamente, aqui
em http://www.josesaramago.org/blimunda-49-junho-2016/

"No dia em que completou 78 anos apareceu em todos os países em língua portuguesa A Caverna, o último romance, até agora, de José Saramago - o primeiro que publica depois da atribuição do Prémio Nobel de Literatura. Essa noite, em Lisboa, jantando com amigos de toda a vida, exalava o antigo orgulho do camponês que olha a sua colheita e o vê crescer alegre e solta. Mas em nenhum momento baixou a guarda: do seu avô Jerónimo, o homem mais Sábio que conheceu, como afirmou no discurso diante da Academia sueca, aprendeu que é necessário mimar a terra, que as plantas e os homens exigem cuidados e atenções, que viver em harmonia com o mundo criado é a maior aspiração e o esforço quotidiano mais admirável. A partir dessa posição vai Saramago escrevendo os seus livros, Falando com os seus leitores, intervindo aqui e ali e construindo sua vida. Levantada do chão. A entrevista realizou-se em Lanzarote, no último Natal do século XX. O escritor é entrevistado pela jornalista, sem ter em conta a relação afetiva; por isso se tratam por você. Na casa há um ir e vir de família e de idiomas, de pessoas e de cães, de cumprimentos. A campainha da porta compete com os telefones paro ver quem toca mais. No escritório, onde se chega através de uma escada estreita, Saramago consegue isolar-se da confusão e aproveita as duas semanas que medeiam o périplo de apresentações da edição portuguesa em Portugal, An-gola, Moçambique e Brasil, e o lançamento em Espanha e Américo Latina, para escrever cartas, responder a entrevistas e descansar. É incrível, mas consegue. 

Como se sente depois de ter apresentado o livro em capitais e aldeias de três continentes? 
Muito cansado. Foram 45 dias de viagens, conferências, entrevistas, apertos de mãos, abraços, tudo muito agradável e gratificante, mas à custa de um esforço físico e psíquico arrasador.

Em todo caso, é preciso boa saúde para aguentar o ritmo que leva. 
Até agora, a saúde tem sido um muro sem brechas. Às vezes perguntam-me como consigo aguentar e só tenho uma resposta: «Não sei». 

Falamos do seu novo livro, desta caverna onde parece que estamos instalados. 
Falamos. Mas não gostaria que as minhas ideias sobre o romance se impusessem às que o leitor terá por sua conta. Ser autor não significa ser autoridade e, muito menos, ser autoritário. Se as únicas ideias que um livro pudesse gerar fossem as que o próprio autor tem dele, esse livro seria bem pobre... 

Um parêntesis, antes de começar com o romance. Vive numa ilha, que parece que é o paradigma do melhor, é feliz, faz o trabalho que quer. Como lhe vem à cabeça a ideia de que todos estamos fechados numa caverna? 
A minha felicidade não é mais que uma pequena ilha no mundo, mas as janelas da minha casa estão abertas para esse mundo e não gosto do que vejo. Por isso escrevi o Ensaio sobre a Cegueira, Todos os Nomes e agora A Caverna, por isso toda a minha obra pode ser entendida como uma reflexão sobre o erro.  

Sobre o erro? 
Sim, sobre o erro como verdade instalada e por isso suspeita, sobre o erro como deturpação intencional de factos, sobre o erro como ilusão dos sentidos e da mente, mas também sobre o erro como ponto necessário para chegar ao conhecimento. 

E se levamos a caverna ou o erro na cabeça, e por isso nos custa tanto discernir o que se nos impõe como verdade oficial? 
Levamos tudo dentro da cabeça. Fora da nossa cabeça não sabemos o que há verdadeiramente. Cada ser vivo, desde o mais elementar ao mais complexo, percebe que algo o rodeia, mas essa percepção não é a mesma em todos. O simples olhar deu-nos nos passado uma certa imagem do mundo, mas o microscópio demonstrou que essa imagem não era mais que uma aparência. Acrescente-se a isto as abstracções que inevitavelmente modificam as imagens mentais que vamos formando sobre o mundo, e diga-me se é possível ter apenas certezas sobre a real realidade do que nos é externo. Uma dessas abstracções é Deus. Depois de criar dentro da nossa cabeça uma ideia de Deus, acabamos, paradoxalmente, fazendo dele nosso criador, criador do próprio ser que o criou. Ou seja, criamos Deus e logo acreditamos que foi ele que nos criou... Também criamos essa outra abstracção a que chamamos diabo e acusamo-lo de ser culpado das nossas próprias maldades... Quer maior absurdo? 

Não, mas é um absurdo que serve para ir andando pela vida. 
A mim parece-me uma brincadeira de mau gosto. Não tem sentido que precisemos de nos enganar para vivermos. 

As personagens de A Caverna rebelam-se. É necessária rebeldia para sair da caverna? 
A Caverna é uma história de perdedores cuja única vitória consiste em que não se entregam ao triunfador. É a rebelião possível mas sem ela não poderá haver outra. A derrota definitiva seria a submissão, e ainda assim não devemos esquecer que as gerações se sucedem, mas não se repetem. Assim como de insubmissos podem nascer submissos, também dos que se submeteram poderão nascer os que se revelarão. 

Neste romance introduzem-se dois elementos novos na sua obra: a família e a ternura. Crê que estes conceitos são importantes para que algo se modifique para melhor? 
Não tenho ilusões sobre a família como instituição. A família é lugar de crimes, traições e vilanias, tanto como qualquer outro grupo humano. Mas continuo a acreditar no poder regenerador da bondade pessoal e da ternu-ra. A casualidade quis que em A Caverna se reunissem quatro pessoas boas e um cão não menos bom, ainda que a realidade, sabemo-lo por experiência, demasiadas vezes seja diferente. 

Há uns meses em Santander disse que «quanto mais velho mais sábio, quanto mais sábio, mais radical». Não foi só uma frase de efeito... 
Não me lembro se a frase dita em Santander era exactamente assim. Seja como for, parece-me que fica mais clara a ideia se digo que quanto mais velho me vejo, mais livre me sinto e mais radicalmente me expresso. Não se trata de uma frase de efeito, é uma verificação de todos os dias. As palavras que com mais frequência me digo são estas: «Não te permitas nunca seres menos do que és». 

Sente-se velho com 78 anos? 
Por muitas voltas que se dê ao assunto, uma pessoa com 78 anos será sempre um velho porque está na idade que definimos como velhice. Não vale a pena estar com estúpidos eufemismos que no fundo não enganam ninguém, como esse da «terceira idade». Mas ser velho não é nem um estigma nem uma vergonha, e muito menos se o corpo e a mente continuam a funcionar de maneira satisfatória. Verdi escreveu o seu Falstaff aos 80 anos. Deveria pedir desculpas pelo facto de, sendo velho, ter escrito uma obra-prima? 

É um homem vaidoso, sedutor? 
Gosto de me ver bem, nada mais. No que respeita às gravatas, por exemplo, sou implacável... 

E um sedutor. Essa capacidade de sedução é natural ou é trabalhada? 
Não creio que seja um sedutor. Limito-me a mostrar-me aos outros exactamente como sou. Se com isso se sentem seduzidos, melhor para mim, porque não estive a enganar ninguém. Tenho debilidades e defeitos como todo o mundo, mas tenho também uma qualidade essencial, a de respeitar o outro como pessoa que é. Talvez aí esteja o segredo. 

Você enamora homens e mulheres, pessoas em particular e auditórios inteiros. Essa capacidade de embelezamento tem de dever-se a algo mais do que o respeito pelo outro. 
Mas é basicamente isso. E simplicidade e sinceridade, e mão esquerda e mão direita, ambas oferecidas e abertas. 

Na sua idade, como fala do amor? 
Há umas quantas coisas que me mantêm de pé, uma delas é o amor. 

Haverá quem pense que se está a gabar, que o amor é coisa de jovens, que na sua idade só resta a resignação e tudo o mais é lembrança. 
A velhice de quem pensa assim começa aos 30 anos... Esses são os que se resignaram e cansaram aos primeiros passos. Começa-se com a impotência do sentimento e acaba-se na outra... 





Ainda que não acredite em Deus, você é crente. Apesar do seu alardeado pessimismo, acredita na vontade humana como factor de mudança. Não conheço ninguém mais tenaz nessa convicção. 
Acredito na vontade humana, sim, mas não deixo de exigir que sirva e defenda a vida, em vez de a ofender e humilhar. 

E o que pode esperar da vida, se parece que já tem tudo? 
Que o que me resta de vida não seja indigno de como vivi até agora. Se tiver de perder algo, que seja só dinheiro. 

Quando era pequeno e brincava sozinho nos canaviais de Azinhaga e no rio Almonda pensava na literatura? Sonhava em ser escritor? 
Quando brincava nos canaviais, brincava nos canaviais. Tive a sorte de não ser um menino-prodígio, os meninos-prodígio são como pequenos «monstros» insuportáveis... Em casa dos meus avós, camponeses pobres, ou em Lisboa, vivendo com os meus pais em casas alugadas, como ia pensar em literatura?

Mas algum sonho teria. 
Não tive sonhos nem ambições que valha a pena recordar, salvo, algumas vezes, imaginar-me como maquinista de comboios. Exaltava-me a ideia de ser responsável pelas vidas que transportava. 

Esse sentimento de responsabilidade sobre outras pessoas, poderia ser uma expressão de liderança? 
Não sei. De psicologia, ou melhor, de interpretações psicanalíticas, não percebo nada. Para além disso, nunca gostei dos líderes. O maquinista leva o comboio para a estação e não espera aplausos. 

Quando era mecânico, ou depois funcionário administrativo e passava pelos cafés onde se reuniam os escritores portugueses, que sentia? 
Quando era mecânico o itinerário que me levava até à oficina não passava pelos cafés. E depois, quando me tornei funcionário administrativo, não tinha dinheiro para os frequentar. O meu reino não era daquele mundo... 

Quis aproximar-se deles alguma vez? 
Nunca fiz nenhuma tentativa para me aproximar. Quando um amigo me introduziu numa tertúlia, comecei por contentar-me com o papel de ouvinte. Tardei em dar sinal da minha presença. Mas aprendi muito a ouvir. 

Você é comunista e já o era antes da Revolução de Abril. Teve problemas com a censura de Salazar? Não como escritor, já que a minha actividade literária era incipiente então. Mas tive-os, e muitos, no período em que fui jornalista. Quase não havia um dia em que não tivesse de ir discutir com os «coronéis» do lápis azul... Eram uns pobres idiotas, às vezes nem se davam conta do que tinham diante do nariz. Houve uma revista que publicou uma série de artigos sobre o Marxismo, sem usar nunca esta palavra, e passaram. Nem sequer entenderam que o Carlos Marques de que falavam era Karl Marx... 

Falemos da sua participação na luta política de então. 
Não há muito a dizer. Cumpri as tarefas de que me encarregaram. Colaborei, sem dramatismos nem heroicidades, para enterrar um regime corrupto. Não creio ter defraudado os que confiavam em mim e na minha participação. 

Mas, sim, teve problemas quando o seu país já vivia em democracia. E por isso vive em Lanzarote. Sob pretexto de que o livro ofendia a crença católica, o governo «social-democrata» de Cavaco Silva proibiu que O Evangelho segundo Jesus Casto concorresse, tal como havia decidido um júri independente, e sem intervenção da minha parte, ao Prémio Literário europeu. O meu protesto foi emigrar. 

Mas ao fim de alguns anos descobriu que também em Lanzarote existe o mesmo, que a ambição e o racismo fazem ninho em qualquer lugar. 
Numa manifestação racista em Las Palmas houve uma palavra de ordem miserável, como outras que eram ditas: «Saramago, vai-te daqui!». E em Lanzarote choveram insultos contra mim. Mas não lhes vou dar esse gosto. Quero esta terra como quero a minha aldeia natal e defendê-la-ei contra quem tente fazer dela um lugar de exclusão e exploração dos que vêm à procura de um prato de comida. 

Acredita que estamos liquidados, que se a história não acabou terão acabado os grandes movimentos libertadores, que três quartos da humanidade estão condenados à miséria? 
Nem a história chegou ao seu fim, nem acabaram as revoluções. O meu optimismo contenta-se com estas certezas. O resto são dúvidas. Como? Quando? Onde? Isso não sei, mas acontecerá. 

Vai a Chiapas, no México. Ou a Timor. Ou a Moçambique. Acaba de visitar os presos de La Tablada, esses jovens que assaltaram um quartel na Argentina acreditando que se preparava um golpe de estado, e que levam anos de prisão e mais de cem dias em greve de fome exigindo um julgamento justo. Conhece as feridas do mundo e no entanto continua inteiro. 
Aparentemente sim, estou inteiro. Mas quem me conhece bem sabe que sangro por dentro. Todos os dias, todas as horas. Sou, em carne e em espírito, um grito de dor e indignação. Se parece que há demasiada retórica no que acabo de dizer, recordo que a pior retórica é a dos actos, não a das palavras. E também recordo que os presos de La Tablada continuam em greve de fome e o Governo argentino não ouve as recomendações dos tribunais internacionais, que pedem que se repita o julgamento. 

E o que fazer com o conflito basco? 
Enquanto a ETA não deixar de matar, a situação estará encalhada, não vejo saída. Deixar de matar é a condição essencial para que se possa iniciar o diálogo que conduza à paz, à solução do problema basco, que não é, precisamente, o da bandidagem. O gangsterismo é um terrível acrescento que tanto os bascos como o resto de Espanha queremos que acabe. 

Sei que cada dia lhe custa mais falar de literatura, que prefere falar, por exemplo, de direitos e de deveres humanos. Porque não escreve a Carta dos Deveres Humanos? 
Depois de milénios de civilizações e culturas, os deveres humanos encontram-se inscritos nas consciências, inclusive quando aparentamos ignorá-los ou desprezá-los. Não há que escrever uma Carta dos Deveres Humanos, há que apelar às consciências livres para que a manifestem e a assumam. 

Sabe que alguns o criticaram por ter estragado o banquete do Nobel falando do incumprimento universal dos Direitos Humanos? 
Poucas coisas na vida me deram tanta satisfação como ter estilhaçado o espelho lisonjeiro e tranquilizador em que muitas daquelas pessoas se contemplavam. Sabe quais foram as palavras da Rainha da Suécia quando regressei ao meu lugar, à sua direita, depois do discurso? Foram estas: «Alguém tinha de dizê-lo.» E ela não foi certamente a única a pensá-lo. 

O que pensa que pesa mais, ter recebido o Nobel ou não o ter recebido e ansiar por ele? 
Passar a vida a pensar no Nobel deve ser uma doença. Por essa razão, para além de todas as outras, o melhor é recebê-lo... 

Dizem que o Nobel acarreta uma maldição e que muitos escritores não conseguem escrever depois de o receber. Você rompeu a maldição. 
Não fui o primeiro, nem serei o último. Pode ter acontecido, isso sim, que alguns escritores a quem foi concedido o Nobel não tenham voltado a publicar por considerarem que a sua obra já estava concluída. Dessa decisão são eles os juízes, e há que respeitá-la. 

A quem recomenda a leitura de A Caverna? 
A quem nela não queira entrar, a quem se sinta tentado a entrar, a quem já esteja dentro. Que não leia A Caverna quem considere que não está em nenhuma destas situações... 

Coloque um ponto final nesta entrevista. 
A nossa entrevista não acaba aqui, portanto, nem ponto, nem final. 



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