Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 29 de outubro de 2016

Uma leitura de o "Ensaio sobre a Cegueira" do blogger Elenilson Nascimento (Brasil)

É sempre uma enorme satisfação poder divulgar o trabalho dos Saramaguianos espalhados pelo mundo, aqui deixo mais uma prova de uma opinião e análise sobre o "Ensaio sobre a Cegueira". 
E o Brasil sempre tão perto e acarinhando o legado de José Saramago.
Um enorme agradecimento ao Elenilson Nascimento!

A análise do blogger Elenilson Nascimento, aqui em 

"Minha resenha sobre o livro "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago. "Talvez, ainda hoje, o preconceito com a obra de Saramago seja por causa do gesto de total lucidez, mesmo na loucura, a rejeição sumária a todo o sistema do mais do mesmo que ai está. Pode-se concordar ou não. A questão nos seus livros não é ideológica, mas literária. Uma curiosidade: ao longo de sua vida, Saramago resistira em ceder os direitos sobre seus livros para o cinema." Confira aqui: http://cabinecultural.com/2016/10/20/literatura-ensaio-sobre-a-cegueira-jose-saramago/ 
fonte: Cabine Cultural/UOL
#LiteraturaClandestina #Saramago"

“O autor português expressa os valores sociais que quer condenar como a crueldade, o egoísmo, a indiferença, o consumismo e a competição, que fazem com que os cegos estejam “sempre em guerra”, mas exalta os valores que pretende que prevaleçam como o respeito ao outro, a dignidade, a coragem, a solidariedade, e a convivência…”

Por Elenilson Nascimento

Sempre tive as minhas dificuldades com Saramago, autor português comunista que, quando vivo (*faleceu em 2010), era atuante, incentivador de cultura e voraz leitor, mas não pelo seu trabalho, afinal sempre achei eficaz as suas descrições do caráter humano, porém até hoje não gosto da maneira como ele organizava os seus textos: parágrafos gigantes, sem pontuação, sem travessões para separar os diálogos e afins. Contudo, a minha admiração com relação à sua vida foi bem maior do que as minhas limitações e preconceitos. Sim, eu tinha muitos preconceitos com relação ao que eu achava ser uma falta de cuidado com o texto, mas que, com o tempo, aceitei como sendo uma técnica de escrita bem particular do autor. Lembrando que se fosse eu que enviasse um livro assim para os editores brasileiros, na sua maioria excludentes e corporativistas, todos me reprovariam sem pensar duas vezes e ainda iriam me chamar de analfabeto. Pois bem…

“Ensaio Sobre a Cegueira” é um livro difícil para quem não está acostumado com o português de Portugal, além das barreiras já citadas, mas a história é fascinante e eu já tinha lido “História do Cerco de Lisboa”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”, três livros maravilhosos da obra do autor. Aí abrir o “Ensaio…” em uma página qualquer e me deparei com a frase: “O medo cega… são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”. Pensei: “Tenho que comer logo este livro!”. Mesmo porque eu queria fazer algum tipo de comparação com o filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. E tudo começa quando um homem, a caminho do trabalho, dentro de um carro, parado em um sinal de trânsito, espera pacientemente o sinal ficar verde. Sua espera é interrompida por uma “nuvem branca” que cobre toda a sua visão. Este é o primeiro que fica cego. No meio do desespero, ele é levado para casa por um desconhecido que, aproveitando da sua incapacidade física, rouba o seu carro. Tudo indica ser um vírus desconhecido transmitido pelo ar, pois, mais tarde, a mulher deste primeiro cego se contamina; e Saramago começa a apresentar ao leitor os demais personagens: a rapariga de óculos escuros que quando fazia um programa se vê “dentro de um pote de leite”; o médico, oftalmologista para ser exato; a mulher do médico; o velho da venda preta; o farmacêutico que cantou a rapariga de óculos escuros na farmácia; o rapazinho estrábico, além do ladrão do carro do primeiro cego. E queria ressaltar também um personagem pouco citado e que só apareceu quase no final da história, mas que achei muito pertinente: o cão das lágrimas.

Jorge Amado e José Saramago na porta da Fundação Jorge Amado, 
Pelourinho, Salvador – BA: o português daria o Nobel ao brasileiro 
(foto: divulgação/Fundação José Saramago)

Engraçado como Saramago optou em não citar nomes, mas adjetivá-los. No decorrer da trama, a tal “cegueira branca” vai se espalhando pelo mundo inteiro, sem controle e sem nenhuma explicação, atingindo todas as pessoas, sem distinção de raça, idade, crença religiosa, opção sexual. Mas a única isenta de tal sofrimento é a mulher do médico – sem nenhuma explicação aparente por parte do autor, vale ressaltar. Diante da epidemia sem controle, o governo resolve colocar em quarentena todas as pessoas que ficaram cegas, sob condições subumanas. Uma vez lá dentro, não há nada o que fazer a não ser tentar sobreviver. Para isso, os protagonistas se unem e tentam sobreviver em um lugar onde pessoas mais se parecem com animais. “Mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos”, escreveu Saramago. Na camarata, como o autor chama a prisão, que na verdade é um velho sanatório, o ser humano se rebaixa ao nível de um animal irracional. Fazem suas necessidades em qualquer lugar, matam sem saber exatamente o motivo, estupram mulheres apenas pelo prazer de comandar alguém ou alguma coisa (*uma das cenas mais chocantes), comem a carne de seus amigos mortos… Enquanto isso, do lado de fora, cada vez mais pessoas vão ficando cegas. Os governadores, os presidentes, os funcionários públicos, os mendigos, os religiosos… todos. E o caos se forma no mundo!

Porém, num incêndio, sem explicações mais detalhadas, os cegos se vêem livres daquela prisão, descobrem que todo o mundo – isso mesmo, o mundo todo está cego. Não há mais quem enxergue nada, há não ser o “mar de leite”. “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”. Fora da prisão, o desafio agora é sobreviver do lado de fora da quarentena. A mulher do médico, a única que pode ver e guiá-los, descreve as cenas aterradoras: corpos em estágio avançado de putrefação espalhados pela cidade em meio a fezes, ratos, lixo e pessoas vivas brigando pelos motivos mais diversos. A luta agora não é por um emprego, por dinheiro ou por sucesso, e sim por comida. “As ruas estão cheias de cegos que andam à cata de comida. Entram e saem das lojas, de mãos vazias entram, de mãos saem quase sempre, depois discutem entre eles (…) O lixo nas ruas, que parece ter-se duplicado desde ontem, os excrementos humanos, meio liquefeitos pela chuva violenta os de antes, pastosos, saturam de fedor a atmosfera, como uma névoa densa através da qual só com grande esforço é possível avançar”.

Impossível não se impactar com a cena. Não existe meio de transporte, telecomunicação ou qualquer coisa do tipo. Nem energia elétrica. As casas agora não são de ninguém, e sim de quem invadir primeiro. É o degrau mais baixo que um ser humano pode chegar. “A cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. Quando enfim, o grupo consegue um abrigo na casa do primeiro cego, que já estava ocupada por um escritor, Saramago parece querer mostrar a vergonha dos seres humanos perante suas próprias imperfeições. A cena dos cegos tirando suas roupas sujas para tomar banho e mesmo cegos com vergonha de se despirem na frente uns dos outros ficou simplesmente perfeita. “Se quiserem, posso pôr cada um de vocês numa parte da casa”, respondeu ironicamente a mulher do médico. “A cegueira é a providência dos feios…”

Anotação enviada por Saramago aos amigos mais próximos, na tarde de 8 de agosto de 1995, anunciando que tinha acabado de escrever “Ensaio sobre a Cegueira”. 
(imagem: divulgação/Fundação José Saramago)

Saramago também brinca com a importância dos livros: “Agora ninguém os pode ler, portanto é como se não existissem…” O autor neste “Ensaio Sobre a Cegueira” nos faz refletir sobre nós mesmos. Sobre nossos medos, nossas vergonhas, nossas inseguranças, nossos preconceitos. Através de uma cegueira física, ele ilustra a cegueira da nossa própria alma. Como se os nossos corações estivessem como aquela cidade, como se estivéssemos nos transformando, cada vez mais rápido, a um estado social caótico. Mas o autor também sinaliza para uma solução: “Organizando-se, organizar-se já é, de certa maneira, começar a ter olhos” – exatamente como o grupo de protagonistas no livro. “O mundo está cheio de cegos vivos (…) Morremos de doenças, de acidentes, de acasos. Morreremos de cegueira e de cancro, de cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida (AIDS?), de cegueira e de enfarte… (…) O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver…”

Quase no final do livro, o médico e a sua mulher chegam numa igreja onde a mulher do médico diz que parecia ter alucinações, pois o homem pregado na cruz tinha uma venda branca nos olhos, além de todas as outras imagens de santos também tinham vendas nos olhos: um homem com um livro aberto com um menino pequeno sentado, um velho de barbas compridas com três chaves nas mãos, um homem com o corpo cravejado de flechas e todos os outros santos tinham os olhos tapados. Só havia uma mulher que não tinham os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. “A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.

O final do livro não vou contar aqui. Mas garanto é surpreendente. E como todo bom livro, “Ensaio Sobre a Cegueira” também deu origem à um roteiro cinematográfico, cujo diretor, como já foi citado, foi um brasileiro que pegou toda a essência do livro. Em suma, pegue o livro e depois veja o filme. Ou o oposto, pois esse é um dos melhores livros da minha estante e acredito que vai arrebatar qualquer um. “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”. Estou louco agora para pegar o “Ensaio Sobre a Lucidez”, que também começa com um evento insólito. Num dia eleitoral, a maioria da população sai de casa para abarrotar as urnas com votos em branco. O sistema político entra em colapso, mas dessa vez o que se segue não é uma queda na loucura e na bestialidade. Ao contrário em o “Ensaio Sobre a Cegueira”, as pessoas neste livro são tomadas uma inquebrantável sensatez, que lhes permite manter as engrenagens funcionando.

Talvez, ainda hoje, o preconceito com a obra de Saramago seja por causa do gesto de total lucidez, mesmo na loucura, a rejeição sumária a todo o sistema do mais do mesmo que ai está. Pode-se concordar ou não. A questão nos seus livros não é ideológica, mas literária. Uma curiosidade: ao longo de sua vida, Saramago resistira em ceder os direitos sobre seus livros para o cinema. No entanto, em 2008, com a adaptação do “Ensaio Sobre a Cegueira”, ele ficou tão feliz com o resultado que ficou muito emocionado na pré-estreia – procure no YouTube. O filme obteve mundialmente críticas mistas, dividindo opiniões. O escritor disse a Meirelles “estar tão feliz de ter visto o filme como estava quando acabou de escrever o livro”. Em outra declaração, Saramago disse que “agora conhecia a cara de suas personagens”. Em suma, Saramago escreveu uma obra maravilhosa, não foi à toa que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura por este livro. (“ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”, de José Saramago, romance, 310 págs, 19 edição, Cia. das Letras – 2001)

Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina


do "Ensaio sobre a Cegueira" - a nota diz tudo

de Elenilson Nascimento 

Anotação enviada por Saramago aos amigos mais próximos, na tarde de 8 de agosto de 1995, anunciando que tinha acabado de escrever “Ensaio sobre a Cegueira”. 
(imagem: Fundação José Saramago)

I ENCONTRO IBÉRICO DE LEITORES SARAMAGO, 18/20 Novembro, Beja (Portugal) - Iniciativa de Diego Mesa


Mais informações podem ser consultadas, aqui 

Também colaboram neste projecto:
- A livraria A Das Artes de Joaquim Gonçalves (Sines), galardoada com diversos prémios e menções
Av. 25 de Abril, 8 - loja C - Sines / Tel. 269.630.954

- Carlos Marques e o Projecto al.gu.res - Colectivo de criação, 
através do espectáculo "Levantei-me do Chão"

"Caros amigos y amigas,

Ya tenemos el programa definitivo del Encuentro. La inscripción GRATUITA se podrá realizar en el correo: bibliotecamunicipalde beja@cm-beja.pt antes del día 3 de noviembre.

PROGRAMA
Dia 18 novembro (sexta feira / viernes)

17h00 – 18h30
Recepção/Recepción de los participantes

21h00
Sessão de abertura
Representante da Câmara Municipal de Beja
Directora regional de cultura – Ana Paula Amendoeira
Representante de la Consejería de Cultura de la Junta de Andalucía
Director Geral da DGLAG – Silvestre Lacerda
Aula Saramago – Diego Mesa
Centro Andaluz de Letras – Juan José Téllez
Representante da Fundação José Saramago
Conferencia inaugural pela Profª Odete Jubilado (Univ Évora)

22h30
As canções da poesía de Saramago, por Mário Sousa
Paco Damas canta Miguel Hernandez / Paco Damas canta a Miguel Hernández
Documentário “Nanas de la cebolla” de la serie “Andaluzas” sobre Josefina Manresa ,de Antonio Ramos Espejo.

DIA 19 novembro (sábado)
10h00
Aula Saramago
Apresentação/Presentación do projeto por Diego Mesa

11h00
Pausa

12h00
Levantado do chão
a leitura de Mário Sousa

13h00
Almoço/Almuerzo livre

14h30
A voz é do leitor/La voz de los lectores
Apresentações dos Leitores portugueses e espanhóis

16h30
Pausa

17h00
A voz é do leitor/La voz de los lectores
Apresentações dos Leitores portugueses e espanhóis

19h00
Encerramento/Cierre

19h30
Jantar livre

22h00
Levantei-me do chão – LADO B
Espectáculo de teatro por Carlos Marques
na Casa da Cultura de Beja

DIA 20 novembro (domingo)
10h00 – 13h00
Viagem a ….
Visita guiada a Beja percorrendo os lugares e memórias do livro “Viagem a Portugal”

A PROPÓSITO DE SARAMAGO
exposições e outras iniciativas

Levantado do chão
Exposição Mail Art / Arte postal
postais recebidos dos 4 cantos do mundo (iniciativa Aula Saramago)

Saramago à venda / Saramago en venta
Neste espaço poderá comprar os livros de José Saramago
(com a colaboração da Livraria A das Artes de Sines)"

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

"O Conto da Ilha Desconhecida" adaptado e encenado por Rita Lello - em cena no Teatro A Barraca

"Uma ilha onde os adultos entram pela mão das crianças"

"Elenco renovado da peça com Tiago Assis, Samuel Moura, Nádia Yracema e Rita Soares
Fotografia de Jorge Amaral/Global Imagens"

Mais informações aqui - Teatro A Barraca (Lisboa)

A presente reportagem foi publicada, via Diário de Notícias por Marina Marques, e pode ser recuperada e consultada, aqui
em http://www.dn.pt/artes/interior/uma-ilha-onde-os-adultos-entram-pela-mao-das-criancas-5428201.html

"Um homem desce as escadas, por entre o público, chega ao palco, e apresentando-se à porta do rei diz: "Dá-me um barco." Assim, mesmo, sem mais rodeios. A narradora contextualiza dando um significado aos adereços em palco: "A casa do rei tinha muitas portas, mas aquela era a das petições." O mote está lançado e o espaço físico enquadrado. À ação junta-se um rei que também será mais tarde capitão do porto e uma mulher da limpeza. É em torno destas personagens que gira O Conto da Ilha Desconhecida, um espetáculo adaptado e encenado por Rita Lello, a partir do texto de José Saramago.

Uma escolha pouco óbvia para um espetáculo pensado para crianças a partir dos 4 anos, reconhece Rita Lello. "Queríamos adaptar um Saramago para miúdos porque, na verdade, é uma escrita muito visual. E este Conto da Ilha Desconhecida é particularmente visual", explica. A Maior Flor do Mundo foi a primeira escolha, mas, sendo "uma viagem que passa por vários espaços físicos concretos, tornava-se difícil levar a cena". A escolha acabou por recair neste O Conto da Ilha Desconhecida porque, "como se trata de uma viagem interior torna mais possível a construção e a adaptação cénica", conta Rita Lello.

Essa não foi, no entanto, a única razão: "Optámos por este [texto] também porque é muito mais abrangente: veicula conceitos universais com os quais nascemos. Enquanto a sociedade não nos estragar, nós queremos todos partilhar, encontrar um caminho, aprender, evoluir, queremos todos justiça. E é sobre isso que este texto fala: encontrar o caminho para um sonho, para uma sociedade melhor. Mais justa. Ora, as crianças já nascem com isso e portanto são conceitos que não são difíceis de elas entenderem. São mais difíceis de um adulto abraçar do que as crianças entenderem". Por isso, acrescenta: "Este acaba por ser um espetáculo em que os pais entram pela mão das crianças... esperemos."

Esta é, de resto, uma das marcas do trabalho de Rita Lello. "Se calhar não podemos considerar nem o texto nem o espetáculo como sendo para infância. É um texto ao qual as crianças também aderem, mas é um texto verdadeiramente para todos. Esse foi sempre o trabalho que a mim me interessou fazer e à Barraca. Espetáculos para todos. Prefiro muito mais um teatro em que se crie um espaço de transversalidade em termos geracionais do que aquela coisa de fazer os espetáculos só para as crianças."

Outro traço do trabalho de Rita Lello é usar exclusivamente as palavras do autor em cena. "Neste caso levei o desafio ao limite e está o conto integral em cena", adianta. E para resolver a oscilação entre narração e ação, "temos personagens que narram tudo, que metem o bedelho nas ações das outras, e temos personagens que só se narram a si próprias, ou seja, narram a sua própria componente emocional ao mesmo tempo que a vivem", explica.

Outra curiosidade do espetáculo é o facto de os mecanismos de mudança de cenários, de som e luz estarem todos no palco, à vista de todos. Esta componente pedagógica "tem a dupla graça de serem os mesmos mecanismos nos barcos e nos teatros", destaca.

Estreado em 2006, e em cena por duas temporadas, já têm uma ideia da reação do público. "Tivemos reações maravilhosas de pais com os filhos ao colo a chorar de felicidade, porque o espetáculo é muito emocional, é sobre uma utopia. Acho que as pessoas saem deste espetáculo com o sonho alimentado, com a abertura de uma possibilidade de amor, de beleza, de partilha, de construção de uma sociedade alternativa onde as pessoas possam esperar ser felizes. Este homem corre e sabe para onde corre e consegue construir realmente o seu mundo, a sua vida, o seu futuro. Acho que é isso que comove as pessoas." E o pequeno trecho do Homem do Leme, dos Xutos & Pontapés, dá uma ajuda.

Ficha de espetáculo

O Conto da ilha desconhecida

De José Saramago

Adaptação e encenação de Rita Lello Teatro Cinearte, Largo de Santos, 2, Lisboa

Sábados às 15.00 e domingos às 11.00

Para maiores de 4 anos"

"Camões, Pessoa, Saramago : trois géo-stratégies littéraires" Conferência de Diogo Sardinha - Festival L'Incertitude (Paris - 3/11 18h30m)


Via Twitter
@BiblioGulbenkian
"Bibliothèque en Sciences Humaines sur le Portugal et les pays de langue portugaise. Retrouvez-nous également sur Facebook"

https://www.facebook.com/BibGulbenkian/
http://bibliotheque.gulbenkian-paris.org/


[#Festivalincertitude] Conférence : Camões, Pessoa, Saramago : trois géo-stratégies littéraires, par Diogo Sardinha, le 3 novembre à 18h30

"Camões, Pessoa, Saramago : trois géo-stratégies littéraires"

"José Saramago a imaginé, dans son roman "Le Radeau de pierre", un phénomène géologique par lequel la péninsule Ibérique se détache du sud de la France et se met à naviguer sur l'océan Atlantique, traînant l’Espagne et le Portugal vers une nouvelle destinée maritime. Paru en 1986, le livre fait écho à l’œuvre de deux écrivains majeurs, Camões, auteur du poème épique "Les Lusiades" qui, au XVIe siècle, chante le voyage de Vasco de Gama ; et Fernando Pessoa qui, au début du XXe siècle, met en vers le Portugal de la fin d’empire. Trois moments historiques sont ainsi recréés, fictionnés et fixés par le génie de trois écrivains. Nous prendrons leurs textes comme des visions des mondes qui leurs sont contemporains et des propositions pour ce que ces mondes allaient devenir.

Diogo Sardinha, ancien président du Collège international de philosophie, formé dans les universités de Lisbonne et de Paris-Nanterre, a travaillé aux universités Catholique de São Paulo, Freie de Berlin et Columbia de New York. Il est l’auteur d’"Ordre et temps dans la philosophie de Foucault" (2011) et de "L’Émancipation de Kant à Deleuze" (2013).

Organisé en partenariat avec le Centre de philosophie des sciences de l'université de Lisbonne."

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Homenagem a José Saramago pela plataforma "Hombres contra las violencias machistas"

Via Fundação José Saramago, aqui

"A peça que a "Hombres contra las violencias machistas" entregou na sexta-feira a Pilar del Río, homenageando José Saramago pelo seu trabalho na luta contra as violências machistas."




"La caverna, de José Saramago, es el libro protagonista de Léeme 10"

A Fundação José Saramago, através da sua página do Facebook em https://www.facebook.com/fjsaramago/ deu a conhecer a apresentação da obra "A Caverna", realizada pela Léeme 10, e que deixo os seus links para melhor conhecer este magnífico trabalho.

"Un mes más, ¡volvemos con otro capítulo de Léeme!
¿Crees que vives en la verdadera realidad? ¿Estás seguro de que lo que ves es lo que hay?
José Saramago no estaba muy seguro de que la realidad fuera igual a lo que nuestros sentidos perciben cada día. En el año 2000, el escritor portugués desempolvó el mito de la caverna de Platón y, basándose en las sombras y en los prisioneros que las contemplan, escribió una novela que, más que respuestas, sembrará muchas preguntas en tu mente.
Esta novela se llama "La caverna" y es la protagonista de Léeme 10. Para contártela, nos fuimos a Lisboa a grabar el episodio y entrevistamos a Pilar del Río, traductora y esposa de José Saramago. Todo esto y mucho más, como siempre, al otro lado del click :)"

"Un programa lleno de preguntas…
Al acabar de grabar este programa, no podíamos parar de pensar en la cantidad de preguntas que quedan en el aire con él, y por supuesto con La caverna, la novela que lo ha inspirado.
Preguntas sobre el futuro de la humanidad, sobre la responsabilidad que tenemos como ciudadanos, sobre el progreso, sobre nuestra conciencia…
Por eso, lo mejor que podemos hacer aquí es abrir el micro y preguntarte a ti: ¿Qué reflexiones te ha suscitado este Léeme 10? ¿Has sacado alguna conclusión, o, como José Saramago, prefieres seguir cuestionándotelo todo?
Cuéntanos en los comentarios 🙂 ¡Muchas gracias por estar ahí una vez más!
Y aquí va… pequeño álbum de fotos de Lisboa"

Mais trabalhos desta estupenda equipa, aqui 

O trabalho pode ser recuperado e consultado via YouTube, aqui

"En el año 2000, justo antes del cambio de siglo, el escritor portugués José Saramago publicó una novela que te enfrentará contigo mismo: con todo lo que crees y valoras y con todo lo que das por bueno. ¿Consumimos demasiado? ¿Estamos progresando descontroladamente? ¿Todo esto puede hacernos realmente felices? Éstas son sólo algunas de las preguntas que te surgirán cuando leas "La caverna", de José Saramago. ¿Te vienes con nosotros a Lisboa?

Léeme 10 incluye una entrevista a Pilar del Río, traductora y esposa de José Saramago y actual presidenta de la Fundación Saramago.

Presentado y guionizado por Irene Rodrigo.
Director artístico e ilustrador: Nacho Vergara.
Cabecera: Sumaya Barber."

"Está lá tudo - A crônica e o cosmos de José Saramago" de Saulo Gomes Thimoteo (Appris Editora BR) via "Um caderno para Saramago"

O "Blog Um caderno para Saramago" apresentou a obra de Saulo Gomes Thimóteo - "Está lá tudo - A crônica e o cosmos de José Saramago". 
Refere na sinopse de apresentação que (...) "o cronista Saramago, que, ao longo de oito anos (1969-1976), escreveu aproximadamente 300 crônicas, antecede o romancista Saramago". (...)

Pode ser consultado aqui 


Imagem da capa da obra, retirada da página da Appris Edifora

"Este livro é sobre José Saramago esquecido, ou, pelo menos, ocultado. O cronista Saramago, que, ao longo de oito anos (1969-1976), escreveu aproximadamente 300 crônicas, antecede o romancista Saramago, consagrado por Levantado do chão (1980) ou Memorial do convento (1982), mas, como ele mesmo continuamente apontaria sobre sua participação jornalística: “Está lá tudo”. Mas o que vem a ser esse tudo que as crônicas contêm? Não os roteiros dos romances, por certo, mas sim os primeiros ensaios em prosa das preocupações contínuas do cidadão-escritor Saramago. Já se pode notar o questionamento reiterado da História, do Indivíduo, da Sociedade, ou seja, de todas as verdades inamovíveis que refletem uma imposição do poder. A crônica, enquanto híbrido da Literatura e do Jornalismo, permite à palavra que atue como mecanismo de desvendamento, podendo abordar todos os assuntos com o mesmo tom de conversa e aparente despretensão. Cabe, então, a José Saramago cronista constituir-se como viajante em busca de compreender a paisagem do mundo e as suas transposições possíveis em linguagem. Assim se apresenta o livro "Está lá tudo": a crônica e o cosmos de José Saramago, de Saulo Gomes Thimóteo. A edição é da Appris Editora."

Aconselhamos a visita ao blog e aos links associados para acompanhar as novidades e notícias que envolvem não só a obra de José Saramago mas como os eventos que se realizam à volta do nome desta figura mundial. Podem seguir aqui





domingo, 23 de outubro de 2016

"Os 12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos" - pela Revista Estante (FNAC - Outubro 2016)

"OS 12 MELHORES LIVROS PORTUGUESES DOS ÚLTIMOS 100 ANOS"

"A Estante convidou um júri de cinco elementos, composto pela jornalista Clara Ferreira Alves, o crítico Pedro Mexia, o professor catedrático Carlos Reis, o editor Manuel Alberto Valente e a jornalista Isabel Lucas, para eleger os 12 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos. Este é o resultado.

Por: Catarina Sousa | Ilustração: Gonçalo Viana | Fotografias: Bruno Colaço/4SEE"



AO LONGO DE DEZ EDIÇÕES a revista Estante tem vindo a entrevistar muitos autores portugueses, explorando várias temáticas nas quais a língua portuguesa surge como pano de fundo. Tínhamos desde o início uma vontade que transformámos em desafio e materializámos em iniciativa: eleger os melhores livros portugueses.

Não procurávamos uma lista demasiado extensa. Queríamos que os decisores fossem pessoas dos mais variados quadrantes, mas personalidades respeitadas e conhecedoras do mundo da literatura em Portugal. Cinco pessoas aceitaram o nosso convite: o professor e ensaísta Carlos Reis; a jornalista e escritora Clara Ferreira Alves; a jornalista Isabel Lucas; o editor da Porto Editora, Manuel Alberto Valente; e o crítico literário e assessor cultural do Presidente da República, Pedro Mexia.

O desafio não se adivinhava fácil: escolher os melhores livros portugueses dos últimos 100 anos. Contudo, reunidos à volta de uma mesa, a escolha foi até bastante rápida.

O júri selecionou os melhores livros portugueses dos últimos 100 anos, restringindo a escolha a obras de ficção narrativa publicadas entre 1 de janeiro de 1916 e 1 de janeiro de 2016. A eleição recaiu sobre os 12 livros que se apresentam abaixo, sem qualquer ordem a não ser a alfabética.

Curiosamente, entre os autores dos livros selecionados apenas dois estão vivos: António Lobo Antunes e Agustina Bessa-Luís. Deixamos mais informação sobre cada um destes livros que ajudam não só a justificar a escolha do júri, mas a enquadrar a importância de cada uma das obras na literatura portuguesa dos últimos 100 anos.

A equipa da Estante estabeleceu alguns critérios que considerou pertinentes para a seleção dos melhores livros portugueses.
1. Os livros devem ter sido originalmente publicados a partir do dia 1 de janeiro de 1916.
2. Os autores devem ser de nacionalidade portuguesa.
3. As obras em causa devem ser de ficção.
4. Podem ser incluídas edições de autor."


"O Ano da Morte de Ricardo Reis" - José Saramago
A obra de José Saramago (1922-2010) é tão singular que lhe valeu o Prémio Nobel de Literatura – o único que Portugal recebeu até hoje nesta área.
O Ano da Morte de Ricardo Reis é não só peculiar como faz por questionar tudo o que nos rodeia. Quem somos? O que nos acontece quando morremos? Somos únicos ou, como Fernando Pessoa, somos vários?

O livro conta a história do regresso a Portugal, vindo do Brasil, de Ricardo Reis, o heterónimo de Pessoa, quando confrontado com a morte do seu criador. É um livro denso mas vai envolvendo o leitor do início ao fim, fazendo também uma viagem pela história de Portugal.

AS PRIMEIRAS FRASES
“Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias.”

SOBRE O AUTOR
“Falava e escrevia com o desassombro e com a clareza que a alguns desagradava, mas que para ele eram uma forma inalienável de respiração intelectual.”
Carlos Reis


A compilação das 12 obras escolhidas

"Problema de Homens" publicado no post online do "Outros Cadernos de Saramago" e no livro do blog

Pode ser recuperado através do site da Fundação José Saramago, aqui
em http://www.josesaramago.org/problema-de-homens-texto-publicado-no-blogue-a-27-de-julho-de-2009/ e http://caderno.josesaramago.org/54038.html

"Problema de Homens (publicado originalmente a 27 de julho de 2009)"

"Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que crêem ser seus donos.
Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume, é certo que só pouco a pouco, que esta violência é um problema dos homens e que os homens têm de resolver.
De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres quem saía à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo. A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio.
É o problema das mulheres, diz-se, e isso não é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável cobardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica. Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade e com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e à violência. Direito a usar o que consideravam seu. Este novo acto de violência de género, mais os que se produziram neste fim-de-semana, em Madrid uma menina assassinada, em Toledo uma mulher de 33 anos morta diante da sua filha de seis, deveriam ter feito sair os homens à rua.
Talvez 100 mil homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de género, com resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores e preocupações dos cidadãos. É um sonho, é um dever. Pode não ser uma utopia."

In O Caderno, José Saramago

De Violante Saramago Matos "A memória do meu pai, o Nobel" via Público (Márcio Berenguer - 16/10/2016)

A reportagem pode ser recuperada e consultada, aqui

Publicada pelo jornalista Márcio Berenguer - 16/10/2016


"Violante Saramago Matos viajou ao passado até 8 de Outubro de 1998, dia em que se soube da distinção máxima da Academia Sueca para o seu pai, o escritor José Saramago. Sobre Bob Dylan diz: “Penso que foi uma forma da Academia reconhecer que a literatura não é feita apenas de romances"

A certa altura deixamos de falar sobre isso. Naquele ano de 1998 o Nobel não era um tema tabu. Simplesmente não era um tema. Não povoava as nossas conversas. Há muito que não. Antes conversávamos muito sobre ele. Ciclicamente, claro. Já era tempo de a Academia Sueca olhar para a língua portuguesa. Seria este ano o ano? Mas o reconhecimento ia sempre para outro lugar, para outro nome, que não este.

Naquele ano de 1998 já não falávamos sobre isso. É verdade.

Antes, tentávamos descodificar os sinais políticos — há sempre uma componente política nestas coisas —, olhar para quem tinha recebido antes e para quem poderia ser galardoado depois. Demorávamo-nos a discorrer sobre a actualidade, numa tentativa de antecipar o que poderia ou não vir. Percorrer os nobelizáveis e os outros, que não sendo, podiam vir a ser. Mas naquele ano não. Falávamos de outras coisas. De livros. De nós.

Era de manhã. A meio da manhã. É aí que me situo na memória daquele dia. Estava numa reunião na Câmara do Funchal. Era vereadora, na altura. Eleita como independente pelo Partido Socialista. Estava no meio de uma discussão com o Ricardo Silva, do PSD, responsável pelo urbanismo da cidade. Foi o [André] Escórcio que bateu à porta — ou melhor, entrou esbaforido pela sala adentro, chamando o meu nome. “Espera, espera”, disse eu com um gesto de enfado. Insistiu o Escórcio. Insistiu muito. Uma, duas, três vezes: “Violante, Violante, Violante.” A minha resposta sempre a mesma. Sempre a gesticular, cada vez mais exaltada. “Agora não. Agora não, já disse!” Insistiu: “O teu pai. É sobre o teu pai.” Parei de imediato. Já tinha toda a minha atenção. Gelei. Olhei-o de frente. “O meu pai? O que aconteceu ao meu pai?” “Estão a dizer que ganhou o Nobel.” A reunião terminou aí.     

Ele estava em Frankfurt, na Feira do Livro, e eu na Madeira. Em 1998, era como se ele estivesse no outro lado do mundo, numa ilha deserta. Não existiam as ligações rápidas, instantâneas, como agora. Era outra velocidade. Parece outro século. Era mesmo. Outro século, outro tempo. Liguei várias vezes. Perdi a conta de quantas. Ele deve ter feito o mesmo. Não sei. Sei que só a meio da tarde é que conseguimos falar. Foi ele que ligou, de um número que não era o dele. Não sei de quem era. Não perguntei. Importa? O que falámos? O que eu disse? Parabéns. Um beijo. Muitos. Mil beijinhos. Eu sei lá o que disse. Um amor que não se descreve, nem escreve. Um desejo imenso de o abraçar. Foi isso.

Tive de esperar. Um dia, dois. Foi uma semana de loucos. Nunca estamos realmente preparados para estas grandes coisas. Para as grandes emoções que nos assaltam assim, sem pedirem licença para entrar. Não conseguia reagir. Só o vi em Lisboa, quando chegou vindo de Lanzarote. Era eu entre muitos que o esperavam. Um Nobel português, num ano de Expo. É um pouco como agora, com a selecção na Europa e Guterres na ONU. Havia muito entusiasmo. Muita portugalidade. Um mar de personalidades no aeroporto. Senti, naquele momento, que todos ali tinham mais que ver com ele do que eu. Foi estranho sentir-me assim. Eu era a filha, a única filha. Só queria dar-lhe um beijinho, mas tive de esperar. Digo isto sem qualquer animosidade. Mas eu era a filha... não é?

Toda a minha vida cresci com este sentimento. Ainda o guardo. O de ser filha de. Durante anos fui filha de. É coisa boa quando a herança do nome dos pais nos enche o coração, mas é coisa difícil quando o tamanho do nome dos pais nos abafa o ser. Então é preciso saber emergir das águas daqueles dois caudais de talento, saber quem somos para além da grandeza deles, saber em que cruzamento — das duas ruas por onde correm dois nomes maiores da nossa cultura — fica a nossa esquina.

E ali estava eu agora. Naquela esquina do aeroporto. Ao olhar aquele homem, no meio da multidão, onde tantos viam frieza, distanciamento e má disposição, eu encontrava os afectos que transbordavam dos seus livros e das relações humanas, familiares. Um homem extremamente tímido, reservado, que vestia uma couraça para se proteger dessa timidez espantosa. E ele ali, no centro daquela celebração, e eu do outro lado do muro de pessoas. Tão próxima. Tão distante. A observar. Com um orgulho imenso no peito que levaria comigo — ainda o trago — para Estocolmo.

Não era só o prémio, o Nobel. Foram os fundamentos — “com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia” — da Academia Sueca para distinguir José Saramago. O ser maior do que um escritor. Um filósofo, como o meu filho, ainda pequeno, um dia disse. Só esses fundamentos bastavam-me. Mas havia mais. Quanto orgulho consegue segurar uma pessoa?

No banquete, na câmara de Estocolmo, onde o meu pai se sentou ao lado da rainha, encontrei mais razões para vibrar por aquele homem que era meu pai. Há uma espécie de hierarquia naquela cerimónia. Uma hierarquia mal disfarçada. Os laureados são dispostos no salão obedecendo a uma qualquer ordem de importância. E eu estava ali, com ele, a Pilar e a minha filha (cada um dos premiados só tem direito a levar três pessoas) na mesa de honra. O Danilo [o marido] e o meu filho ficaram em cima, na plateia.

A gente abala quando vive um momento daqueles. Abana quando ouve aquele discurso. Aquelas palavras imensas. Ainda hoje as guardo. Os Discursos de Estocolmo e o Ensaio sobre a Cegueira continuam à minha cabeceira, vou regressando a eles amiúde.  

É uma maneira de celebrar José Saramago escritor. O país ainda o celebra. Festeja, mesmo. Deixa-me feliz saber isso — que depois de tantos anos ainda o lemos. Penso que ele também ficaria — ter presenciado, ter vivido a reconciliação com um país onde nasceu e cresceu foi importante para ele. Eu vi isso. Conversámos sobre isso —para lá dos Sousas Laras daquele Portugal pequeno, do Cavaco, com quem ele nunca mais falou. O que aconteceu com o Evangelho segundo Jesus Cristo deixou-o sentido. Triste, até. Quem não ficaria? Mas tudo isso foi ultrapassado.

Lê-lo é a maior homenagem. Continuar a mergulhar nos livros é festejar um autor, um homem, um pai que mais do que intransigente, que o era em questões de princípios, era essencialmente muito exigente. Basta ler com atenção a obra que deixou, que transcende a simples literatura. Se é que podemos falar de literatura simples.

Ele também era tudo menos simples. Recusava as respostas prontas. O sim e o não ficavam de fora das nossas questões. Queria que pensássemos. Era assim que ele era como pai, como escritor e como cidadão interventivo. Não existiam vários Saramagos. O que ele foi, o que ele era está ali, na obra que deixou. Estar a ler o meu pai é como estar a ouvi-lo falar, porque ele escrevia como falava. Não era um homem de sim e não, era um homem que respondia, procurando sempre uma explicação.

É assim que recordo o meu pai. É assim que guardo aquele ano de 1998, em que já não falávamos do Nobel e ele apareceu.

Depoimento recolhido pelo jornalista Márcio Berenguer"

"A Maior Flor do Mundo" conto infantil de José Saramago catalogado pela "The White Ravens International Youth Library"

"The White Ravens - International Youth Library
A Selection of International Children's and Youth Literature"



Pode ser consultado aqui 



"A maior flor do mundo"
(The biggest flower in the world)

Saramago, José (text)
Letria, André (illus.)
Porto: Porto Editora, 2015. – [48] p.
ISBN 978-972-0-72821-0
the first edition containing these illustrations (Ed. Caminho, 2013) is no longer available
Love of nature  | Children's literature  | Storytelling  | Simplicity

White Ravens issue: 2016
Reading age: 6+

"Nobel Prize-winner José Saramago (1922-2010) plays a double game in this story: he first laments his inability to write for children, because he can’t write in a simple way. If only he could do so, he would write the most beautiful of all children’s stories – he then proceeds to explain what would happen in that story, were he but able to write it… Finally, Saramago does go on to tell a “real” story, delicate and touching, about a boy who saves a flower from dying of thirst high on a mountain, which then becomes the biggest flower in the world. It is a great story for adults and children alike about the art of storytelling and writing, the art and beauty of simplicity and about a child who surpasses himself. The text, first published in 2001 with illustrations by João Caetano, here is newly interpreted by illustrator André Letria. Part straightforward, part mysterious and poetically powerful, his illustrations truly complement the great author’s literary masterstroke."

"Salman Rushdie ao encontro de Camões, Pessoa e Saramago" - Via Notícias Magazine (16/10/2016)

"Um dia em Lisboa com o escritor britânico." 

A presente reportagem pode ser recuperada e consultada, aqui
em http://www.noticiasmagazine.pt/2016/salman-rushdie-ao-encontro-de-camoes-pessoa-e-saramago/

"Salman Rushdie no Festival FOLIO. 
Fotografia Henriques da Cunha/Global Imagens"

"O escritor esteve em Portugal para participar no festival de Óbidos. Em Lisboa, sem se armar em turista, andou a percorrer as capelinhas literárias: Camões, Pessoa e Saramago.
Pronunciar o nome do escritor Salman Rushdie é recordar a fatwa que o amaldi­çoou de morte por ter publicado o roman­ce Versículos Satânicos. Esteve escondido e rodeado de guarda-costas durante mais de uma década e ainda hoje tem um par de ho­mens de corpo treinado sempre por perto. Não que o queira, mas os serviços secretos portugueses – SIS – acharam melhor preve­nir em vez de remediar. A vigilância não evi­tou que Rushdie peregrinasse durante um dia por Lisboa, após ter estado no Festival Literário de Óbidos, o Folio.
Não o fez como simples turista. Portugal e a sua história está muitas vezes presente nos seus livros, como é o caso do mais recente – Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites –, um título que, somadas as noites, dá as mil e uma de Xerazade, e em que o autor conta a história de Gerónimo Manezes, a personagem de que mais gosta neste romance e que descenderá de algum Menezes português: «Com o passar do tempo, as pessoas começaram a pronunciar mal os nomes. Ele é de Goa, membro dessa minoria cristã que tinha sempre nomes portugueses devido à presença colonial.» Além de Menezes, há muitos outros nomes lusos na sua obra, tal como Camões, personagem de O Último Suspiro do Mouro. Uma inspiração vinda do poeta português, que Salman Rushdie visitou na praça com o seu nome em Lisboa e com a estátua de quem quis tirar uma fotografia.
No próximo romance, que está três quartos escrito, não existem nomes portugueses: «Peço desculpa», diz, sorrindo. Em Salman Rushdie, o sorriso e até a gargalhada estão sempre presentes.
Camões não foi o único escritor português com quem quis tirar uma fotografia e, assim como milhões de estrangeiros que sobem até ao Chiado, também se sentou na cadeira ao lado de Fernando Pessoa, ali tão perto de A Brasileira, e lá se fez fotografar."

«Conheci Pessoa através da leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Eu era um grande fã de Saramago e tive a sorte de o conhecer razoavelmente.»

"Não foi por acaso, confirma-se, que nesta peregrinação lisboeta também fez questão de visitar a Casa dos Bicos, onde se deparou com uma boa recordação: «Encontrei lá uma fotografia nossa em Santiago de Compostela, onde nos conhecemos.»
Quanto a Pessoa, Rushdie revela que ficou muito surpreendido com os heterónimos: «É uma obra apaixonante e espantosa como nunca vi entre escritores.»
À provocação de que mais parece um ator do que um escritor tal é o à-vontade no momento em que sobe ao palco, como aconteceu em Óbidos, Rushdie volta a sorrir e garante que ficou surpreendido com o entusiasmo da audiência portuguesa: «Existem muitos escritores que não gostam da coisa pública, mas eu aprecio estar com os meus leitores porque escrever ou ler são situações de recolhimento. Tenho a sorte de os meus editores em Portugal publicarem tudo o que escrevo e manterem os livros disponíveis. Por isso, tenho uma boa presença no país há muito tempo.»

A recordação das suas visitas anteriores a Portugal, a Lisboa e ao Porto várias vezes, leva-o ao Palácio de Queluz, nos anos 1980: «Estive lá, num festival literário fabuloso organizado por Ann Getty, que foi o mais luxuoso evento literário de toda a história da literatura. Fomos instalados no Hotel Ritz, havia limusinas para nos levar até ao palácio, onde se reuniram muitos dos grandes escritores mundiais. Foi um encontro deslumbrante, que ficou marcado por ser a primeira vez que os escritores russos de verdade foram autorizados pelas autoridades a deixar a Rússia em vez de enviarem os escritores do regime. Tatiana Tolstói nunca tinha saído do país durante toda a sua vida, e convidaram os russos emigrados, como o Nobel, Joseph Brodsky. E também lá encontrei Antonio Tabucchi, Ian McEwan, Martin Amis… Estavam todos.»
A presença de Portugal nos seus livros não acontece apenas devido a essas boas memórias, como esclarece: «Na Índia, houve uma presença colonial portuguesa muito forte em Goa e o catolicismo romano espalhou-se no país devido a essa presença. Ainda hoje muitas pessoas dessa parte da Índia têm nomes portugueses, que permanecem em sucessivas gerações de cidadãos indianos cristãos, muitos deles falavam português como segunda ou terceira língua.» Como história puxa história, Rushdie acrescenta: «Há uma parte de Bombaim, Bandra, onde O Último Suspiro do Mouro se passa, que se mantém uma área onde vivem muitos cristãos e onde é quase impossível a alguém não cristão comprar um apartamento. Não vendem porque querem preservar a área como cristã, local onde vivem muitas pessoas que se chamam Pinto ou Fernando. Aliás, tenho amigos escritores indianos que têm esse legado: o Jerry Pinto ou Naresh Fernandes. São nomes muito comuns por causa do colonialismo.»
Quanto a ter posto duas famílias portuguesas nesse livro, Rushdie explica que o primeiro contacto entre a Índia e o Ocidente foi com a chegada de Vasco da Gama: «Esse momento é o início de tudo, e Gama não ia para conquistar mas para fazer comércio, porque aquela costa era famosa pelas especiarias picantes, a pimenta e a canela, ingredientes que deixavam a comida europeia com mais sabor. Daí que haja muita gente na Índia que também tenha como apelido Da Gama, foi um nome que ficou. Em Cochim até há uma igreja onde se pode ver o túmulo do navegador, mesmo que já lá não esteja porque uma dúzia de anos depois foi trasladado para o Mosteiro dos Jerónimos.»
Adianta como a sua ligação literária com Portugal começa: «Como queria escrever um romance sobre minorias na Índia, escolhi essa pequena minoria cristã e acrescentei uma minoria ainda menor de judeus, criando então casamentos entre eles, de que resultaram minorias ainda mais pequenas, para mostrar que houve um tempo na Índia em que as pessoas não queriam que a experiência espiritual fosse uma única. Foi por isso que fiquei muito feliz ao tirar uma fotografia ao lado da estátua de Camões, porque usei o seu nome numa das personagens.»
Com o rio Tejo ao fundo, pergunta-se porque é que decidiu colocá-lo, e ao Douro também, nesse seu livro. Ouve surpreendido a questão e responde de imediato: «Estudei História na universidade e sei a sua importância [do rio Tejo] nas campanhas militares; quanto ao Douro, conheço a presença das companhias de vinho do Porto que, historicamente, são propriedades inglesas. Além de ter estado junto deles várias vezes, li sobre esses rios. Quero sempre conhecer o material com que trabalho, por isso não é difícil recuperar as recordações, mesmo que com o passar do tempo confie cada vez menos na minha memória. Agora confirmo as lembranças cada vez mais porque a memória brinca connosco e tem os seus truques; pensamos que uma determinada igreja está numa rua mas afinal encontra-se duas ruas acima. Esses são erros estúpidos que não quero fazer, portanto verifico tudo o que coloco nas páginas.»
Salman Rushdie muda o rumo da conversa e alerta para o facto de estar perto de cumprir 70 anos de vida e considerar que é tempo de fazer outras coisas.
«Já disse a mim próprio que após acabar o próximo romance irei fazer alguma coisa diferente em vez de começar outro livro.» Quando se lhe pergunta o quê, o escritor volta a sorrir: «Talvez seja a oportunidade de finalmente tentar aos 70 anos fazer tudo o que ainda não consegui.»
E confessa: «Eu queria ser ator quando era jovem, esse era o meu sonho, desfeito porque apenas consegui pequenos papéis. Hoje, lamento não ter lutado um pouco mais, pois agora se me escolherem para um elenco sou demasiado conhecido e será difícil para o público ver-me como uma personagem em vez de Salman Rushdie vestido como personagem. Terei de tornar-me noutra coisa e mudar o meu aspeto completamente, tal como pôr um nariz falso e mais cabelo. É o que faz ter ficado conhecido por uma profissão.»
O desejo de mudar de vida aos 70 anos continua a dominar a conversa: «Quando se é jovem temos a fantasia de que podemos ser muitas coisas e eu sempre pensei que estaria mais envolvido em teatro. No entanto, gosto tanto desta arte e nunca escrevi uma peça, apenas colaborei na adaptação de dois livros para teatro.» Seria capaz de escrever uma peça? «Sinto-me surpreendido por ter chegado a esta idade e nunca o ter feito», diz, «até porque a minha grande paixão é o cinema e não a literatura, e sou um grande “aficionado”. Também nessa área só uma vez na minha vida é que escrevi um guião sobre um livro meu. Surpreende-me não ter feito mais nessa área. Vivemos num tempo em que as séries de televisão são muito interessantes e há muita gente que me pede para desenvolver alguma coisa nessa área. Eu estou interessado, mesmo que não saiba o que fazer. Será o meu próximo desafio, espero.»
Ao falar do seu interesse no cinema, vem à memória uma página da sua autobiografia sobre os tempos escondidos após a ameaça do islão à sua vida, o livro Joseph Anto, em que conta uma zanga com o produtor português Paulo Branco: «Oh meu Deus, lembra-se disso… Esse foi um momento muito estranho, mas não foi bem ele que estava em causa, era mais a dificuldade em chegar a um acordo com o realizador Raoul Ruiz, que queria filmar O Chão Que Ela Pisa, mas a nossa relação nunca funcionou, nem senti que o meu trabalho estivesse em mãos seguras e que entendiam a natureza do meu romance. Portanto, o filme não aconteceu e ainda bem. Paulo Branco é um dos grandes produtores independentes e fez centenas de filmes, o problema foi com o realizador.»

Questiona-se Rushdie sobre a presença frequente de profetas no seus livros, mas essa é uma situação de que não quer falar muito, porque considera ser produto de uma sátira e nunca muito bem retratados nos seus livros: «A ideia de se adivinhar o futuro não me agrada e na minha vida desconheço tudo o que me irá acontecer depois de amanhã. Perguntam-me quem vai ganhar as eleições americanas e eu não sei o que dizer. Posso referir o que penso, o que considero certo ou errado, o que gostaria que acontecesse, nada mais. E esta é uma grande questão, até porque espero que estejam errados os que acham que Donald Trump vai ganhar. Há cinco semanas também o pensava, mas têm sido tempos maus para a sua campanha e espero que haja mais semanas más para ele.»
Desfaz o ar sério dos últimos instantes quando se lhe diz que o leitor ri-se enquanto lê os seus livros. Também se ri enquanto os escreve? «Às vezes. Neste livro queria ser descontraído e divertido e só após ter encontrado a solução para os problemas do registo e aquilo que queria transmitir, o que às vezes demora bastante tempo, é que me diverti a fazê-lo.»
Neste último romance há uma situação estranha, a presença de referências pouco habituais para um homem da sua idade, como as dos fenómenos da juventude: «Eu não sou um escritor igual aos outros, é só o que posso dizer. Escrevo sobre o mundo que observo e é muito importante não ficarmos parados no tempo e ter apenas um grupo de amigos com a mesma idade. Tal como faço no que leio, porque o normal quando se envelhece é parar de ler as novidades dos escritores mais novos do que nós. O que é um erro, pois repara-se, como acontece com o Woody Allen, que não perceciona como os mais novos estão a viver de forma diferente. Num dos seus filmes, põe a Emma Stone a dizer uma deixa que jamais uma pessoa da sua idade diria. Ou seja, como não quero fazer esse tipo de erros estúpidos por se desconhecer o que se retrata, tenho amigos num grande espetro de idades e sinto-me capaz de ter o pulso do que está a acontecer. Uma das coisas que inspiram este livro é essa nova geração de escritores americanos muito mais novos do que eu, que são imigrantes vindos de todo o lado – Junot Diaz, por exemplo – que trazem o mundo atual para a literatura americana.»
Salman Rushdie revê neles a verdadeira literatura americana, por isso refere que «a América tem sido muitas vezes enriquecida pelos imigrantes», que agora não são apenas italianos ou judeus, mas que vêm de todo o lado e a alimentam. Aproveita para avisar: «Também eu sou agora um cidadão americano.» Continua: «Ler os escritores mais novos dá-me ideias, porque a inspiração nem sempre vai dos mais velhos para os mais novos, pode ser ao contrário.»
É altura de fazer a avaliação do estado do grande romance americano, sobre o qual Rushdie tem uma perspetiva muito clara: «Ninguém comprou o Cidade em Chamas, do Garth Risk Hallberg. Ele coloca o romance num período que conheço muito bem, uma Nova Iorque que desconhece por ser demasiado jovem. Portanto, baseia-se mais em investigação do que em experiências vividas. Nesse tempo, era uma cidade muito diferente, pobre e cheia de vendedores de droga, prostitutas, e a Times Square estava cheia de cinemas porno, mas era uma cidade barata, para onde ia toda a gente que criava: pintores, realizadores, atores, escritores, dançarinos, todos. E esse espírito não está no livro.» Prefere falar de Jonathan Franzen: «Gosto dele, tal como de todos os escritores que se chamam Jonathan: Franzen, Littel, Safron Foer. Se se quer ser um escritor americano deve chamar-se Jonathan…» Mas é anti-Karl Ove Knausgard… «Não sou anti, diria que não é o meu género de escrita. Acho bom, mas tanto ele como a Elena Ferrante fazem um tipo de autoficção que, sendo bem feita, não é parecido com nada que eu queira escrever.»
A terminar a conversa, não se deixa cair Nova Iorque e lembra-se a coincidência de o seu romance Fúria ter sido lançado exatamente no dia 11 de setembro de 2001: «Um mau dia para lançar um livro, principalmente quando tinha sido escrito com o objetivo de ser uma sátira contemporânea sobre a cidade e se tornou logo, por causa dos atentados que a alteraram para sempre, um romance histórico a partir desse dia. Foi muito estranho ter escolhido esse dia para lançar um romance!»"

UM DIA COM SALMAN RUSHDIE NA CAPITAL
Por José Manuel Diogo, diretor de comunicação do Folio

"Ele queria ver Lisboa. E nós fomos. Saímos de Óbidos manhã cedinho e viemos, A8 abaixo, a descobrir Quixotes nos moinhos elétricos que bordejam a autoestrada do Oeste até que, dobrada a Calçada de Carriche, nos inundou a luz do Tejo.
Descemos para o rio a contar os reflexos da luz bruta e límpida, com que o Tejo enche Lisboa. Andámos desde o Miradouro de São Pedro de Alcântara até à Casa dos Bicos. Íamos visitar Pilar del Río, que queria muito que Salman Rushdie conhecesse a Fundação Saramago. Estacionámos por baixo do Camões, abandonámos o carro e perdemo-nos nas ruas. Não é todos os dias que se pode passear, de Camões a Saramago, contando as histórias de Lisboa a um dos maiores escritores da atualidade."

"O escritor com Pilar del Río, no Largo Camões, em Lisboa. 
Fotografia José Manuel Diogo"

"Salman Rushdie gostou de ser fotografado ao pé dos imortais escritores portugueses. Sentou-se na esplanada da Brasileira do Chiado e posou sentado, junto ao Pessoa, de Lagoa Henriques. Descemos a Garrett, curvámos à esquerda na Rua do Carmo e por baixo do Elevador de Santa Justa entrámos na Lisboa de Pombal. Luz e mais luz, numa manhã ensolarada. Pausa para café no Martinho da Arcada e mais uma memória inesquecível. Rushdie de pés cruzados, na forma de Almada, na mesa que o imortal café da Praça do Comércio tem reservada para Fernando Pessoa até à eternidade. Houve quem se perguntasse se pelo Cais das Colunas tinha chegado outro heterónimo. Pela Rua da Alfândega chegámos à Casa dos Bicos. Pilar levou-nos por uma viagem onde Rushdie encontrava de novo Saramago. Em frente à medalha Nobel, que o escritor português ganhou em 1998, trocaram votos de futuros. A vontade de um no passado de outro. Saímos apressados pela porta das traseiras. Táxi! A plataforma da Uber estava em baixo e regressámos ao Camões dentro de um carro negro e verde em que o motorista reconheceu o escritor.
– Parece o Salman Rushdie? – disse o taxista. – E a senhora é a viúva do Zé Saramago, retorqui. – Pois, pois – disse o homem troçando –, e eu sou o Fernando Pessoa!
– E se calhar era. Há coisas que nunca se sabem!"

Leia mais: Salman Rushdie ao encontro de Camões, Pessoa e Saramago http://www.noticiasmagazine.pt/2016/salman-rushdie-ao-encontro-de-camoes-pessoa-e-saramago/#ixzz4NtYdQOKO



Epígrafe da edição #53 Revista Blimunda - Outubro de 2016