Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Entrevista de Luís Antônio Giron a José Saramago - lançamento da obra "As Intermitências da Morte" (31/10/2005) - Revista Época

Luiz Schwarcz e José Saramago durante a última passagem do escritor pelo Brasil, 
para o lançamento mundial de "A viagem do elefante", em 2008.


"Desventuras em série" - José Saramago critica a corrupção no governo Lula, teme pelas esquerdas, pela Amazônia e fala da morte em seu novo livro

Entrevista de Luís Antônio Giron a José Saramago (31/10/2005) - Revista Época

"José Saramago está lançando mundialmente, no Brasil, seu novo romance, As Intermitências da Morte (Companhia das Letras, 208 págs.). Na semana passada e no início desta, ele fez palestras de apresentação e leu trechos do livro. Pretende fazer o mesmo em Portugal a partir de 11 de novembro.

A nova ficção do premiado autor aborda um tema tabu - que, como tal, faz parte da vida de todos, mas cada vez mais as pessoas anseiam ocultar: a morte. Tanto a morte de cada indivíduo como a do planeta Terra, ameaçado por desastres climáticos e pela destruição humana dos recursos naturais. É tanto uma parábola sobre a condição mortal como uma alegoria malthusiana. De repente em certo país, conta o livro, ninguém morre mais. As conseqüências são as mais destrutivas: as empresas funerárias e a Igreja Católica entram em colapso (afinal, a morte é o motor de suas atividades), as pessoas são condenadas a viver eternamente, cada vez mais velhas e alquebradas, o planeta cai no caos. Como veio, a morte se vai. Encarna em uma linda mulher para se dedicar a um violoncelista, condenado a morrer aos 49 anos. Mas já haviam passado alguns meses do prazo. O envolvimento da morte com o músico leva a um desfecho inesperado. Mais uma vez, Saramago utiliza a ficção para discutir suas idéias sobre o homem, a sociedade e o futuro do planeta.

Com ótimo humor, ele concedeu uma longa entrevista a ÉPOCA no jardim da casa em que estava hospedado em São Paulo. Saramago comentou sua nova narrativa, criticou Lula (que havia apoiado) e os escândalos de corrupção que paralisaram o governo brasileiro e avaliou o deserto ético que a esquerda atravessa. Apesar de tudo, continua a se denominar 'comunista'.

ÉPOCA - O Nobel alterou sua vida?
José Saramago - Sou a mesma pessoa. Mas é claro que os convites e solicitações aumentaram. Sempre fui um sujeito ativo que gosta de fazer intervenções públicas. O que faço hoje é aproveitar a situação para me manifestar mais. O que não quer dizer que outros intelectuais ou ganhadores do Nobel não possam agir a sua maneira. Desde o Nobel escrevi quatro romances e continuo a fazer o que fazia. Portanto está bem, pois não mudei.

ÉPOCA - Sua atuação não aumentou?
Saramago - Tenho viajado. Continuo a revezar estadas em Lanzarote (ilha espanhola) e em Lisboa, eventualmente Paris. Estou por toda parte. Mas continuo a pagar meus impostos com regularidade em Portugal. Ninguém pode me acusar de evasão de divisas!

ÉPOCA - Há um futuro comum entre países de língua portuguesa?
Saramago - Antigamente falávamos muito nas línguas de Portugal e Brasil. Hoje é preciso considerar as culturas do Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Angola etc. Cada uma dessas nações utilizou a língua portuguesa a seu modo, expressando sua realidade e seus sentimentos. Hoje Lisboa não tem mais condições de ditar regras para o português. Os portugueses já não são mais os donos da língua. Seria necessário que discutíssemos algumas formas de unificação da língua, como a ortografia, por exemplo. Mas qualquer uniformização ortográfica me parece hoje muito tardia. A tendência num futuro próximo é de que os vários ramos do mesmo tronco do português se afastem cada vez mais. Acontecerá mais ou menos como o baixo-latim, que gerou o português, o italiano, o espanhol, o romeno, o francês.

ÉPOCA - Como é seu envolvimento com os movimentos ecológicos?
Saramago - Naturalmente me preocupo com a destruição da natureza, mas não tenho sido muito ativo nisso. O Greenpeace me convidou a adotar papel reciclável controlado para a edição de meus livros e isso me pareceu uma atitude válida para ajudar a preservar as florestas. Em boa parte do mundo, inclusive no Brasil, meu novo livro será impresso em papel controlado. É uma medida pequena, mas achei válida.

ÉPOCA - O espectro da destruição que ronda o mundo é tema do romance. Pela primeira vez, a morte é tema e personagem. Por que a morte agora?
Saramago - O fato é que a morte sempre esteve aí, faz parte da vida de todo mundo. Ela percorre meus outros livros. Mas antes o personagem morria e ponto final, não havia uma reflexão sobre o assunto. Agora tomei a morte como tema de uma reflexão mais profunda. No livro, uso primeiro uma grande-angular e crio uma fantasia em torno de uma suposição: como a ausência da morte afetaria uma sociedade inteira? Depois, fecho a objetiva para um caso específico: a morte se materializa em personagem e tenta carregar para o além um violoncelista que insiste em não morrer. Procuro demonstrar que a morte é fundamental para o equilíbrio da natureza. A expectativa de vida está cada vez mais alta - e isso não é natural nem desejável para um mundo que necessita de renovação das gerações e evitar o esgotamento de seus recursos. Por uma dessas formas naturais de equilibrar a situação, o mundo está ingressando num período de contenção dos níveis de natalidade.

ÉPOCA - A população idosa representa um entrave para o progresso?
Saramago - Sim, porque, por exemplo, nos países europeus os governos têm encargos enormes com a população de aposentados que precisam ser mantidos pela Previdência Social. Daqui a pouco, com as pessoas tendo velhices cada vez mais longas, será impossível para os governos sustentar as pensões de aposentados.

ÉPOCA - A frase marcante do livro é 'Não existe nudez maior do que a do esqueleto'. O senhor teme a morte?
Saramago - Todos somos esqueletos. Apenas não notamos isso. Todos teremos de morrer cedo ou tarde, e a morte pode causar sofrimentos terríveis. Estamos aqui falando do assunto, e não consigo temer a morte. A questão não é pensar na morte, mas no 'outro lado', no momento em que passaremos de estado. Viraremos esqueletos e tudo acabará. O esqueleto se torna, então, a forma mais radical da nudez.

ÉPOCA - Em seu livro, a nudez da morte não está banhada em sensualidade e lirismo?
Saramago - Sim, porque a morte-mulher acaba se apaixonando por um homem, fazendo-a suspender a morte das pessoas, num recomeço do ciclo que atormenta o ser humano. Há passagens sensuais e líricas como em muitos outros livros.

ÉPOCA - A música é outra marca forte. Ela influencia sua escrita.
Saramago - Sou melômano. Gosto de ouvir música ao escrever, embora eu saiba que escrever e ouvir música causa interferências, uma ação deve ser separada da outra. Em As Intermitências... utilizei a música porque trata-se do encontro do músico com a morte. E isso acontece em um concerto. As suítes de (Johann Sebastian) Bach estão presentes e fazem a morte ajoelhar-se e chorar diante de sua beleza. Usei o violoncelo porque me parece apropriado para estabelecer o contato do homem com a dimensão da morte. A morte, na Idade Média, é representada como um esqueleto tocando rabeca. Mas o personagem só poderia se encontrar com a morte tocando violoncelo, por se parecer demais com a voz humana.

ÉPOCA - A morte tornou-se tabu nos dias de hoje?
Saramago - Sim. Hoje as pessoas querem evitar o assunto e esconder as mortes que acontecem a sua volta. É como se o mundo fosse um hotel onde os mortos costumam desaparecer na calada da noite, sem que nenhum ä hóspede possa notar sua presença. Embora os filmes e a televisão abordem a morte, não tocam no ponto fundamental da finitude. As mortes são falsas, os mocinhos levam tiros e voltam a viver. É outra forma de tratar a morte como irreal. No passado, ela era vista com maior drama. Talvez as pessoas exagerassem, mas sabiam conviver com a tragédia.

ÉPOCA - O senhor faz no livro uma descrição apocalíptica do planeta, com seus recursos naturais esgotados. O mundo está condenado à destruição?
Saramago - O planeta está sofrendo um saque de seus recursos materiais. Como não temos outra despensa do que a própria Terra, essa exploração tende a esgotar nossas reservas naturais. O homem se encarrega de destruir a si próprio. E veja o caso da Amazônia, com uma seca assombrosa e a devastação das árvores. Essa floresta é essencial para a saúde da humanidade, é o pulmão do mundo, e já perdeu 17% de todo o seu território. Daqui a pouco, caso o governo não tome medidas efetivas, a Amazônia deixará simplesmente de existir. E esse é um assunto do Brasil, de ninguém mais. O Brasil tem uma responsabilidade mundial nesse caso.

ÉPOCA - Por falar em Brasil, o senhor apoiou o governo Lula no início. Qual a sua opinião hoje?
Saramago - Prefiro não falar nisso, vamos esperar para ver no que dá. Mas é brutal. O desgaste que o governo Lula sofreu é muito forte. Depois de tantas esperanças, não imaginávamos que escândalos de corrupção tomassem o governo Lula, que representava uma luz nova para um mundo cada vez mais mergulhado em interesses mesquinhos. Ele não poderia ter admitido a corrupção, e não consegue mais combatê-la. Vamos aguardar as investigações.

ÉPOCA - O senhor acha que Lula ajudou a projetar o Brasil?
Saramago - No começo, sim. Mas, na situação atual, Lula está amarrado: sua liberdade de ação é limitada. Ora, esse fato é muito sério para o Brasil, que tem um regime presidencialista. Lula está de pés e mãos atados e parece que não vai mais conseguir fazer as grandes medidas que prometeu no plano social. Foi uma decepção para o mundo.

ÉPOCA - Na nova ordem mundial, e não apenas no Brasil, a esquerda está vivendo uma crise ética. O senhor ainda crê nela?
Saramago - A esquerda atravessa um deserto e não consegue chegar a um oásis. Ela tem se fragmentado por toda parte. Em países como a Argentina, os partidos de esquerda perderam toda a representatividade no Congresso. Em Portugal, apóio a candidatura de Mário Soares (do Partido Socialista Português). Pode ser que não seja um milagre, um novo Sebastião, mas pode fazer alguma coisa pelo país, a reboque dos interesses do capital econômico.

ÉPOCA - O senhor continua a professar o comunismo?
Saramago - Claro! Acredito que a única maneira de resolver os problemas da humanidade está na distribuição de renda e na igualdade entre as pessoas. Curiosamente, hoje você pode dizer que seu vizinho é comunista ou eu posso afirmar que sou um comunista. Mas ninguém se declara capitalista. Capitalistas são eles lá, os chefes das grandes corporações, os donos do dinheiro.

ÉPOCA - O senhor acha que o mundo hoje se reduz a um império mundial liderado pelos Estados Unidos?
Saramago - Agora vivemos o império do petróleo e do dinheiro - o resto é disfarce. Até mesmo George W. Bush está submetido aos desígnios do Grande Capital. Ele governa para as grandes corporações. O capitalismo neoliberal não passa do governo dos grandes conglomerados econômicos.

ÉPOCA - As guerras assimétricas atuais, empreendidas pelos Estados Unidos, revelam um choque de civilizações entre Ocidente e Oriente?
Saramago - Depende. A Arábia Saudita, aliada dos EUA e maior produtora de petróleo, possui um regime fundamentalista. Foi o petróleo que moveu a invasão do Iraque. Existe, sim, um conflito religioso entre o cristianismo e o Islã, que só seria resolvido com um acordo comum entre os dois blocos. Afinal, se Deus existe, ele é só um. Para que brigar?

ÉPOCA - Bento XVI teria algum papel nesse pacto?
Saramago - Não acho que ele terá qualquer atuação no sentido conciliatório. Mesmo João Paulo II não estava preparado para isso, nem interessado.

ÉPOCA - Por que no romance Ensaio sobre a Lucidez o senhor critica o regime democrático?
Saramago - Porque o fato é um só: a democracia funciona apenas no plano institucional, na organização e derrubada de governos pelo voto. Na prática, quem manda são organismos como a Organização Mundial do Comércio e o FMI, que não são eleitos democraticamente, são instituições imperiais. Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto.

ÉPOCA - Pelo jeito, o senhor continua sendo pessimista.
Saramago - Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo. Como podemos ser otimistas diante de um planeta onde as pessoas vivem tão mal, a natureza está sendo destruída e o império dominante é o do dinheiro?"

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