Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Citador #31 em "As Intermitências da Morte" ... sem morte não há razão para haver igreja...

Citador #31
em "As Intermitências da Morte"
Caminho, página 20

"É a todos os respeitos deplorável que,  ao redigir a declaração que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave da abóbada da nossa santa religião, Eminência, perdoe-me, temo não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja."

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

"Viagem a Portugal" a preparação do roteiro da minha leitura...

(edição da Editora Caminho)

Terminada a leitura da "Viagem a Portugal", e compiladas cerca de 340 entradas de interesse, sob a capa do compasso dos tempos do "Viajante", retenho a profunda convicção do respeito e sentimento da necessidade de preservação deste património, que José Saramago, tinha pelas artes deste país. Quem percorre o país de lés a lés, no ido ano de 1981, data da publicação da obra para o Circulo de Leitores, absorveu um "mundo" diferente do que hoje existe.
Tenho-me perguntado durante este trajecto de leitura: 

«Este é o Portugal de 1981. Como será o Portugal de 2015?»

Alguns factos permitem olhar para esta leitura, vislumbrando um Portugal passado, com quase 35 anos de distância e que desde essa data muita coisa mudou. Terá sido a evolução dos tempos e dos novos conhecimentos benéficos para esta temática? 
Por exemplo:
- A paisagem do interior estará mais desertificada.
- Os caminhos estão mais directos, por obra das múltiplas auto-estradas construídas e que tornaram os pontos distantes mais próximos, mas também, votaram os pontos interiores ao abandono.
- A falta de protecção, os roubos da arte sacra e o vandalismo crescente a que estão continuamente sujeitos estas centenas de lugares que a obra descreve, muito por culpa do abandono das vilas e aldeias do interior e também do desinteresse das tutelas locais, regionais e nacionais, facilitando este desconforto no facilitismo com que se rouba e destrói.
- A paisagem rural está desertificada, onde que as antigas explorações agrícolas são tornadas em mato abandonado, ou, dizimadas pelos fogos florestais de todos os anos. Isto é também um alerta da politica de pressão que torna as grandes cidades como fonte de eventual oportunidade para as populações, relegando as aldeias para os velhos que morrendo ficam novos povoados em ruínas.
A leitura da "Viagem a Portugal", é um maravilhoso roteiro de arte, de história, de fulgor de outras eras, mas também poderá ser um documento de demonstração da contradição com a necessária intervenção humana na organização e preservação do território nacional.
Passando pelo norte e centro de um românico vibrante e verdejante, José Saramago, desce até à planície amarelada da cultura rural do Alentejo e continua pelas terras do Algarve. Aqui a (já) pressão turística cria nitidamente muitos anticorpos no Viajante. Parado numa falésia da Ponta de Sagres, regressa a casa. O que viu uma vez deve ser visto mais vezes, como refere no apontamento das visitas que fazia regularmente ao Museu Nacional de Arte Antiga, onde reservava cada incursão para uma única sala, chegando mesmo a alegar que tamanha quantidade de obras de arte não podem ser vistas em barda, sob prejuízo de muito ficar por ver e do muito que se vê, pouco se aproveitar, tal como, é uma afronta ao que não visto merece o mesmo respeito que o restante.
Este Saramago, o "Viajante", ateu convicto mas imbuído de um enorme sentido de religiosidade, criador do "Levantado do Chão" da família Mau-Tempo, e que, após este ano de 1981, dará vida e imortalidade em Blimunda e Baltasar, este "Viajante" mal sabia que caminhos viria a criar pelo mundo fora. 
O roteiro da minha leitura, chegará nos próximos dias através de um longo e quiçá pachorrento elencar de lugares sem a graciosidade dos que baseados na obra foram superiormente descritos, e aqui, estes transmitirão as minhas sensações recolhidas, talvez apreciadas, mas será o que consegui reter.

Miguel de Azevedo

Aqui ficam as últimas palavras da "Viagem a Portugal".


"O Viajante volta já".
"Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já." 

(Caminho, 11.ª edição, página 387)

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Revista Blimunda #33 (Fevereiro 2015) - Edição Gratuita


Para ler o número 33 - Fevereiro de 2015,
pode ser descarregado, aqui, via página da Fundação José Saramago

Sinopse
“Do chão levantam -se as searas e as árvores, levantam-se os homens e as suas esperanças”, escreveu José Saramago. “Também do chão pode levantar-se um livro”, acrescentou. Nos 35 anos da publicação de “Levantado do Chão”, a “Blimunda” de Fevereiro rende homenagem a este título fundamental da obra de José Saramago, porque do chão pode levantar-se também uma revista.
Com sotaque brasileiro, entrevistamos Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras (editora que agora desembarca em Portugal), e conversamos com o jornalista Fernando de Barros e Silva, que acompanhou Chico Buarque em Berlim em busca do irmão alemão.
E há muito mais: os zombies de Marco Mendes, depois de invadirem o universo da banda desenhada, ganham espaço na “Blimunda”.
Passados cinco anos do terramoto que arrasou o Haiti recuperamos um texto escrito por José Saramago naquela altura: “Quantos Haitis?”
Para encerrar o Ano Cortázar publicamos um texto inédito do editor catalão Carles Álvarez Garriga sobre Aurora Bernárdez, a companheira e herdeira da obra de Julio Cortázar, falecida em novembro passado.
A secção infanto-juvenil é ocupada por um relato do 1º Encontro de Literatura Infanto-Juvenil da Lusofonia realizado neste mês na Fundação O Século.
Na Saramaguiana, a fechar a edição deste mês, publicamos a intervenção de Sandra Lorenzano, escritora argentina radicada no México, lida na apresentação de “Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas” realizada em dezembro passado na Cidade do México."

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Citador #30 - filosofias e incongruências que o "Viajante" deixa alertado - "Viagem a Portugal"

Citador #30
... filosofias e incongruências que o "Viajante" deixa alertado
Caminho, 11.ª edição
Página 195

(...) "Há aqui basta matéria para dissertar sobre incongruências, e, quando já o dedo vai em riste para apontar a primeira, descobre o viajante que deve começar por si mesmo: mau mundo é esse para quem o poeta é poeta só, e cada um de nós nada mais do que pareça. (...)

"Viagem a Portugal" - Este é o Portugal de 1981. Como será o de 2015?

Fotografia com encenação do propósito da obra.
O mapa de Portugal e o livro que resulta das "estórias" do "Viajante".

Deixo um pedido para reflexão.

Este é o Portugal de 1981. Como será o de 2015?


Sinopse da obra, também com edição através da Companhia das Letras (Brasil)
Via página da Fundação José Saramago, em http://www.josesaramago.org/viagem-portugal-1981/

"Em Viagem a Portugal, o pacto de Saramago com a língua se materializa com tanta clareza que chega a parecer um destino – é como se as coisas e as pessoas estivessem estado à espera de seu escritor. Um milhão de viajantes viram os rios, as encostas e as florestas que Saramago viu. Entraram nos mesmos castelos e igrejas. Pediram informação àquele pastor, à fiandeira e ao velho da encruzilhada. Todos deram pasto à vista e à imaginação. Nenhum deles, entretanto, teve como levar a viagem para casa, refazê-la por escrito e escolher que iria partilhá-la infinitamente. Conhecemos, neste livro, que nome se dá às coisas em Portugal, qual é a comida que vai para a mesa, quem pintou o teto daquela capelinha, quando é que chove, de que cor são os olhinhos de Nossa Senhora da Cabeça, o que aconteceu com as flores das amendoeiras que o rei mouro mandou plantar para a sua princesa nórdica, quanto custa passar o tempo nas ruas de Serpa, até que ponto são rápidas as águas do Pulo do Lobo, de que modo se conserva a seriedade perante o são Sebastião sorridente e orelhudo de Cidadelhe, por que morreu Inês, a amante de Pedro, o Cruel, o Cru, o Filho-Inimigo, o Tartamudo, o Dançarino, o Vingativo, o Até-Ao-Fim-do-Mundo-Apaixonado."



Citador #29 ... o "Viajante" e os traços da futura epígrafe do "Ensaio sobre a Cegueira"

Citador #29
O "Viajante"
Caminho, 11.ª edição
Página 152

(...) "os livros de pergaminho iluminados, as pratas, e se todas estas coisas vão assim mencionadas ao acaso, sem critério nem juízo formulado, é porque o viajante tem clara consciência de que só vendo se vê, embora não esqueça que mesmo para ver se requer aprendizagem. Aliás, é isso que o viajante tem andado a tentar: aprender a ver, aprender a ouvir, aprender a dizer." (...)

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” - epígrafe da obra "Ensaio sobre a Cegueira"

As formas várias de olhar, as formas de ver, o que se observa e o que se repara.
Intuir, absorver informação, interpretar e desenvolver a capacidade de interagir com o mundo que nos rodeia. 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Ernesto Sampaio entrevista José Saramago a propósito do lançamento de "Levantado do Chão" (Diário de Lisboa / Março de 1980)

35 anos do lançamento da obra "Levantado do Chão"
Via Fundação José Saramago, em,

Entrevista de José Saramago ao Diário de Lisboa, em Março de 1980

“José Saramago, escritor, poeta, jornalista: aí o temos na nossa frente, simples, claro, frontal, para quem escrever é ‘aproximar-se da vida´”, escreve Ernesto Sampaio na introdução da entrevista que fez ao autor de Levantado do Chão, em março de 1980, dias depois do livro ser lançado. Nessa conversa publicada pelo Diário de Lisboa, José Saramago fala sobre o processo de escrita do romance, das dificuldades formais que teve que enfrentar, sobre o Alentejo e sobre as expectativas em relação ao livro que acabava de publicar: “(…) não posso deixar de exprimir um outro voto, mais egoísta: que mesmo nessa altura, graças a algum valor literário que hoje tenha e então conserve, ainda o Levantado do Chão seja lido.” Leia a seguir a entrevista:



35 anos da publicação de "Levantado do Chão" - Caricatura de Efrén via Revista Proceso 1998 / México




A Fundação José Saramago, através da sua página, na secção "Memória", apresenta a caricatura "metafórica" de Saramago como que levitando.
Nos 35 anos da publicação de "Levantado do Chão", aqui continuamos a dar destaque a estes pequenos grandes detalhes que também fazem parte da vida da obra.

"Uma caricatura de José Saramago ‘levantado do chão’

Em 1998, a revista mexicana Proceso preparou um dossier especial sobre José Saramago logo após o anúncio da atribuição do Prémio Nobel. Além de textos sobre o escritor e uma entrevista com Pilar del Río, o jornal publicou uma caricatura assinada pelo desenhista Efrén, que viu José Saramago “alzado del suelo”, título dado a Levantado do Chão na primeira tradução para o espanhol (posteriormente o título foi alterado para Levantado del suelo). A secção Memória recupera a simpática caricatura feita pelo artista mexicano."


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Revista Blimunda #9 - Fevereiro 2013 - Edição digital


Pode ser lida, consultada e descarregada gratuitamente, aqui 

Sinopse do #9, via site da Fundação José Saramago

"Quando foi criada, em 2007, a Fundação José Saramago assumiu como um dos seus objectivos a defesa e promoção da cultura nas suas mais diversas formas. O número de Fevereiro da Blimunda, que agora se publica, junta este objectivo a outro, também enunciado na Declaração de Princípios lavrada por José Saramago, o de recuperar autores, figuras da cultura que com o passar dos anos foram caindo numa zona de sombra que os afasta do contacto com o mundo. Por isso este número é dedicado a Michel Giacometti, uma das figuras fundamentais na recuperação do património cultural português.
Para o dossier organizado por Sara Figueiredo Costa contou-se com a colaboração de quatro figuras do panorama musical que, acompanhados de fotografias cedidas pelo Museu da Música Portuguesa, traçam um percurso pelos caminhos trilhados por Giacometti.
Mas a Blimunda está atenta ao futuro, e o futuro passa, segundo algumas opiniões, pelo digital. Acompanhou-se a primeira edição do Congresso ABC da Edição Digital, organizado pela Nave Especial, que junta a editora Pato Lógico à Biodroid, e publicam-se duas entrevistas a André Letria e Gemma Lluch realizadas por Andreia Brites.
A Saramaguiana, ponto de encontro mensal para os leitores de José Saramago, traz um texto de Augusto Rodrigues, Professor da Universidade de Brasília, lido no Congresso Sinfo Saramago, que teve lugar em Lisboa e que terá continuação nos próximos meses.

Boa leitura."

I Encontro Leitores de José Saramago "A Jangada de Pedra" - Faro


I Encontro Leitores de José Saramago
"A Jangada de Pedra"

Dia 28 de Março de 2015
Um dia passado entre "Saramaguianos"
entre Huelva e Faro

Mais informação aqui em https://aulajosesaramago.wordpress.com/

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Citador #28 sobre os silêncios da natureza... "Viagem a Portugal"

Citador #28
... sobre os silêncios da natureza...
em "Viagem a Portugal"
Caminho, 11.ª edição, página 53 e 54


(Serra do Marão, ou a "Casa Grande")

(...) "Não há limites para o silêncio. Debaixo destas pedras, o viajante retira-se do mundo. Vai ali à Pré-História e volta já, cinco mil anos lá para trás, que homens terão levantado à força de braço esta pesadíssima laje, desbastada e aperfeiçoada como uma calote, e que falas se falaram deixado dela, que mortos aqui foram deitados. O viajante senta-se no chão arenoso, colhe entre dois dedos em tenro caule que nasceu junto de um esteio, e, curvando a cabeça, ouvem enfim o seu próprio coração. " (...)


"Lanzarote — A Janela de Saramago" de João Francisco Vilhena (via "Arte Photographica"

Post e Link original via blog "Arte Photographica"
em http://artephotographica.blogspot.pt/2014/06/saramago.html

(Fotografia de João Francisco Vilhena)


"E Saramago tornou-se paisagem"
(revista 2, Público, 11.05.2014)

Como quer que me vista?
— De preto.
— De preto, João?
— Sim.
[silêncio, como quem diz “o fotógrafo é louco!”]
— Mas pretos já são os vulcões… Bom, está bem.
E José Saramago vestiu-se de preto para a objectiva de João Francisco Vilhena. O fotógrafo não queria que o escritor se destacasse na paisagem, queria que se confundisse com ela, que se perdesse nela. E partiram, em passeio, para a zona do Parque Nacional de Timanfaya, Lanzarote, onde quase tudo é vulcânico. Faltavam poucos dias para Saramago receber o Prémio Nobel da Literatura em Estocolmo (10 de Dezembro de 1998). Esse mega-acontecimento podia ser um peso a vergar a fotografia e a condicionar o olhar do fotógrafo ao culto da personalidade. Nas imagens que ficaram dessa sessão, fotógrafo e fotografado parecem conscientes disso. Dão-nos a simbiose. Dão-nos a terra crestada, a poeira e a solidão. E parece que tentam fugir ao brilho das salas douradas que se avizinha.
Nesse dia incerto de Novembro, meteram-se a caminho dialogando, às vezes com uma câmara fotográfica à mistura, numa tentativa de captar um homem na paisagem e nunca um escritor galardoado com a mais alta distinção da sua arte, um nome que aparece nas capas de milhões de livros. Um homem na paisagem e “nas mãos de um fotógrafo”, tão-só (e tão difícil).
Depois dessa caminhada fotográfica, trabalho que viria a ser exposto em Estocolmo por ocasião da entrega do prémio, João Francisco Vilhena sentiu que a ligação que tinha presenciado entre Saramago e a terra que adoptou como sua era de tal maneira forte que decidiu voltar. Queria aprofundar uma reflexão que mostrasse como um homem se pode fundir com o espaço, como pode entendê-lo, desafiá-lo. Respeitá-lo. A “inquietação” aumentou de ano para ano. O fotógrafo sentiu que alguma coisa tinha ficado por fazer. Queria mais. Mas aquele momento fotográfico não voltou a repetir-se (na verdade, nenhum momento fotográfico volta a repetir-se).
Já depois da morte do escritor, em 2010, João Francisco Vilhena voltou, agora com um guia, os Cadernos de Lanzarote, os cinco diários que José Saramago escreveu entre 1993 e 1995 e onde foi anotando as suas reflexões sobre o quotidiano na ilha, sobre a vida, a morte e o amor. Neste regresso, o fotógrafo experimentou o vazio, apenas preenchido pelas palavras deixadas pelo escritor. “Senti-me a fazer uma viagem no tempo com ele através das paisagens da ilha, através do que escreveu sobre Lanzarote. Rever os mesmos lugares onde estive com Saramago foi violento e dei-me conta da sua ausência de uma forma muito profunda.”
O desafio maior passou por encontrar inspiração nas palavras e, ao mesmo tempo, não ficar prisioneiro delas, sobretudo por terem sido escritas por alguém com o peso de um Nobel. “Não quis fazer um exercício mimético ou de simples ilustração dos escritos. Quis dar a força de uma relação e de um ambiente muito particular, que levou alguém a expor-se em termos sentimentais de uma forma absoluta e fantástica.”
A relação que José Saramago tinha com Lanzarote era profunda. E João Francisco Vilhena compreendeu-a através das fotografias que captou, antes e depois do seu desaparecimento. “Saramago tornou-se paisagem através da sua vivência na ilha. Os habitantes relacionam Saramago com a ilha. São um”, diz o fotógrafo, que ontem apresentou em Matosinhos o livro Lanzarote — A Janela de Saramago (Porto Editora). Na Galeria Municipal, por ocasião do festival LeV — Literatura em Viagem, pode ver-se uma exposição com as fotografias que dão corpo ao livro. Nesta obra, João Francisco Vilhena pensou cada página como se fosse única, onde “há momentos em que as palavras são um sussurro e outras em que são um grito”. Como as paisagens fotográficas e o escritor que nelas habitam.

(a exposição Lanzarote — A Janela de Saramago, pode ser vista actualmente no Instituto Camões, em Lisboa)

(Fotografia João Francisco Vilhena)

"Saramago, a vaidade justificável" texto de Miguel Sanches Neto (05/06/1999)


(Fotografia de João Francisco Vilhena 
Exposição Lanzarote — A Janela de Saramago)

Texto pode ser consultado em http://www.jornaldepoesia.jor.br/msanches29.html

"Saramago, a vaidade justificável" de Miguel Sanches Neto
em "Gazeta do Povo" (05/06/1999)

"Um diário é um cômodo íntimo de uma casa. Nele, encontramos o autor em suas roupas domésticas, vivendo como o comum dos mortais. O que impera é o acontecimento miúdo, as pequenas vaidades, as alegrias cotidianas, os prazeres de ver a vida que passa, as indignações, etc. Quando o diário é escrito por uma grande personalidade, a estes móveis mais inexpressivos são acrescentados outros: a sua participação em grandes acontecimentos, sua concepção de mundo e os eventos dos bastidores da vida pública por ele vivida. É, invariavelmente, a parte interna da casa, as intimidades do edifício, com suas manchas de bolor e com sua decoração, que encontramos na leitura dos textos nascidos sob este rótulo.
O leitor de diários está sempre atrás das grandezas e das fraquezas de quem escreve e sempre será possível encontrá-las nesta categoria de texto em que sobressai um eu. Acusar um autor de ser ególatra é algo que não diz absolutamente nada, servindo apenas para depor contra a inteligência de quem faz tal afirmação. Todo diário é, em sua essência, um culto do eu e, portanto, todo autor de diários é um cultor de si mesmo. O que varia é o grau de presença do eu, uns são mais e outros menos ególatras, e natureza desta presença, algumas são justificáveis pelas questões que suscitam.
Quem procura tais textos deve portanto saber que o que ele encontrará é um discurso do eu, que pode vir mais velado, como quando um viajante mostra uma paisagem ou fala de questões sociais. Mas o eu, neste caso, não está ausente, apenas oculto. São suas as opiniões e seu o olhar. Até esconder o eu não é mais do que chamar a atenção para ele.
No diário tudo é vaidade. Quem escreve é vaidoso por levar a sua vida a sério, por dar-lhe importância ao ponto de escancará-la ao público. E quem o lê também é vaidoso, porque no fundo quer se ver no diário. Mesmo que não seja conhecido do autor, ele quer se reconhecer na vida privada deste. Depois que começou a transcrever cartas em seus diários, cujo segundo volume da edição brasileira acaba de ser lançado (Cadernos de Lanzarote II, Cia. das Letras, 1999), José Saramago passou a receber um número muito maior de missivas, como fica sugerido pela recorrência delas no volume em questão. Também deve ter aumentado a freqüência de visitas à sua casa e de convites para participar de eventos. Pois são estas as matérias do diário, espaço da vaidade por excelência. O próprio artigo que escrevo não deixa de ser movido pela vaidade de freqüentar a sua casa, de ocupar-lhe um mínimo espaço.
Isso posto, acabemos com as acusações ao autor. Saramago é tão vaidoso quanto quem o lê. Ponto final. Abramos outro parágrafo.
Por baixo desta matéria mais mundana e perecível pode ou não haver uma base sólida. É isso que deve definir a relevância de um diário. Assim, a imprescindibilidade dos Cadernos de Lanzarote II se localiza em duas questões axiais, pelo menos para este crítico. A primeira é a sua proposta de um retorno ao autor. A segunda é a história (que geralmente fica no mais completo segredo) do nascimento da ficção, da sua fase pré-natal.
Durante as longas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a literatura sofreu uma aceleração do movimento de tecnicização que tem acompanhado a modernidade. Nunca, como nesta segunda metade do século, ser moderno significou de forma tão primária investir, em todos os sentidos, em aparatos tecnicamente sofisticados. A estética, na arte, acabou ocupando o mesmo espaço que os objetos eletrônicos têm em nossa vida. O homem viu-se reduzido a um ser perplexo em meio a coisas que roubaram o seu lugar, condenando-o ao exílio. Que isso tenha acontecido no mundo material já é algo assustador, mas que a mesma coisa tenha se manifestado no mundo da cultura é que me desespera. Tanto na crítica (entregue ao estudo de questiúnculas técnicas), quanto na filosofia (perdida em conceitos vagos) e nas artes (que enaltecem o domínio dos instrumentos), o homem passou a ser uma figura dispensável.
No território específico de Saramago - a ficção -, o centro das atenções foi transferido para o narrador, ou seja, para um lugar técnico da narrativa. A obra, dentro desta visão distorcida, ganha relevância quando há a construção aprimorada de um narrador. O livro, portanto, passa a valer pelos recursos que convoca e não pelas verdades humanas condensadas nas trajetórias de seus personagens. Quando a figura do narrador se sobrepõe, o autor perde espaço - o que é o mesmo que dizer: o homem deixa de ser relevante. "O problema está, mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de comprometer-se com o cidadão, e que muitas das teorizações em que se foi deixando envolver acabaram por constituir-se como escapatórias intelectuais, modos de disfarçar, aos seus próprios olhos, a má consciência e o mal-estar deste grupo de pessoas - os escritores – que, depois de terem se considerado a si mesmas como farol e guia do mundo, acrescentaram agora à escuridão intrínseca de todo o ato criador as trevas da renúncia e da abdicação cívicas"(p.118).
Vendo neste culto do narrador uma escapatória intelectual, Saramago propõe que a literatura dê maior visibilidade às pessoas. Só isto já seria mais do que suficiente para justificar os seus diários. O diário revela o homem Saramago, não como o reverso do escritor, mas como o homem/escritor, este ser indissociável. Ele não vê o escritor como um personagem, como uma criação intelectual, e sim como um ser vivo que adquire estatuto literário. Assim, o literário é um estado decorrente e revelador do real e não um mascaramento deste. Poderíamos até arriscar a dizer que não há diferença significativa entre os Cadernos de Lanzarote e os demais títulos do autor. Todos estão a serviço do homem. Este movimento de retorno ao autor é o mesmo movimento que buscou dar espessor humano tanto para a história (Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa) como para o personagem de ficção criado por Fernando Pessoa (O ano da morte de Ricardo Reis). Neste livro, Ricardo Reis sai do mundo da literatura (onde se caracteriza por um programático abstencionismo) e penetra no mundo dos homens, para morrer como tal. Ele, ser sem corpo, se solidariza com a sofredora espécie humana. Alguém devia estudar as relações entre este romance e o filme Asas do desejo, de Wim Wenders.
Seus diários revelam ainda a precedência do humano no processo de gestação de seu mais recente romance: Todos os nomes, uma parábola sobre a imortalidade conquistada historicamente através da capacidade que o homem tem (e que muitas vezes acaba obliterada) de manter vivas, através da memória, pessoas que já se foram. Toda a busca do personagem de Todos os nomes, o escriturário José, um ser de essência autobiográfica, surgiu de um fato vivido por Saramago. Ele passou a desentranhar dos arquivos informações sobre um irmão morto no início da infância. O interesse pelo irmão deu origem a uma parábola (de caráter histórico e não religioso - que fique bem claro) em que ele propõe o interesse irrestrito por todos os seres humanos. Está aí não só a gênese da literatura de Saramago como também a razão de seu sucesso. Num período em que a maioria escreve a partir de uma concepção literária e artificiosa, ele se vale de suas vivências mais profundas, criando uma obra que encanta pela autenticidade.
É preciso ler os Cadernos de Lanzarote II perseguindo estas discussões e não atrás de exemplos de vaidade. Comecei este artigo dizendo que um diário é um cômodo íntimo de uma casa. A vasta produtividade do autor faz com que ele acolha muita coisa, transformando os cadernos numa espécie de quarto de despejo. No futuro, quando boa parte dos temas envelhecer, será preciso organizar este quarto, deixando apenas os móveis indispensáveis."

Este texto é publicado, respeitando o original do autor


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

"Viagem a Portugal" 1981 - «É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.»

«É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.»

«De Nordeste a Noroeste, caminhos que vão dar às “Meninas de Castro Laboreiro”, à “História do soldado José Jorge” ou ao Monte Evereste de Lanhoso. Depois, as “Terras baixas, vizinhas do mar”. Encontramos nelas “Um Castelo para Hamlet”, e descobre-se que nem todas as ruínas são romanas. Viaja-se ainda pelas “brandas beiras de pedra”, com as “novas tentações do demónio” e “o fantasma de José Júnior”. Um convite, entretanto, a parar em todo o lado, entre Mondego e Sado, para observar “artes da água e do fogo” ou as chaminés e laranjais. E um passeio pela “grande e ardente terra de Alentejo”. Aí, “a noite em que o mundo começou”; aí, “uma flor da rosa”; aí, onde “é proíbido destruir os ninhos”. E mais o sol, o pão seco e o pão mole do Algarve, com “o português tal qual se fala”. “Pelos caminhos de Portugal / Eu vi tantas coisas lindas vi o mundo sem igual”, canta o cancioneiro popular, e assim faz Saramago, com a diferença essencial que a qualidade da sua escrita está bastantes furos acima. Uma viagem, se não pelo Portugal profundo, pelo menos por uma forma profunda de ver Portugal.»

Via Fundação José Saramago, em http://www.josesaramago.org/viagem-portugal-1981/

Capa da edição "Viagem a Portugal" - Circulo de Leitores (1981)

Fotografias. 
Saramago foi a palavra escrita e lida,
foi a palavra dita e ouvida,
Saramago é a fotografia e a imagem,
é o ver, olhar e reparar,
o ousar e transgredir,
o inquieto, a inquietude e a inquietação,
o desassossego, o desassossegado, o desassossegar,
e a bondade,
sim a bondade que falta ao ser humano...


José Saramago na Póvoa de Varzim após o lançamento de "Viagens a Portugal" em 1981
Foto Luís Severo - JN

José Saramago passeando pela Calçada da Estrela, em Lisboa, em Maio de 1990
Foto António Aguiar - JN

O escritor em reunião do Partido Comunista Português, no Hotel Altis, Lisboa, em Março de 1995
Foto Bruno Peres - JN

Saramago nasceu em Azinhaga, no Ribatejo, no seio de uma família humilde
Foto Adelino Meireles - JN

José Saramago, engraxando os sapatos, em Agosto de 1992 - Foto António Aguiar - JN

O romancista em visita ao Diário de Notícias, em 1998, onde foi director-adjunto 
Foto Alexandra Silva -  JN

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Pedro Granato - Blecaute LUX 18.11.2010 (José & Pilar)



Para ouvir via YouTube, em https://www.youtube.com/watch?v=Z4LNuwzsqfE&feature=related

... bem vindo ao circo do espectáculo...

Música "Blecaute" 
ao vivo no LUX 
interpretada por Pedro Granato 
acompanhado por Tempus - Quarteto de Cordas, 
dia 18 de Novembro, 
no concerto de apresentação da banda sonora do documentário José & Pilar.

Camané - "Sem Deus nem Senhor"LUX 18.11.2010 (José & Pilar)



Para ouvir, via https://www.youtube.com/watch?v=Ndz1nnK7L6k&feature=related

Música "Sem Deus nem Senhor" 
ao vivo no LUX 
interpretada por Camané 
acompanhado Filipe Raposo, 
dia 18 de Novembro, 
no concerto de apresentação da banda sonora do documentário José & Pilar.

Pedro Gonçalves - Agenda LUX 18.11.2010 (José & Pilar) - Palavras de Pilar del Río




... passou a noite, com uma luz ténue, rodeado dos seus livros...


"José e Pilar" ... uma eterna história de amor pelas palavras do enamorado José Saramago


"E como eu lhe disse:
De vez em quando,
quando te lembrares de mim,
põe uma florzinha em cima da pedra,
para eu pensar que ainda,
que ainda,
que ainda estou a ser recordado"

"A Praça" Crónica publicada no "Jornal do Fundão" e compilada em "A Bagagem do Viajante" (3/10/1971)


Inserida no livro de crónicas "A Bagagem do Viajante" 
Caminho (4.ª edição) Páginas 131 a 133

 "A Praça"

"Juntavam-se na praça ao domingo; chovesse ou fizesse sol. Punham uma camisa lavada, as calças de cotim menos remendadas, as botas ensebadas de fresco, quando não os sapatos de tromba larga, que nenhuma pomada conseguia pôr a brilhar. O colete era indispensável, ou a jaqueta, quando as posses lá chegavam. Na cabeça, o chapéu preto, mole, ou o barrete de igual cor. Verde só para os campinos, o pessoal da praça era gente de pé e nas mãos de todos eles o pau, símbolo de virilidade e poder, instrumento de ataque e defesa, atravessado no caminho dos ombros, como o ramo horizontal duma cruz onde sobrepostos os braços descansavam. 
Reuniam-se em grupos enquanto os feitores não chegavam. Davam rápidos cachações nos garotos que brincavam ao bate-e-foge e assim cortavam os diálogos espaçados, as meias frases que transportavam os temas principais da conversa: o trabalho, o patrão que se esperava, o último desvirgamento, o provável preço da jorna. Os mais velhos encostavam-se ao pau, fazendo da mão esquerda um ninho que lhes protegia o sovaco, e assim ficavam horas numa conversa lenta, interrompida por intervalos na taberna. Os mais novos bebiam menos, floreavam o pau em jeito de corte, quando as raparigas, sempre aos grupos, de braço dado, atravessavam a praça numa provocação sorridente e um pouco sonsa. Nessas ocasiões se faziam grandes jogos de olhares mal disfarçados, que vinham firmar namoros incipientes, ou pôr ideias de casamento nos rapazes. 
Em épocas certas do ano, alguns moços deixavam a aldeia. Era a tropa. Só alguns não voltavam. Quase todos, passado o tempo do serviço, retomavam a enxada, a gadanha e a pá de valar – e continuavam a reunir-se na praça ao domingo, mais velhos, sacudindo os próprios filhos, enquanto esperavam que viesse propor-lhes a jorna, segundo a fórmula tradicional: tantos mil réis e um litro de vinho. Encorreavam-se-lhes os rostos, os cabelos embranqueciam e rareavam, ali na praça, debaixo dos plátanos e ao pé da bomba, rodeados pelas mesmas casas baixas. Nem sempre havia trabalho. E outras vezes havia, mas os homens não o queriam. Os feitores subiam a jorna até onde estavam autorizados: era uma guerra, ora ganha, ora perdida. Até hoje. 

Juntam-se na praça ao domingo pela manhã e ali ficam durante algumas horas. Falam baixinho, como quem não quer incomodar nem sequer as pedras. Têm uma linguagem incompreensível, em que de vez em quando parece aflorar uma palavra conhecida, que logo se perde numa cascata dispersa de sons raros. Em todo o circuito da praça, as lojas mostram as portas fechadas, e a estátua que está ao meio, aquela que representa o poeta, parece uma ruína morta, alheia aos homens que a rodeiam. Estes vestem quase todos de escuro. Alguns são belos. Altos, delgados, têm feições finas e melancólicas. Outros parecem contrafeitos, torcidos como plantas do deserto que muito tivessem procurado a água. 
A placa central da praça pertence-lhes. Os habitantes da cidade passam de longe, a fingir que não reparam, olhando para o lado, como quem não pode ser natural ou não se habituou ainda a sê-lo. Olham gulosamente e à socapa as raras mulheres dos homens da praça. O cheiro do trópico, o segredo das ilhas, perturba um pouco o cinismo inábil do branco. E elas, as mulheres, quase todas novíssimas raparigas, são belas sem exceção, de olhos alagados e veludosos, e quando conversam com os homens da sua raça sorriem muito. Talvez não sejam alegres, mas sabem o que é alegria. Os companheiros são mais graves: andam lentamente de um modo ondulante, como quem ainda sente nos quadris o roçar do capim e das plantações. 
Durante horas, a praça fica coalhada de homens estranhos. Para ali se transportou o largo de terra calcada pelos pés de gerações, uma espécie de porto de salvamento onde se colhem notícias da ilha e dos companheiros. Dali irão ao trabalho da semana seguinte com o contentamento de se saberem juntos. 

Um largo da província, uma praça de Lisboa: a mesma necessidade de espaço livre e aberto, onde os homens possam falar e reconhecerem-se uns aos outros. Onde possam contar-se, saber quantos são e quanto valem, onde os nomes não sejam palavras mortas mas antes se colem em rostos vivos. Onde as mãos fraternalmente pousem nos ombros dos amigos, ou afaguem devagar o rosto da mulher escolhida e que nos escolheu, sejam eles do outro lado do rio ou do outro lado do mar."

Esta é uma crónica de José Saramago publicada no Jornal do Fundão, a 3 de Outubro de 1971, e republicada a 1 de Agosto de 2013. 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

José Saramago recorda a sua visita ao Chile (Nov. 2007) e o massacre de Iquique



"Actuación en vivo del mítico grupo Qilapayún, 
cantando la cantata Santa Maria de Iquique. Año 2006. 
Tema que rememora la matanza de 3600 obreros pampinos, en diciembre de 1907."

Cantata Popular de Santa Maria de Iquique

O presente texto/post foi publicado em 3 de Abril de 2009, no livro/blog "O Caderno 2".
Pode ser consultada a inserção, via página em http://caderno.josesaramago.org/34129.html

"Santa Maria de Iquique"

"Santa Maria é o nome da escola, por isso supõe-se que a santa propriamente dita, a do céu, não interveio no assunto como, em princípio, a estaria obrigando a sua potestade. O nome do lugar é Iquique, um porto de mar então importante no norte do Chile, numa região rica em salitre, essa mistura de nitrato de sódio e nitrato de potássio directamente criada no inferno, como de certeza pensariam os milhares de homens, tanto do Chile como dos países limítrofes, que na sua extracção trabalhavam. Estamos em 1907. Inevitável como o destino porque essa é a lógica soberana do capital, a impiedosa sobre-exploração da força de trabalho dessa pobre gente acabou por atingir extremos insuportáveis. A greve foi a resposta natural. Dos povoados mineiros nas montanhas começaram a descer, primeiro centenas, logo milhares de trabalhadores que se concentraram na escola Santa Maria, em Iquique. Depois de vários dias em que os grevistas tentaram, sem resultado, negociar, as autoridades governamentais, pressionadas pelos capitalistas estrangeiros, decidiram pôr fim de qualquer maneira ao conflito. No dia 21 de Dezembro, mais de 3000 pessoas, não só mineiros, mas também velhos, mulheres e crianças, foram criminosamente chacinadas pelas forças militares convocadas para a repressão. Ao Chile não têm faltado páginas negras. Esta foi uma das mais trágicas, e das mais absurdas também.Décadas mais tarde, o compositor chileno Luis Advis, um músico autodidacta de enorme talento, compõe e escreve a Cantata de Santa Maria de Iquique para o grupo Quilapayun. Apresentada ao público nos primeiros anos de 70, a Cantata de Santa Maria é, ainda hoje, um dos mais altos expoentes da Nova Canção Chilena e de grande parte da América do Sul. Tenho-a aqui em DVD, noventa minutos guiados por esse mágico instrumento que é a flauta andina e pelas magníficas vozes dos componentes do grupo. Também lá apareço. Poucos dias antes da minha entrada no hospital, em Novembro de 2007, vieram aqui para que eu gravasse uma declaração. Aviso já que não sou o José Saramago, mas o seu fantasma. Não há outras imagens tão chocantes de mim nesse período. Quase me apetece pedir que as eliminem, mas o vivido, vivido está e não se deve negar. De todo o modo, ao lado daqueles 3000 mortos, a modéstia aconselha a moderar as expansões de uma pena pessoal. Fiquemos por aqui. 
P.S. Não é fácil encontrar no mercado a Cantata de Santa Maria de Iquique. Se a alguém tiver interessado o que acabei de escrever, ao ponto de querer compartilhar estes sentimentos, dirija-se ao produtor executivo Carlos Belmonte, cuja direcção electrónica é c.belmonte@accionvisual.com. Espero que mo agradeçam."

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

No data do nascimento de Charles Darwin recupera-se o post "Perdão para Darwin?" do livro/blog "O Caderno"

No dia em que se comemora a data de nascimento de Charles Darwin, aqui se relembra um post/texto sobre o mesmo.


Pode ser lido online aqui, via página da Fundação José Saramago,
em http://caderno.josesaramago.org/1406.html


"Perdão para Darwin?"

"Uma boa notícia, dirão os leitores ingénuos, supondo que, depois de tantos desenganos, ainda os haja por aí. A Igreja Anglicana, essa versão britânica de um catolicismo instituído, no tempo de Henrique VIII, como religião oficial do reino, anunciou uma importante decisão: pedir perdão a Charles Darwin, agora que se comemoram duzentos anos do seu nascimento, pelo mal com que o tratou após a publicação da Origem das Espécies e, sobretudo, depois da Descendência do Homem. Nada tenho contra os pedidos de perdão que ocorrem quase todos os dias por uma razão ou outra, a não ser pôr em dúvida a sua utilidade. Mesmo que Darwin estivesse vivo e disposto a mostrar-se benevolente, dizendo “Sim, perdoo”, a generosa palavra não poderia apagar um só insulto, uma só calúnia, um só desprezo dos muitos que lhe caíram em cima. O único que daqui tiraria benefício seria a Igreja Anglicana, que veria aumentado, sem despesas, o seu capital de boa consciência. Ainda assim, agradeça-se-lhe o arrependimento, mesmo tardio, que talvez estimule o papa Bento XVI, agora embarcado numa manobra diplomática em relação ao laicismo, a pedir perdão a Galileu Galilei e a Giordano Bruno, em particular a este, cristãmente torturado, com muita caridade, até à própria fogueira onde foi queimado.Este pedido de perdão da Igreja Anglicana não vai agradar nada aos criacionistas norte-americanos. Fingirão indiferença, mas é evidente que se trata de uma contrariedade para os seus planos. Para aqueles republicanos que, como a sua candidata à vice-presidência, arvoram a bandeira dessa aberração pseudo-científica chamada criacionismo."

José Saramago (17 de Setembro de 2008)

em O Caderno
Caminho, 2.ª edição



Mais informação biográfica sobre o cientista
em http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Darwin

"Charles Robert Darwin, (12 de fevereiro de 1809 — Downe, Kent, 19 de Abril de 1882) foi um naturalista britânico que alcançou fama ao convencer a comunidade científica da ocorrência da evolução e propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da selecção natural e sexual. Esta teoria culminou no que é, agora, considerado o paradigma central para explicação de diversos fenómenos na biologia. Foi laureado com a medalha Wollaston concedida pela Sociedade Geológica de Londres, em 1859.

Darwin começou a se interessar por história natural na universidade enquanto era estudante de Medicina e, depois, Teologia. A sua viagem de cinco anos a bordo do brigue HMS Beagle e escritos posteriores trouxeram-lhe reconhecimento como geólogo e fama como escritor. Suas observações da natureza levaram-no ao estudo da diversificação das espécies e, em 1838, ao desenvolvimento da teoria da Selecção Natural. Consciente de que outros antes dele tinham sido severamente punidos por sugerir ideias como aquela, ele as confiou apenas a amigos próximos e continuou a sua pesquisa tentando antecipar possíveis objecções. Contudo, a informação de que Alfred Russel Wallace tinha desenvolvido uma ideia similar forçou a publicação conjunta das suas teorias em 1858.

Em seu livro de 1859, "A Origem das Espécies" (do original, em inglês, On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or The Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life), ele introduziu a ideia de evolução a partir de um ancestral comum, por meio de seleção natural. Esta se tornou a explicação científica dominante para a diversidade de espécies na natureza. Ele ingressou na Royal Society e continuou a sua pesquisa, escrevendo uma série de livros sobre plantas e animais, incluindo a espécie humana, notavelmente "A descendência do Homem e Seleção em relação ao Sexo" (The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, 1871) e "A Expressão da Emoção em Homens e Animais" (The Expression of the Emotions in Man and Animals, 1872).

Em reconhecimento à importância do seu trabalho, Darwin foi enterrado na Abadia de Westminster, próximo a Charles Lyell, William Herschel e Isaac Newton. Foi uma das cinco pessoas não ligadas à família real inglesa a ter um funeral de Estado no século XIX."

67 razões para ler "O Ano da Morte de Ricardo Reis"...


1. Vapor Highland Brigade faz escala em Lisboa

2. 16 anos depois regressa do Rio de Janeiro - Hotel Bragança

3. Visita túmulo de FPessoa no cemitério dos Prazeres

4. Lídia ...
 
5. Lisboa debaixo de chuva e vento... uma constante

6. Passagem de ano 1/1/1936, meia noite e meia hora; Lídia sobe ao quarto; depois Fernando Pessoa sentado no sofá, abraçaram-se, fazem promessas de novos encontros para colocar o diálogo em dia

7. Lídia e Ricardo Reis dormem juntos

8. A forçada ida ao Dona Maria e as apresentações a Marcenda e seu pai Dr. Sampaio

9. Depois do teatro aparece de novo Fernando Pessoa e mais tarde Lídia

10. Ricardo Reis conversa longamente com Marcenda na ausência do Dr. Sampaio

11. Jantam os três na mesma mesa

12. Primeiros mixericos de "sunânbulismo" pelos corredores numa alusão às incursões de Lídia no quarto de Ricardo Reis

13. Leitura de "conspiração" de Tomé Vieira

14. Por curiosidade Ricardo Reis assiste ao cortejo fúnebre do "mouraria" assassinado por José Rola, tal ajuntamento é o exemplo das piores profissões em desfile

15. Encontros vários com Pessoa

16. As esquerdas ganham as eleições em Espanha vêm famílias fugidas

17. Estado febril e o aconchego e cuidados de Lídia

18. Ofício da PVDE e o boato corre depressa no hotel

19. Dr. Sampaio evita o contacto... Marcenda deixa bilhete por debaixo da porta do quarto de Ricardo Reis... encontro amanhã no Alto de Santa Catarina

20. Pessoa aparece, falam, Ricardo Reis pede-lhe que não esteja presente porque Marcenda estará a chegar... esta pede desculpa pelo pai, deixa morada para saber de novidades do interrogatório. .. afinal de contas Pessoa manteve-se invisível para Ricardo Reis

21. Interrogatório que não o era mas Ricardo Reis assim entendeu. O Doutor-Adjunto e o subalterno Victor (este amigo do gerente do hotel Bragança) deixaram passar em claro alguma ríspidez de Ricardo Reis. Entretanto descansado envia carta para Coimbra.

22. Pondera deixar o Bragança. Continua o mau tempo por Lisboa



23. Aluga casa no Alto de Santa Catarina perto do local onde se encontrou com Marcenda às escondidas

24. A despedida do hotel Bragança e a mudança para a casa nova.... os 2 velhos no jardim do Alto de Santa Catarina são uma constante

25. Lídia aparece de surpresa. Virá fazer a faxina. Marcenda estará para chegar. A melancolia de um homem sem nada para fazer.

26. A semana de ansiedade. O serviço de Lídia. A vizinhança alcoviteira. As novas rotinas.

27. Marcenda aparece de surpresa. O beijo apaixonado.

28. Ricardo Reis entra lentamente ao serviço... arranjou um lugar de médico em substituição

29. As estranhas ideologias fascistas na Europa e os "bodos" pela mediocridade nacional

30. Fernando Pessoa que não tem dado sinal


31. Troca de correspondência com Marcenda... recebe um subscrito violeta... relutância em abrir para saber as novas... paralelo no futuro com As Intermitências da Morte (a cor, coincidência??)

32. A visita de Fernando Pessoa

33. A PVDE através do agente Victor rondando a porta

34. Ricardo Reis lê a Fernando Pessoa as novidades do mundo e de Portugal... os mortos perdem a capacidade de ler, debatem a novidade de Portugal e Alemanha utilizarem o divino como avalista político

35. Episódio com Lídia que volta para a faxina semanal... a tentativa de um acto sexual falhado por incapacidade de Ricardo Reis lhe poder responder... a rispidez deste e a tristeza de Lídia

36. Ricardo Reis recebe a visita de Marcenda no consultório... há desejo reprimido. Um inesperado pedido de casamento prontamente recusado... e "um dia" na despedida

37. Outra carta violeta chegada de Coimbra.... esta matando e acabando o que não poderia ter começado.... "não responda"

38. Continuam os ecos perigosos das guerras... Addis-Abeba arde... 

39. Visitas de Lídia, teorização sobre a duplicidade da mulher a dias e da amante

40. Apanha no Rossio comboio a caminho de Fátima... por conversas com Marcenda, Fátima seria para o Dr. Sampaio uma última esperança para a maleita da filha

41. Os caminhos e as gentes a caminho de Fátima, os milagres que não aconteceram, a impressão que Ricardo Reis ganha pela inadaptação àquele lugar e ao que representa

42. O regresso a Lisboa, as visitas de Lídia e Fernando Pessoa... este apercebe-se que o hálito a cebola estará nas imediações da sua casa... sinónimo de contínua vigilância do agente Victor e da PVDE. Perde o lugar no consultório. Equaciona voltar ao Brasil

43. Fernando Pessoa e Ricardo Reis abordam o Estado e contestam Salazar. Episódio do anúncio de António Ferro e do simulacro de um "ataque aéreo ao Rossio por inimigo desconhecido"

44. As aparições de Fernando Pessoa cada vez mais espaçadas ... passam 6 meses da morte... o esquecimento... o medo de se perder

45. Ricardo Reis sem consultório e pouca vontade de exercer deixa-se levar pela preguiça dos dias... dorme ... dorme

46. Dia da Raça. Fernando Pessoa apercebe-se que sobre Camões não escreveu... inveja?


47. Lídia confessa a Ricardo Reis o atraso de 10 dias... Virá filho de pai incógnito? 

48. Ricardo Reis e Fernando Pessoa em nova visita abordam os vários heterónimos, a estátuas que são retiradas e a questão do filho indesejado

49. Espanha e as revoltas, Franco... abordagem à ingenuidade que paira sobre as ilusões criadas à volta da Mocidade Portuguesa e a Juventude Hitleriana

50. Fernando Pessoa que não tem aparecido. Ricardo Reis vai aos Prazeres. 4371 é onde se dirige

51. General Milan d'Astray a caminho da guerra em Espanha estará de passagem por a Lisboa, isto inquieta Ricardo Reis ao ponto de procurar Fernando Pessoa

52. O contínuo desleixo de Ricardo Reis. O pequeno rádio para ouvir as novas. Os espanhóis exilados no hotel Bragança e nos Estoris que retornam a uma Espanha com novos poderes e governos nacionalistas

53. Ricardo Reis e a voz dos jornais. Lídia e a voz do irmão comunista

54. Badajoz rendeu-se. A praça de touros será palco da vingança... o cheiro e imagem de sangue dos milicianos prisioneiros corre numa arena de outras lides

55. Franco tomará Madrid para erradicar o mal do comunismo e marxismo. Em Portugal organizam-se demonstrações de nacionalismo em comícios contra esses males dos vermelhos.

56. Ricardo Reis vai ao comício no Campo Pequeno por curiosidade e por alguma convicção. Estão lá os de Itália, Alemanha e Espanha. O comício apela à criação de uma legião cívica... terá camisa verde para não copiar os seus iguais da Europa.

57 . Lídia há muito que não aparece. Ricardo Reis está num contínuo estado de desleixo... passa os dias a dormir... escreveu uma carta a Marcenda que a rasgou ... mas seguiu um verso para a posta restante de forma anónima...

58. Lídia apareceu... desespero dela... o irmão irá no Afonso de Albuquerque e outros barcos para uma suposta revolta... tem medo... nem o peso de carregar um filho de homem que não o quererá como um pai quer a um filho lhe afronta tanto como a vida do irmão... desespero...

59. Ricardo Reis descerá à beira do rio... vê os hipotéticos futuros revoltosos barcos em hora de almoço... vê passar o zepellin Hindemburgo que vem largar correspondência para que algum navio a leve para a América do Sul... Victor aparece de surpresa e Ricardo Reis depois de dizer que "estava a observar os barcos e o rio", seguiu caminho como se fugisse do agente do cheiro a cebola

60. Tiros vindos dos barcos. A revolução? RR vem para a rua e afinal é o ataque vem Forte de Almada que disparam contra os barcos... e do Forte do Duque... o Afonso de Albuquerque e Dão são atingidos... rendem-se...


61. Ricardo Reis refugia-se em casa.... chora desalmadamente... "sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo"...

62. Ricardo Reis levanta da cama e apronta-se... segue em direcção ao hotel Bragança... a Pimenta e ao gerente Salvador perguntará por Lídia... não estando só poderia estar em socorro ou de novidades do seu irmão revoltoso...

63. O jornal do dia seguinte dá notícia da morte de doze marinheiros, feridos e outros presos. Daniel Martins, irmão de Lídia morreu...

64. À noite Pessoa apareceu... sentaram-se e assim ficaram... o inevitável anúncio... os nove meses de transição que Fernando Pessoa tinha falado passaram... "não nos tornaremos a ver"

65. Ricardo Reis levanta-se, pega no livro que nunca conseguira ler, aquele que não devolveu da viagem de regresso no Highland... "the god of the labyrinth"... então vamos disse... não conseguirá ler é a primeira virtude que perde com a morte... deixo o mundo aliviado de um enigma

66. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis

67. Aqui onde o mar se acabou e a terra espera.

Epígrafe "Ricardo Reis regressou a Portugal depois da morte de Fernando Pessoa" José Saramago

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

"Levantado do Chão" Palavras de José Saramago quando recebeu o Prémio Cidade de Lisboa (1982)



Via página da Fundação José Saramago, no seu espaço "Memória", a propósito dos 35 anos do lançamento da obra "Levantado do Chão", aqui em

"Palavras de José Saramago ao receber o Prémio Cidade de Lisboa

Em Junho de 1982, José Saramago recebeu no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa o “Prémio Cidade de Lisboa”, galardão que lhe foi atribuído pela obra “Levantado do Chão”. A seguir o discurso proferido pelo escritor na altura."


João Alexandre Barbosa escreve sobre José Saramago "Até os limites da realidade" 06/12/1998)

Um texto do académico João Alexandre Barbosa

Pode ser lido e consultado em http://www.jornaldepoesia.jor.br/1jab.html

"Até os limites da realidade" (publicado em 06/12/1998)

"Vejo agora que venho lendo a obra de José Saramago há muito tempo. A prova está na mistura de edições em que tenho os seus textos publicados por duas ou três editoras portuguesas e, a partir de uma certa época, a brasileira Companhia das Letras, que, para quem lê no Brasil, seguindo aquilo que é feito, do lado de Portugal, pela Editorial Caminho, veio dar uma certa ordem no caos editorial que costumam sofrer os escritores de língua portuguesa. 
E por aí se vê que, embora tenha começado como romancista desde 1947 com "Terra do Pecado", publicado pela Editorial Minerva, somente em 1977, com "Manual de Pintura e Caligrafia, da Edição Moraes, assume a identidade de romancista que, para o público mais amplo, atinge a sua plenitude com a publicação, em 1982 e já pela Caminho, do "Memorial do Convento". Duas consequências para a reflexão: durante 30 anos entregou-se ao jornalismo e à poesia (de que dão notícias os livros "A Bagagem do Viajante", "Os Apontamentos" e "Os Poemas Possíveis", "Provavelmente Alegria" e "O Ano de 1993", respectivamente) e somente há 21 anos vem escrevendo os romances que lhe conferem, sem qualquer sombra de dúvida, a posição de um dos melhores prosadores de língua portuguesa deste século que vamos terminando -e, para dizer a verdade, o plural só está aí pela existência anterior de João Guimarães Rosa. São dez romances: além dos já citados "Terra do Pecado", "Manual de Pintura e Caligrafia" e "Memorial do Convento", "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "A Jangada de Pedra", "A História do Cerco de Lisboa", "O Evangelho segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos os Nomes". E não é muito difícil estabelecer, desde logo, uma marca narrativa que, por assim dizer, articula a variedade ficcional de cada um: a presença forte de um narrador, quase sempre no limiar da dicção autobiográfica, que busca fixar, no patamar mais objetivo da história e da realidade circunstancial, as dissonâncias das experiências subjetivas de que a linguagem tem dificuldades em dar conta.
Neste sentido, o chamado romance histórico sofre, com Saramago, um desvio fundamental: a história circunstancial não lhe serve apenas para alimentar a imaginação, mas esta, por meio de pequenos e substanciais erros de leitura, como vai estar explícito naquele "não" introduzido pelo revisor de "A História do Cerco de Lisboa", cria uma complexidade de maior realidade, pois inclui no real histórico as dissonâncias da própria linguagem que é utilizada para a sua apreensão. O que, por outro lado, permite ou mesmo imanta a presença contínua de uma desconfiança de base para com os dados históricos, freqüentemente embaralhados pelo imaginário da linguagem. E como este, no caso de um romancista, está constituído, sobretudo, pelas fontes próprias da tradição narrativa, o chamado romance histórico, em Saramago, inclui necessariamente, e de modo solidário, a história do próprio gênero. Por isso, é possível dizer que, na esteira do que há de mais inovador na narrativa moderna e pós-moderna, o romance de Saramago é uma prolongada discussão acerca das relações possíveis entre a representação da realidade pela linguagem da narrativa e as inserções operadas pela imaginação ficcional.
Quando, portanto, o próprio Saramago apontava Pessoa, Borges e Kafka como, para ele, os mais importantes escritores do século, estava sinalizando para aquilo de que a sua própria obra dá testemunho, isto é, quer para a multiplicidade de vozes ficcionais que está em Pessoa, quer para a realidade da ficção, como está em Borges, quer para a precisão do sonho e do imaginário de Kafka, tudo, no entanto, por assim dizer, sob a tensão de uma consciência dilacerante da linguagem. Veja-se, por exemplo, o modo pelo qual, no seu último romance, "Todos os Nomes", transmite ao leitor lugares e tarefas que constituem o espaço da grande sala da Conservatória Geral do Registro Civil e que serve de pórtico à narrativa:
"A disposição dos lugares na sala acata naturalmente as precedências hierárquicas, mas sendo, como se esperaria, harmoniosa deste ponto de vista, também o é do ponto de vista geométrico, o que serve para provar que não existe nenhuma insanável contradição entre estética e autoridade. A primeira linha de mesas, paralela ao balcão, é ocupada pelos oito auxiliares de escrita a quem compete atender ao público. Atrás dela, igualmente centrada em relação ao eixo mediano que, partindo da porta, se perde lá no fundo, nos confins escuros do edifício, há uma linha de quatro mesas. Estas pertencem aos oficiais. A seguir a eles vêem-se os subchefes, e estes são dois. Finalmente, isolado, sozinho, como tinha de ser, o conservador, a quem chamam chefe no trato cotidiano.
A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo
a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca. A contínua agitação dos oito da frente, que tão depressa se sentam como se levantam, sempre às corridas da mesa para o balcão, do balcão para os ficheiros, dos ficheiros para o arquivo, repetindo sem descanso estas e outras sequências e combinações perante a indiferença dos superiores, tanto imediatos como afastados, é um factor indispensável para a compreensão de como foram possíveis e lamentavelmente fáceis de cometer os abusos, as irregularidades e as falsificações que constituem a matéria central deste relato".
Eis, portanto, um traço estilístico de Saramago em sua essência:
os dados da realidade objetiva são expostos até os seus últimos limites, não obstante as interferências irônicas, para que então possa surgir o elemento de dissonância que se introduz pela movimentação final do trecho citado e que é sua decorrente: o erro, o abuso, a irregularidade ou a falsificação que transformam a rasura do nome num motivo de procura pelo nome que é o romance e que por aí faz o leitor retornar, mesmo que não o saiba, às fontes primordiais do gênero narrativo. Mas a busca pelo nome, que é também a da identidade, tudo envolve, desde aquele que busca até o objeto que se busca e, por isso, a história se confunde com as histórias individuais, sejam as do personagem Sr. José, sejam as deste romance que dialoga com as suas origens. Nascimento e morte, fichas hierárquicas da Conservatória, diapasões pelos quais se mede o pulsar da realidade, é o espaço e o tempo que são alterados e renomeados pela presença do erro que somente o imaginário da ficção foi capaz de provocar."


* João Alexandre Barbosa é professor aposentado de teoria literária da USP. Autor, entre outros, de "A Biblioteca Imaginária" (Ateliê Editorial).