Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 30 de agosto de 2015

"O Evangelho segundo Jesus Cristo" - Projecto de adaptação cinematográfica de Miguel Gonçalves Mendes

Pode ser consultado e lido aqui
em http://mgm.org.pt/mgm_projetos_evangelho.shtml



"Encontramo-nos no ano zero. Certo dia, José e Maria de Nazaré recebem a visita de um mendigo que lhes pede comida. Ao devolver a tigela, o mendigo, anuncia a Maria que esta está grávida e oferece-lhe uma estranha terra luminosa desejando-lhe que o filho não tenha o mesmo destino que ele. Em "O Evangelho segundo Jesus Cristo" é nos contada a história humanizada da vida de Jesus filho de Maria, que “conhece o amor da carne e nele se reconheceu como homem”. Esta perspectiva, da humanização de Cristo, distancia-se largamente da representação tradicional do Evangelho, evidenciando a fragilidade e vulnerabilidade de Jesus, um homem que não compreende a metamorfose a que está sujeito e que liminarmente a rejeita. É a história de toda uma humanidade que se encontra à mercê dos desígnios de um Deus, contra os quais não pode lutar quaisquer que sejam, e em nome do qual tudo é permitido e justificado até o ato mais cruel e horrendo. A presente adaptação trata simplesmente de transpor para uma dimensão terrena um homem, a quem foi atribuída uma função sobre-humana que nunca pediu, nem desejou, e quais as consequências deste destino na sua vida e no mundo que o rodeia. Esta obra cinematográfica "O Evangelho segundo Jesus Cristo", põe de parte as questões polémicas que se levantaram aquando da publicação do livro de José Saramago e aspira ser a simples transposição para cinema de uma das mais belas narrativas escritas em língua portuguesa.

Nota do diretor
O que me atrai neste livro é a ideia de culpa, de impotência e de livre arbítrio. A culpa como um estado psicológico existencial. A impotência não só da humanidade em geral mas sobretudo, a de Jesus perante um desígnio que o ultrapassa, que não desejava e, a forma inevitável como terá de o aceitar. Existe neste Jesus uma espécie de recusa adolescente que vai dando lugar a uma serenidade e secura. Uma espécie de passagem para a idade adulta. E o livre arbítrio como que manietado pelas duas ideias anteriores. Este filme pretende assim retratar a que ponto chega a crueldade humana, seja em nome do poder, do dinheiro, das relações ou de um deus. O grotesco neste filme assume um papel fundamental: não no sentido escabroso do termo, mas sim no sentido do reconhecimento da realidade. Trata-se simplesmente de retratar a realidade como ela é, sem subterfúgios ou condescendência, pacificando-nos com isso."

"Viagem a Portugal" Novo projecto de Miguel Gonçalves Mendes para 2015?

Aqui informação via http://mgm.org.pt/mgm_projetos_viagem.shtml

"Em 2015 a produtora JumpCut e a Fundação José Saramago se unem para homenagear os 30 anos de lançamento do livro “Viagem a Portugal” de José Saramago. O projecto pretende elaborar uma releitura da obra para os tempos atuais, de um Portugal contemporâneo, pós crise económica e pós Troika, através do olhar do diretor Miguel Gonçalves Mendes."


Exposição "Lanzarote a janela de Saramago" de João Vilhena em Oeiras de 19/9 a 18/10



A Câmara Municipal de Oeiras apresenta a exposição “Lanzarote a janela de Saramago” 
de 19 de setembro a 18 de outubro de 2015, 
no Centro Cultural Palácio do Egipto. 

“Lanzarote a janela de Saramago” é uma exposição composta por fotografias, 
da autoria de João Vilhena, a preto e branco, sépia e cor, 
da ilha de Lanzarote e do escritor.

A exposição incorpora também uma instalação feita com palavras de José Saramago 
que interagem com as fotografias 
e uma partitura sonora criada para o efeito pelos músicos Cindy Kat. 


Horário: 
Terça- feira a Domingo, das 12h00 às 18h00.
Encerrado aos feriados.

Centro Cultural Palácio do Egipto (CCPE)
Rua Álvaro António dos Santos
2780-182 Oeiras
Telf: 21 440 83 91 (CCPE); Telf: 21 440 87 81 (Posto de Turismo de Oeiras)

"Geometria fractal" post no Blog/Livro "O Caderno"

Pode ser consultado e lido aqui
em http://caderno.josesaramago.org/33361.html

(Fotografia aérea de Héctor Garrido)


"Geometria fractal"
"Tal como o sr. Jourdain de Molière fazia prosa sem o saber, houve um momento na minha vida em que, sem me ter apercebido do fenómeno, me encontrei metido em algo tão misterioso como a geometria fractal, da qual, escusado seria dizê-lo, ignorava tudo. Foi isso pelo ano de 99, quando um geómetra espanhol, Juan Manuel Garcia-Ruiz, me escreveu a pedir a minha atenção para um exemplo de geometria fractal presente no meu livro Todos os Nomes. Indicava-me a passagem em questão, a qual reza assim: “Observado desde o ar… parece uma árvore tombada, com um tronco curto e grosso, constituído pelo núcleo central de sepulturas, de donde arrancam quatro poderosas ramas, contíguas no seu nascimento, mas que depois, em bifurcações sucessivas, se estendem até perder-se de vista, formando… uma frondosa copa em que a vida e a morte se confundem”. Não pensei em mudar de ofício, mas todos os meus amigos notaram que havia uma convicção nova no meu espírito, uma espécie de encontro na estrada de Damasco.Durante aqueles dias ombreei com os melhores geómetras do mundo, nada mais, nada menos. Aquilo a que eles haviam chegado à custa de muito estudo, alcançara-o eu graças a um golpe de intuição científica, do qual, falando fracamente, apesar do tempo que passou, ainda não me recompus. Dez anos depois, acabo de sentir a mesma emoção na figura de um livro intitulado Armonía Fractal – De Doñana a las marismas de que Juan Manuel é autor, juntamente com o seu colega Héctor Garrido. As ilustrações são, em muitos casos extraordinárias, os textos de uma precisão científica nada incompatível com a beleza das formas e dos conceitos. Comprem-no e regalem-se. É uma autoridade quem o recomenda…"
O Caderno 2, entrada de 31 de Março de 2009

(Partenon e a edificação através da Proporção Áurea)

Sobre esta temática, a académica e estudiosa Eula Carvalho Pinheiro, elaborou para o número 2 da "Revista de Estudos Saramaguianos" um trabalho denominado "Todos os Nomes do Homem Duplicado ou o Caos é uma Ordem por Decifrar"



sábado, 29 de agosto de 2015

José Saramago - Das aparências das coisas - Entrevista de Helena Barbas (Expresso 2004)

A entrevista pode ser consultada e lida, através do site da autora,
em http://escritashbarbas.pbworks.com/w/page/19246211/JoséSaramago-DasAparênciasdasCoisas


José Saramago - "Das Aparências das Coisas"

Das aparências das coisas - Entrevista de Helena Barbas a José Saramago

(Foto de Helena Barbas, mais informação sobre trabalhos da autora

Pretende que o seu romance seja subversivo. José Saramago falou connosco sobre os modos da visão, do ilusório e do real, da sua arte

Depois do seu último livro, Ensaio sobre a Lucidez, que acabou de lançar em Lisboa, José Saramago vai regressar à arte de todas as aparências, a ópera. E terá pronto em Abril um libreto para um Don Giovanni - muito seu - que estreará no próximo ano no teatro A La Scala de Milão. Para esta conversa o pretexto primeiro foi o romance.

Comecemos pelo seu Ensaio sobre a Lucidez, que gira em torno do voto em branco. Recordava-lhe um facto já histórico, do tempo do PREC, quando votar em branco era votar no MFA...
Quando fui director adjunto do Diário de Notícias, lembro-me de ter escrito qualquer coisa nesse sentido, mas explicando o que queria dizer quanto ao voto em branco. A pessoa que o expressasse pretenderia dizer isto: ainda não tenho informação suficiente sobre o que me propõem, por isso ponho o voto em branco para confirmar que estive cá, e que vou pensar.

Não é dizer: não tenho confiança em nenhuma das listas?
Pode acontecer, pode acontecer.

E não poderá ser lido como um acto de desobediência civil?
É claro que sim. Mas naquela situação a que fez referência, o voto em branco podia ser entendido de diferentes maneiras. Uma era essa, o apoio ao MFA, E também aquela outra, que era a minha tese: eu voto em branco porque vivemos estes quarenta e oito anos na situação em que vivemos, e agora aparece a liberdade e, segundo dizem, aparece a democracia, e eu não sei ainda muito bem o que hei-de fazer mas, de qualquer forma, o meu voto em branco ficou aí e pode ser que nas próximas eleições já não seja em branco.

Não acha mal então que sejam contados juntos os brancos e os nulos?
Acho péssimo. Um voto em branco não é um voto nulo. Um voto nulo é um voto que eu inutilizo de variadíssimas maneiras. É nulo porque não expressa nada, porque se recusa. Se o voto não traz nenhum sinal - e agora estou a referir-me à cruzinha no quadrado do Partido - é aquilo que na lei eleitoral é muito claro: o voto branco é um voto expresso.

Este seu livro é quase profético relativamente ao que aconteceu em Espanha, na semana de 11 de Março. Sente-se incomodado? A vida ultrapassa a arte?
E a arte ultrapassa a vida - eu acho que vão de braço dado. Como acontece quando vamos dois de braço dado, há um dos dois que vai meio passinho adiante. Vida e arte, realidade e fantasia, vão todos juntos, no mesmo caminho e na mesma caminhada.

Disse numa entrevista à TSF que éramos enganados todos os dias, e que de alguma forma este livro pretendia desmontar esse engano - mas a sua desmontagem acaba mal...
Como não sou leviano, como não sou adolescente nem ingénuo, admito que possa acabar mal. No caso do livro, no caso da história que conto, o governo desse país que sabemos que nunca é mencionado — embora a certa altura haja o «portugueses e portuguesas» e o narrador se apresse a dizer que não, isto é só um exemplo, poderia ser «franceses e francesas»...

O seu romance pode ser lido como uma crítica a esta democracia que nós temos?
Não, o livro deve — não tenho que estar para aqui a dizer que o livro deve — mas posso dizê-lo de outra maneira. O livro propõe-se efectivamente dentro do sistema. Curiosamente, pode ser subversivo, mas o que acontece é perfeitamente legal: o uso do voto em branco é legal. O gracioso é que, um sistema como este que nos governa, admite que se apresentem votos em branco nas urnas, mas não se preocupa muito com a contabilidade deles, porque é sempre uma coisa simbólica, testemunhal — 1 por cento, 1,5 por cento, à volta disso —, e portanto não incomoda, não perturba o sistema, não provoca nervosismo. Agora, se esse voto em branco passasse a dez por cento — já não quero dizer como no livro, a 83% — isso era o terramoto de 1755 sem vítimas e sem estragos.

A sua história é uma crítica ao sistema...
Eu critico aquilo que está. E digo redondamente: os governos são comissários políticos do poder económico. Isto é claríssimo como água, e é preciso que seja dito. Sobretudo, é preciso que esses mesmos governos — e agora falo dos governos, ou dos políticos que estão no governo ou que estão fora do governo — façam o favor de, nem sequer com as melhores intenções, se darem ao trabalho de enganar os eleitores.

Acha que a situação é premeditada...
Vivemos agora numa situação de emprego precário, e cada vez mais. É evidente que nenhum governo, por si só, estabelece agora regras que conduzam à precariedade do emprego. A nenhum governo ocorreria isso. Mas o governo actua, prepara a legislação necessária, para que isso seja introduzido na sociedade, e a pressão vem de fora. Vem do outro poder, que diz não a isto de ter empregos permanentes, e a que as pessoas se habituem a viver assim, até ao fim dos seus dias, reformando-se e tudo isso, não, não... rotação, mobilidade. E a mobilidade é isto, é o desemprego, é o factor constante de medo, com as pessoas a chegarem ao emprego sem saber se ainda têm trabalho, com medo que lhes digam: recolha as suas coisas e vá-se embora. Ou os operários de uma fábrica que são surpreendidos — que já ninguém se surpreende, enfim... — porque a empresa decidiu instalar-se nas Filipinas, ou onde quer que seja, porque a mão-de-obra é mais barata. Nenhum governo proporia isto, mas os governos estão aí para que isto seja possível.

Há uma conspiração secreta...
Nada secreta. O poder económico, em primeiro lugar, contempla os seus próprios interesses, não está aí para construir a felicidade das pessoas. O poder económico só tem para vender, não oferece nada, mas também nunca ninguém ofereceu nada...

Mas os desempregados também não podem comprar...
Não. Mas, curiosamente, ninguém se preocupa com o facto de os desempregados não poderem comprar, porque os outros, os que ainda estão empregados, vão continuar a comprar... e sabemos o que é que significa comprar hoje: significa obedecer a uma espécie de compulsão, a que não se pode resistir, e que se compra, e que se compra...

Somos todos vítimas da sociedade de consumo?
Lembro-me de quando era menino, e a minha mãe me dizia - vai por o caixote à porta. Era uma frase doméstica, dita à noite, sempre: vai pôr o caixote à porta. O caixote do lixo, claro. E no caixote do lixo, o lixo era pouquíssimo. Era uma coisa insignificante, quando tudo se consumia, tudo era tratado de tal maneira que se consumisse. Agora não. Só em embalagens, em frascos e latas e tudo isso... Mas enfim, não estou a pedir para voltar ao tempo em que as mães diziam aos filhos vai por o caixote à porta. Não é disso que se trata.

Trata-se de uma crise na democracia como ideia? Falo das manifestações de rua: as que houve em Espanha, em dia de reflexão eleitoral, quando era proibido; as manifestações contra a guerra, convocadas à revelia do poder...
Falo primeiro sobre o dia de reflexão. Foi ilegal, porque as pessoas se manifestaram à porta das sedes dos partidos, contra instruções do Partido Popular, porque era um dia de reflexão. Mas também era dia de reflexão para o senhor Mariano Rajoy, que publicou no sábado, no jornal El Mundo, uma entrevista em que apelava à maioria absoluta. O que é condenável, é condenável para todos e acabou-se.

Estava a pensar no termo democracia — o governo pelo povo — e o povo na rua não mandar nada. Em Espanha, de algum modo, mandou alguma coisa...
É possível ver a coisa de outra maneira. Recuemos um ano. Fevereiro e Março de 2003, portanto vésperas desta guerra. Milhões de pessoas — estou a falar de Madrid e Barcelona e várias outras cidades — milhões de pessoas na rua. Segundo sondagens que nem sequer foram contestadas pelo governo, noventa por cento da população de Espanha estava contra a guerra. Foi dito e repetido, e ninguém diz que não era verdade. (Embora as sondagens sejam uma questão de fé, e a fé também possa ser uma questão de sondagens). Enfim. Houve umas eleições depois, não se notou porque o PP ganhou. E houve uma diferença óbvia entre a primeira e a segunda legislatura do PP. A primeira foi uma legislatura normal, pacífica, trabalharam bem — sem ter em conta o ponto de vista ideológico — no conjunto foi uma legislatura positiva. Na segunda, entrou-lhes a soberba, entrou-lhes a insolência do poder. E o caso do Prestige, tudo o que sucedeu...

Há um problema de falta de informação, de mentira...
De negação da verdade. Não quero dizer a mentira, porque para mentir é preciso construir algo para pôr no lugar da verdade. Mas há uma outra técnica, que é negar que aquilo que toda a gente sabe ser a verdade, ou uma verdade, ou a verdade aparente pelo menos...

A evidência?
A evidência ser sistematicamente negada. E quando o senhor Aznar, no rancho do Texas com o senhor Bush, pôs os pés em cima da mesa, julgava que se tinha posto à altura dos grandes estadistas. Como não há grandes estadistas actualmente... Ao lado do Senhor Bush, do senhor presidente dos Estados Unidos, nada mais, nada menos. Concretamente, a ideia que ele teve, de transformar a Espanha numa grande potência internacional, é admissível e até, enfim, louvável, ou plausível para um político. Mas, se ele teve essa ideia, tornou-a imediatamente numa submissão canina às ordens e às directrizes que lhe vinham lá do outro lado. As pessoas em Espanha compreenderam isso, foram compreendendo isso, e a segunda legislatura foi cheia de tensões contínuas — sociais, políticas. E havia um fermento na sociedade que estava a agitar tudo, como se as pessoas estivessem fartas. No fundo era isto. Agora, podia acontecer que o PP ganhasse, ou com a maioria absoluta ou sem ela. O Partido Socialista poderia ganhar a sul, nas previsões mais optimistas, mas seria apenas em situação de empate técnico. Não se esperava era que a diferença, a vitória do PS fosse a que foi.

Foram as pessoas na rua que fizeram isso?
Não foram as pessoas na rua. Houve dois milhões de votos de novos eleitores, jovens que votaram pela primeira vez, e que decidiram, na sua maioria, votar no PS. As pessoas na rua podiam dar o efeito contrário. O temor das agitações que levassem as pessoas a proteger-se sob a alçada do que aparentemente lhes tinha dado segurança ao longo dos oito anos anteriores.

Tudo isso tem a ver com o seu livro — as manipulações, a falta de informação...
Efectivamente, há coincidências perturbadoras. Mas são coincidências e que resultam da própria vida. Se há um extremo, o voto em branco numa situação política determinada, com um governo que se comporta como se comportou esse, com as consequências todas até ao remate trágico que o livro tem... é natural. Isso pode não ser cópia do que aconteceu fora do livro, mas o livro alimenta-se disso...

Do que poderia ter acontecido?
Da realidade do que poderia ter acontecido. Que tivesse sido necessário encontrar uma vítima, sabemos que é assim, que o governo tenha posto uma bomba... Mas, enfim! O couraçado Maine foi afundado na Baía de Havana para justificar a guerra dos Estados Unidos contra Espanha para rapar Cuba. Lembra-se da bomba posta cá na Antena? Foi o governo, e atribuiu-se à extrema-esquerda, que nesse caso estava completamente inocente. E o incidente, chamado da Baía de Tonquim, que deu pé à intervenção Norte americana no Vietname, que simplesmente não existiu. Também há uma coisa que se chama terrorismo de estado...

Uma estratégia da aranha?
Não sei quem é a aranha, sei quem são as moscas, e as moscas somos nós.

Este seu romance — pegando no título — é uma resposta ao Ensaio sobre a Cegueira?
Não. Repare, o Ensaio sobre a Cegueira foi publicado em 1995, portanto passaram quase dez anos, e quando terminei o livro, e durante o tempo em que o escrevi, não pensei que a cegueira viesse a ter uma continuação. E o Ensaio sobre a Lucidez não é uma continuação...

Mas aparece nele uma fotografia, com as personagens todas do primeiro livro...
Uma fotografia que eu não tinha feito, ou não tinha mandado fazer a alguém no Ensaio sobre a Cegueira, mas que aqui é natural...

É natural...?
Aquele grupo de sete pessoas que estavam juntas no Ensaio sobre a Cegueira, não é natural que depois de recuperarem todos a vista tivessem feito uma fotografia? A fotografia do grupo? E não é natural que as cópias dessa fotografia estivessem em poder de todos eles?

Claro, perfeitamente, até há fotografias dos casamentos...
E nós não temos fotografias da praia e do campo e de qualquer outro sítio?

Mas «cegueira» versus «lucidez»...
O tema apresentou-se-me com uma nitidez enorme, em finais de Janeiro do ano passado. Já contei. Estava em Madrid, dormia, acordei, vi o relógio e eram três horas exactas da madrugada. Não estava a sonhar com votos, nem brancos nem pretos, nada disso. De repente tive a ideia — isto é para tratar num romance. E, como felizmente para mim acontece quase sempre — poupa-me o trabalho de andar à procura de títulos — este apresentou-se-me logo: Ensaio sobre a Lucidez. É evidente que nesse momento se estabeleceu uma espécie de díptico — Ensaio sobre a Cegueira, Ensaio sobre a Lucidez — opondo-se, claro está, a lucidez à cegueira. Quem quiser tomá-lo como uma continuação, está no seu direito. Mas na minha cabeça e na minha intenção nunca o foi...

Não será outro modo de reflectir sobre a mesma coisa?
Não, são duas coisas realmente diferentes. Embora seja certo que na última página deste livro reaparecem os cegos, que não se sabe de onde eles vêm...

De Brueghel?
Podia ser. E que dizem: detesto ouvir os cães a uivar. Como reparou, a epigrafe, é «Uivemos, disse o cão». Uivemos.

O cão para si é importante — há sempre um cão... — tem um cão?
Tenho três cães. Este cão é metafórico. Há cães que aparecem por aí. Há o «cão das lágrimas» no Ensaio sobre a Cegueira...

Em «A Caverna» também..
Na Caverna há um cão, que é o Achado, e que é o retrato de um que eu tenho que se chama Camões. Um cão abandonado que nos apareceu em casa no dia em que me anunciaram de Lisboa que eu tinha recebido o Prémio Camões. Então a minha mulher disse, olha, como foi neste dia, vamos chamar-lhe Camões. Aqui há dois cães. O «cão das lágrimas», que vem do Ensaio sobre a Cegueira, e esse cão, do Livro das Vozes, que está aqui a dizer «uivemos» porque parece que chegou o tempo de começarmos a uivar todos. Os cães somos nós. Há bocado eu dizia — sobre a estratégia da aranha — que as moscas éramos nós. Diria neste caso que os cães somos nós. E temos que começar a uivar.

Mas há outra coisa com os seus cães —os cães têm nome. A maior parte das personagens não tem, só recebe alcunhas como os «tipos» medievais...
O «cão das lágrimas» tem esse nome porque na verdade fez qualquer coisa que não é muito comum num cão — aproximou-se da «mulher-do-médico» para lhe secar as lágrimas...

Confirma o que eu disse. Nos seus livros há uma obsessão com os nomes —no Cerco há a listagem de nomes, em Todos os Nomes há aquele arquivo estranho...
Anda que só apareça um nome, que é o nome do Sr. José...

Se por um lado há o anonimato, que é a quantidade excessiva de nomes, por outro há uma ou outra personagem que aparece com um nome determinado — o José, o Raimundo.
Na História do Cerco de Lisboa toda a gente tem o seu nome.

Mas aí diz que os nomes não são importantes, que «deveria ser um homem a escolher o seu próprio nome e a mudá-lo todos os dias», que «um nome não é nada»...
Um nome não é nada. A Helena Barbas podia chamar-se Raquel - Raquel Welch...

Muito obrigada...
E eu chamo-me José Saramago, como você sabe, por uma casualidade, porque Saramago era a alcunha da família.

E as suas personagens têm todas alcunha, um nome como os dados na província, ligados à profissão...
Se uma pessoa se chama António Carpinteiro, isso significa algo. Pode significar que o nome coincide com a profissão que se tem, ou que essa profissão tenha vindo de longe. Sousa — que eu também me chamo Sousa, José de Sousa Saramago — é um tipo de pombo bravo, que nalgumas regiões se chama Sousa. Por tal, não nos preocupemos muito com a questão dos nomes, e sobretudo hoje. Você repare, no Ensaio sobre a Lucidez há um momento em que se refere Wagner, e Wagner aparece escrito com caixa baixa, parece uma falta de respeito. É que tudo se está a tornar insignificante. A única coisa que efectivamente nos identifica hoje, de uma maneira segura, é o número do cartão de crédito...

Ou o número de contribuinte?
Desculpe, mas é que o número do contribuinte só tem importância no país onde se está. O número do cartão de crédito é universal, é mundial, é um número que não se repete. Enquanto que os nossos nomes se repetem —os José da Silva são milhares, e os Josés de Sousa — se não lhe tivessem acrescentado o «Saramago» o meu nome seria repetido mil vezes. Agora o cartão de crédito não. Esse identifica, e identifica-me a mim diante de todos de uma forma absolutamente clara.

Global?
Globalmente. No mundo somos aquele número. Você aqui tem o número de contribuinte, e tem o número de eleitor, e tem o bilhete de identidade, uma quantidade de números que no fundo são complementares uns dos outros. O outro não necessita de mais nada.

Vai ser o novo cartão de identidade?
Provavelmente. Por um lado é. Enquanto não se chegar à tatuagem no braço.

Um código de barras?
É outra hipótese.

Regressemos aos seus livros. Há uma a espécie de miasma, no sentido grego, uma peste que se vai desenvolvendo e contaminando tudo de maneira mais ou menos insidiosa...
Não em todos. Há é uma outra característica que você pode encontrar em todos os meus livros: partem sempre ou, quando não partem, contêm sempre na história que contam algo impossível de acontecer. É impossível, em princípio — no outro dia saiu uma notícia no jornal que dizia que na Rússia há uma rapariguinha que vê através da pele. Não sei se é certo ou não, a Blimunda via através da pele. Depois da Blimunda o que é que temos? O Ricardo Reis, que não tem existência nenhuma, regressado do Brasil e a encontrar-se com o Fernando Pessoa que já está morto. Outra impossibilidade. A Jangada de Pedra, separar a península ibérica da Europa —outra impossibilidade. A História do Cerco de Lisboa: negar que os Cruzados ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa, é preciso ter coragem, mas está lá. E depois o que é que vem? O Evangelho Segundo Jesus Cristo em que de facto se está a dizer coisas diferentes daquelas que são canonicamente estabelecidas e aceites. No Ensaio sobre a Cegueira, toda a gente cega, é impossível. Em Todos os Nomes, uma conservatória como aquela, não pode existir. A Caverna —a caverna de Platão debaixo de um Centro Comercial, também não pode ser. O Homem Duplicado — duas pessoas duplicadas uma da outra...

Isso agora já é possível...
Não é possível.

Não acredita na clonagem?
Não tenho que acreditar ou não. A clonagem pode produzir dois seres exactamente iguais, mas a vida pode fazer com que essa igualdade sofra, enfim, que seja afectada por um acidente, por uma cicatriz, pela queda do cabelo — que caia a um e não caia ao outro. No caso de O Homem Duplicado não. Se um deles tem uma cicatriz aqui, o outro tem uma cicatriz aqui. Se um deixou crescer o bigode, o outro deixou crescer o bigode. Se depois o tirou, o outro também o tirou, sem saberem um do outro. Portanto, é uma duplicação absoluta, em qualquer momento e em qualquer circunstância. E agora, o Ensaio sobre a Lucidez, em que eu acho que é realmente impossível que em algum lugar do mundo os cidadãos votem, até 83%, em branco.

Está a dar ideias às pessoas?
Se não há uma impossibilidade, provavelmente não há romance. Necessito desse estímulo.

Há uma outra constante, que é a preocupação com a visão, com as várias possibilidades de visão - os que vêem mais, os que vêem menos, os cegos, os que vêem através da pele...
Bom, acho que sim, vamos ver. Toda a sociedade humana está organizada em função da visão, da imagem.

Fala da visão normal, do sentido do órgão da vista. Mas o que os outros tipos de visão implicam tem a ver com a lucidez. No Ensaio sobre a Cegueira  tem um cego —um zarolho — que vê mais que os outros...
No fundo, é a visão objectivamente considerada, claro está, e a visão como metáfora. Estão uma e outra, mas a visão como metáfora está presente, não direi em todos, mas pelo menos a partir do Ensaio sobre a Cegueira. Não é que se tivesse tornado um «leitmotiv», mas talvez tenha alguma influência o facto de eu ter tido que passar por duas operações à vista — cataratas, e um desprendimento da retina — e me tivesse condicionado nesse sentido. Estou mais preocupado, em primeiro lugar, com a visão tal qual, e em segundo lugar com as outras possibilidades de visão, enfim, a visão premonitória que um artista pode ter. Quando escrevi este livro, não tinha acontecido nada.

Aqui também faz uma maldade grande aos jornais — o jornalismo como forma de poder?
O jornalismo nunca foi poder. Quando há anos chamávamos aos jornais e aos media o «quarto poder», no fundo éramos uns ingénuos. Os «media» — os chamados média — são um mero instrumento. Não é verdade que se diz que os jornais vendem leitores aos anunciantes? Não é uma invenção minha, juro-lhe que não é. Eu percebo, têm que ganhar a vida. Já não é pouco correr o risco permanente de se perder o emprego. Mas aquilo que não posso perdoar é o instinto camaleónico. Muitos profissionais da comunicação como que se adaptam ao meio ambiente, passam de um jornal a outro, e pensavam antes assim, e depois passam a pensar o contrário. Enfim, a realidade é essa, agora, claro esse país do livro não existe, esse país...

É utópico?
E há-de concordar também que se é certo que há uma crítica, uma crítica realmente acerada aos meios de comunicação — sobretudo a televisão e os jornais — também aí se diz que há um jornal que decide enfrentar os riscos e enfrenta-os, e sofre as consequências...

E acaba cheio de processos?
Não está aí para equilibrar, de maneira nenhuma. Está aí porque acontece. Também acontece. Mas se olharmos a paisagem, essas são as excepções. A regra não é essa.

Falemos da sua escrita — sente-se que a escrita deste livro lhe deu muito gozo...
Deu, deu. O romance é um romance, é uma fábula, uma sátira e uma tragédia. E digamos que no que tem que ver com a sátira deu-me realmente muito gozo. Gozo. E também, digamos, na ligeireza da construção, nas acelerações e nos retardamentos — há momentos em que me entrego a uma certa lentidão, que é propositada, depois a uma súbita aceleração, tudo isso me deu muito gozo.

Mudanças de respiração?
Sim, e essa coisa de conduzir o leitor...

É uma manipulação, também.
Pois é, mas enfim, manipular também é trabalhar com as mãos, etimologicamente é esse o sentido da palavra. Depois tem os sentidos segundos, e terceiros e quartos e quintos, e acontece que esses acabam por ganhar mais força que o sentido primordial. Mas sabemos que essa outra manipulação é puro engano, é mentira, é falsidade. Chama-se manipulação porque no fundo a palavra tem uma dose de eufemismo, que faz com que ninguém diga, em lugar de manipulação: engano, mentira. E a palavra que lá devia estar era essa. Engano, mentira, ou falsidade.

A palavra ilusão não dava?
Não, ilusão não. É melhor não a confundirmos mais do que já está.

Quanto a estes seus narradores, esta sua estratégia de escrita — a ausência de pontuação e maiúsculas, embora apareça mais nuns textos que outros — é uma provocação? Como é que chegou a ela?
Cheguei a essa escrita de uma maneira perfeitamente natural, e espontânea. Não é o resultado de me por eu a pensar o que é que hei-de dizer, como é que hei-de dizer alguma coisa que não seja comum. O Levantado do Chão foi publicado em 1980, e foi vivido, de uma certa maneira, em 1976, durante um certo tempo numa região do Alentejo, em Montemor-o-Novo, numa aldeia chamada Lavre, onde estive semanas e semanas. Aí recolhi tudo o que tinha que recolher, a informação — enfim, o que se conta no livro — além do que não é resultado de escolha e, digamos, que é o resultado da operação ficcional que monta factos e os organiza. O livro foi escrito em 1979 — 3 anos depois. Eu tinha o assunto, tinha gravações de pessoas idosas que me haviam contado coisas há uma grande quantidade de anos, que aparecem depois no livro, e o meu problema era este: não saber como havia de contar esta história. E durante 3 anos — é certo, publiquei em 1977 o Manual de Pintura e Caligrafia, e depois o Objecto Quase — mas esse malvado Levantado do Chão andava a moer-me o fígado porque eu não encontrava a forma. E de vez em quando ia ao Lavre e as pessoas perguntavam-me, mas então o livro, quando é que o livro sai? E eu dizia, bem, estou a pensar, estou a preparar. E um dia sento-me a trabalhar, e começo a escrever como qualquer outro livro escrito, com todas as coisas nos seus lugares — a pontuação, diálogos, sinais de pontuação, interrogação, exclamação, reticências, tudo no seu lugar. Durante vinte e três ou vinte e quatro páginas, as coisas correram assim. Agora peço-lhe, como um favor pessoal, que acredite no que lhe vou dizer, e que não pense que isto é a outra invenção minha. Porque não é. Foi assim que as coisas aconteceram. De repente, sem pensar, começo a escrever como a partir daí se tornou o meu processo de narrar. De tal maneira que, quando cheguei ao fim do livro, tive que voltar ao princípio para pôr as primeiras vinte e três ou vinte e quatro páginas de acordo com o que vinha depois. Se me perguntarem como é que isso aconteceu, porque é que isso aconteceu, não tenho uma resposta que possa dizer é esta, eis a resposta. Mas posso talvez pensar que a razão podia ser esta — o que eu estava a escrever foi-me contado por aquelas pessoas, e no fundo, o livro pretendia ser isso. Nada disto era consciente, não há nisso nada da minha cabeça, nem sequer foi mera intuição...

Uma inspiração?
Nada disso. Era como se eu lhes estivesse a contar a eles a história que eles me tinham contado. E como você sabe, quando falamos não usamos sinais de pontuação...

Temos as pausas da respiração...
Temos as pausas, e até, como eu digo nos meus livros, os dois únicos sinais de pontuação, o ponto e a virgula, não são sinais de pontuação, são uma pausa, uma pausa breve e uma pausa longa. No fundo, como também digo muitas vezes, falar é fazer música. Quer dizer, nós entendemo-nos com os sentidos que as palavras têm, e também com a expressão que somos capazes de lhes dar, e que até muitas vezes vai mais além do que a música porque passa pelo gesto, passa pelo olhar, passa por sinais... Então eu creio que se estivesse a escrever um livro passado em Lisboa, provavelmente isso não teria acontecido.

E, neste contexto, entre James Joyce e Marcel Proust — nenhum teve qualquer peso nesta sua estratégia?
Não creio. Não. Fui sempre um mau leitor de Joyce, humildemente o confesso. Fui um bom leitor, e continuo a ser um bom leitor de Proust. Mas acima do Joyce, e acima do Proust, ponho um senhor chamado Franz Kafka, que para mim é o grande escritor do século vinte. Pelo menos é aquele que a mim me convém, e a mim me interessa. Aquele cuja obra — e não estou só a falar dos romances, enfim falo dos diários, falo de correspondência, falo da quantidade enorme de textos que ele deixou inacabados e incompletos e que realmente são uma fonte inesgotável, não direi de inspiração, porque não vou lá buscar temas — mas é inesgotável como leitura. Sinto-me bem com aquele senhor.

Quanto ao seu olhar, subscreveria o verso de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos — «Merda, sou lúcido»?
Acho que sim. Já agora, inverteria a ordem... Não posso. «Sou lúcido, merda» tem um risco — se lhe tiram a virgula, aparece um outro tema. Fiquemos com o verso do Pessoa. «Merda, sou lúcido», porque efectivamente isto está uma merda, e a única coisa que podemos opor a esta merda é a nossa lucidez. Uma lucidez que não resulta de sermos privilegiados, ou umas pessoas extraordinárias, não é isso. É simplesmente vermos um pouco mais além das aparências. Já tenho contado isto várias vezes, quando tinha dezoito ou dezanove anos, e ia à ópera ao São Carlos, sem pagar bilhete, porque um dos porteiros, me deixava ir para as torrinhas...

Para o galinheiro?
E para o galinheiro. Quando a ópera ia começar mesmo, eu entrava e sentava-me lá em cima. E se você esteve no galinheiro, recorda-se da coroa, lá em cima. Vista de cá de baixo, da plateia e dos camarotes, é um esplendor. Mas sabe, porque esteve lá, que a coroa não está acabada, não está terminada, e é oca, e tem teias de aranha, e tinha pó. Eu acho que recebi aí, sem ter muita consciência disso, uma grande lição: que é preciso dar a volta às coisas para ver o que as coisas são. Talvez o meu esforço de lucidez consista simplesmente em tentar dar a volta às coisas. Que o consiga, provavelmente não, não sei. Pelo menos tento. E este livro, o Ensaio sobre a lucidez, é um esforço para dar a volta completa às coisas. Para ver além da aparência das coisas.

[Expresso 1640, 2004]

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Um restaurante que se chama Saramago e faz a fusão dos escritores com a gastronomia - Medellín / Colômbia

Pode ser consultado aqui 
em http://www.eltiempo.com/colombia/medellin/en-el-saramago-descifraron-a-que-sabe-un-escritor/16231916

Jornal El Tiempo 
Texto de Laura García Guerra

"En el restaurante Saramago descifraron a qué sabe un escritor

El establecimiento fusiona los sabores culinarios con los más conocidos autores de la literatura."


"Carlos Andrés Corrales es uno de los propietarios de Saramago. 
Su gusto por la literatura ha contribuido a crear el lugar. 
Foto: Guillermo Ossa/El Tiempo"


"Un Gabriel García Márquez que sabe a pollo, un volcán de chocolate es Edgar Allan Poe y un poema para el café. Este es el menú de Saramago, el restaurante que crea platos a partir del gusto de diferentes escritores.

Carlos Andrés Corrales, junto a su primo Juan Manuel, inició hace cuatro meses con este restaurante, ubicado en El Poblado. No solo llama la atención por su gastronomía sino por la unión que le dan con la literatura. “Siempre me ha gustado el tema de la culinaria y la literatura, que es lo mío. La idea no sé de dónde salió. Eso pasa con muchas de las buenas ideas”, contó Corrales.

Ellos le dan vida al premio nobel portugués José Saramago con el restaurante que lleva su mismo nombre. Allí, los platos se elaboran de acuerdo a cada escritor.

Por ejemplo, Gabriel García Márquez tenía una preferencia por el pollo, por eso su plato tiene este ingrediente, acompañado de una mezcla de comida mexicana (por la relación del escritor con ese país), unas papas de colores que representan el realismo mágico, sello característico en sus libros y, finalmente, la decoración con la infaltable flor amarilla. Como este, son alrededor de 10 entradas, ocho platos fuertes y cuatro postres.

Tomás Carrasquilla, Hemingway y Oscar Wilde son algunos de los preferidos del menú.

“Nuestro ideal no es solamente vender, es crear cultura alrededor de la gastronomía, la literatura y tertulias en las que se habla sobre filosofía, psicología, la Segunda Guerra Mundial, autores, películas”, agregó Corrales.

Además de formar estos espacios culturales, en Saramago hay lugar para clases de crochet, filosofía, fotografía y, por supuesto, conversaciones con escritores.

Para sus creadores es una experiencia muy bonita porque tienen la oportunidad de sentarse a hablar con las personas. “Cuando hablas de temas culturales, como la literatura, estás hablando de ti mismo”, expresaron.

El lugar está minuciosamente decorado con libros y cuadros de los escritores. Sin embargo, para los propietarios el objetivo son las frases. Que la gente se conecte al sentido que tiene el libro, más que al objeto.

Al originar un ambiente tranquilo, muchas de las personas que llegan ven en Saramago el lugar ideal para saborear un escritor.

Esa es una de las experiencias que más han enriquecido el espacio. “Han venido portugueses asombrados de ver un lugar sobre Saramago en Colombia, nos visitan seguidores del escritor, personas tatuadas con su imagen y otras que vienen a leerlo”, contó Corrales.

A futuro, piensan incluir otros aspectos culturales como la música, la cual tendrá un día especial en la semana.

Por otro lado, la biblioteca tendrá una intervención especial dedicada a Jorge Luis Borges, con un laberinto en el piso y un espejo que hace alusión a lo que él se refería como “El Borges y el otro Borges”.

A pesar de que en el lugar venden comida, se da una experiencia completa alrededor de un tema que no está relacionado con gastronomía, por eso buscan innovar cada vez más en elementos que acerquen a la literatura."

Maria, personagem de "O Evangelho segundo Jesus Cristo" e a menção à gestação do filho


A mulher, mãe, Maria, que do seu ventre gera seu filho...

"Debaixo do arco que abrigava o pessoal de Nazaré, todos dormiam. Todos, à excepção de Maria. Não podendo deitar-se por causa da desconformidade do ventre, que à vista mais parecia conter um gigante, reclinava-se nuns alforges da equipagem, buscando amparo para os martirizados rins. Como os outros, escutara o debate entre José e o velho Simeão, e alegrara-se com a vitória do marido, como é obrigação de toda a mulher, mesmo em se tratando de pelejas incruentas, como esta foi. Mas já se lhe varrera da lembrança o que tinham discutido, ou a memória do debate se submergira nas sensações que por dentro do seu corpo iam e vinham, iguais às marés do oceano que nunca vira, mas de que alguma vez ouvira falar, fluindo e refluindo, entre o ansioso choque das ondas que eram o filho movendo-se, porém de um modo singular, como se, estando dentro dela, a quisesse levantar, em peso, nos seus ombros. Só os olhos de Maria estavam abertos, brilhando na penumbra, e continuaram a brilhar mesmo depois de o lume se apagar de todo, mas isto não é nenhuma admiração, sucede a todas as mães desde o princípio do mundo, contudo ficámos a sabê-lo definitivamente quando à mulher do carpinteiro José apareceu um anjo, que o era, segundo declaração do próprio, apesar de vir em figura de mendigo itinerante."
Caminho, 1991
Página 61

"O paralelo entre O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago, 
e a iluminura de Albrecht Dürer (Grande Calvário) no início deste romance."


sábado, 22 de agosto de 2015

"Literatura en voz alta" de Márgara Averbach, da Revista Ñ Clarin (26/06/2010)

(...) Todas as características da minha técnica narrativa actual 
(eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio 
básico segundo o qual o dito se destina a ser ouvido. (...)
Cadernos de Lanzarote II - (15/04/1994)


Recuperação do texto de Márgara Avelach, onde aborda a oralidade e a musicalidade das suas palavras.
Pode ser consultado e lido aqui, 
em http://edant.revistaenie.clarin.com/notas/2010/06/26/_-02203707.htm

Revista de Cultura Ñ - Clarin
Márgara Averbach (26/06/2010)

"Literatura en voz alta"
"Lo que hace inolvidable la obra de Saramago, dice la autora de este texto, es el ritmo oral de sus palabras, la intensidad emocional de su prosa, su capacidad para poner en el centro de la escena a los que la historia anota en los márgenes."



"Cuando lo conocí, sonaba ya para el Premio Nobel. Después de Memorial del convento, que me rodeó como un río salvaje mientras yo trataba de sostener el libro entre las manos, yo había leído casi todos sus libros. Tal vez por eso me animé a hacer la entrevista para el suplemento de Clarín pero tenía miedo: sabía poco de literatura portuguesa y las entrevistas no eran (no son) mi campo preferido. Cuando nos sentamos los dos frente a un grabador, lo primero que hizo José Saramago fue decir –la voz baja y dulce que sigo guardando en una cinta– que me agradecía las críticas de sus novelas. Que las había leído. Eso lo pinta entero: un candidato al Nobel que trataba de tranquilizar a una periodista asustada, que incluso se había preocupado por leerla. 

Su voz tenía el mismo ritmo que su escritura. Me dijo que escribía como hablaban los campesinos de su pueblo y que encontrar esa voz –esa prosa de aliento largo, sin puntuación de diálogo, aparentemente densa– lo había convertido en escritor. Algunos amigos me dijeron que era "demasiado difícil" de leer. Saramago conocía esos comentarios (cómo duele decir "conocía" en el pasado). "Mis libros se entienden si se leen en voz alta", me dijo. Es cierto: yo, que siempre leí en voz alta para los míos, lo sé. Si se lee en el aire, si se diferencian los personajes con la garganta, su prosa, tan bien traducida por su mujer, Pilar del Río, dice lo que quiere decir y lo dice con una sencillez conmovedora.

Saramago mira siempre a los márgenes, a los olvidados. Cuenta, por ejemplo, la historia más conocida de Occidente, la de Jesús, pero se atreve a dejar que sea Jesús mismo –ese al que siempre cuentan otros– quien se diga a sí mismo (El evangelio según Jesucristo). O entra en un mundo de castillos pero elige a la mujer de la limpieza como protagonista (El cuento de la isla maravillosa). O teje un relato sobre reyes pero pone en el centro al elefante que alguien decide regalarle a los poderosos y al hombre que lo conduce (El viaje del elefante). O construye una novela sobre un libro de historia y se interesa no por el historiador sino por un humilde corrector (Historia del cerco de Lisboa). O elige a la mujer del médico y no al médico en Ensayo sobre la ceguera. O, en su último libro, Caín, pone los ojos en un personaje rechazado. 

No es por casualidad: él siempre dijo (dice, querría escribir yo) que le interesaba la historia, que quería cambiarla, poner en ella lo que se había "dejado afuera". Hay ideas en lo que cuenta. El las repite (repetía) siempre, incluso cuando sabía que alguien podía ofenderse: la defensa de los humildes; el comunismo como utopía ("soy un comunista visceral", dijo); la relación entre los seres humanos y el resto del planeta (la forma en que sus perros se acercan a sus personajes, por ejemplo, es un hilo que se sigue de libro en libro). 

Lo que hace inolvidable su literatura –además del ritmo oral de sus palabras– es la intensidad emocional de su prosa, que golpea justo en el centro del cuerpo y el manejo certero de ciertas escenas de contenido simbólico. Para hablar del libro que estaba escribiendo cuando lo entrevisté, y que no lo dejaba dormir por el miedo, digamos, por ejemplo, la masacre en el supermercado en Ensayo sobre la ceguera, una de las alegorías más perfectas sobre el consumismo del siglo XX, o la ceguera misma, esa ceguera blanca y contagiosa que lleva a la humanidad hacia el desastre.

"Hablar es como hacer música: hablamos con sonidos y con pausas y la música se hace con sonidos y con pausas", me dijo entonces. "Yo tengo muy claro que el discurso oral es mucho más creativo que el escrito. A la hora de decir algo, todos lo decimos. La verdad es que hablando todos somos creadores". Ese es el discurso que reinventan sus libros cuando escriben en algo que él llamó "idioma hablado pero escrito". Tal vez ahí esté el centro de la coherencia intensa, única de la obra de Saramago: él escribe (sí, sí, en presente) para rescatar a los que no recuerda "la historia oficial"; escribe para evitar que vayamos todos hacia "donde va el mundo: hacia la superficialidad, el egoísmo, esa especie de histeria consumista", y lo hace de la mejor manera posible, con el lenguaje que quiebra las diferencias, el lenguaje en el cual todos somos artistas, el de la oralidad. Por eso, dice que los de abajo sí lo entienden. Porque ellos se reconocen en él, se ven en el espejo que él construye.

Saramago me dijo que sus libros "llevaban una persona adentro". Que a pesar del estructuralismo, él creía en el autor y que el autor de lo que escribía era él. Pero él era más que eso: era un candidato al Nobel (y Nobel después) que se tomaba el trabajo de tranquilizar a la periodista que estaba por hacerle algunas preguntas. Un hombre que decía que su deseo era ser como su abuelo analfabeto porque ese abuelo era la mejor persona que él hubiera conocido. 

Entonces, para consolarnos por su muerte, que duele con un rumor sordo en cada verbo que hay que poner en pasado, tal vez lo mejor sea aferrarnos a sus libros que lo llevan, entero, entre sus páginas y reencontrarlo en ellos."

"Objecto Quase", livro de contos de José Saramago - Olhar via "Universo dos Leitores" (30/09/2014)

A reprodução desta matéria, pode ser consultada aqui, via "Universo dos Leitores"
em http://www.universodosleitores.com/2014/09/objecto-quase-de-jose-saramago.html

(Imagem via link do "Universo dos Leitores") 

"Ler Saramago é sempre uma experiência incrível, já que ele tem uma capacidade ímpar de retratar o ser humano com o seu pessimismo, a sua alienação, as suas opressões, falhas e imperfeições. 

Nesse livro, que reúne seis histórias originalmente publicadas no ano de 1978, o genial escritor nos leva por caminhos variados, mas todos eles apresentam situações inovadoras e absolutamente críticas, que permitem reflexões intensas sobre a condição do ser humano em meio ao capitalismo e à necessidade exacerbada de possuir bens materiais. 

Saramago, em cada um dos contos reunidos neste exemplar, demonstra que atualmente tratamos as pessoas como “coisas” e as coisas como “pessoas”. O interessante é que para apresentar todas as críticas à estrutura social em que vivemos, ele se utilizou de metáforas e mesclou assuntos políticos com narrativas tão intensas que chegam a ser poéticas, mesmo não tendo poesia alguma. 

Também convém ressaltar que para enfatizar a diferença existente entre os seres humanos, Saramago apresentou dois tipos de protagonistas: aqueles que aceitam a condição de objetos e não lutam contra o sistema e aqueles que tentam de alguma forma lutar contra a tal objetificação e animalização do homem, esforçando-se e dedicando-se para o bem estar da sociedade. Neste segundo grupo perdura a ideia de vingança e de revolta contra as atitudes supostamente aceitas socialmente. 

Um ponto comum entre todas as narrativas é que elas não apresentam finais conclusivos ou estruturados. Em cada conto, a última frase ou o último parágrafo abrem espaço para diversas possibilidades e diversas situações. Isso é interessante já que a vida é exatamente assim: indefinida, incerta, incalculável. 

Para dar uma noção geral dos contos, vou falar de forma sucinta de cada um:

Cadeira, o primeiro conto do livro, apresenta uma descrição detalhada e irônica sobre o desgaste de uma cadeira no momento da queda de Salazar, um ditador já idoso. Saramago utiliza da estrutura da cadeira, da deterioração da madeira e da falta de braços para fazer uma alegoria com a queda da ditadura e do sistema que dominava Portugal e impunha comportamentos e crenças. 

"Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo esta graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos."

Em Embargo o escritor utiliza de um tom crítico, dramático e irônico para narrar a história de um automóvel que passa a ter vida própria e consciência no momento em que sofre restrições ao acesso do combustível. O conto é uma metáfora acerca da condição do ser humano diante dos objetos e dos bens materiais em geral, apresentando situações políticas e econômicas que rodeiam a sociedade. 

(Imagem via "Universo dos Leitores")

Refluxo, por sua vez, conta a história de um Rei que não suporta conviver com a ideia da morte e a lembrança da finitude da vida, e decide criar um cemitério único e gigantesco, que irá contornar a cidade, para que todos os corpos espalhados nos diversos cemitérios sejam direcionados para o novo local, que será um templo para a celebração da morte. Aqui, a morte é utilizada como uma metáfora para as pessoas que se transformaram em coisas e estão se privando da essência da vida. 

No conto Coisas, o mais longo do livro, somos apresentados a uma sociedade futurista em que as pessoas são dividas em grupos, conforme a capacidade de consumo. A estrutura social entra em estado de caos quando os objetos começam a desaparecer de forma rápida e misteriosa. Contudo, o verdadeiro problema aparece quando cidades inteiras somem de forma inexplicável e toda a materialidade deixa de existir, perde o sentido e o significado. 

"Foi então que do bosque saíram todos os homens e mulheres que ali tinham se escondido desde que a revolta começara, desde o primeiro oumi desaparecido. E um deles disse:
— Agora é preciso reconstruir tudo.
E uma mulher disse:
— Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas."

Em Centauro o personagem é um centauro que se esconde no mundo e vive atento à destruição dos seres e das criaturas existentes. Contudo, certo dia, ele seqüestra uma mulher e a notícia se torna pública, situação que faz com que ele seja caçado pelos homens, tornando-se um espetáculo midiático. Sem saber como fazer diante de toda a perseguição, o animal decide pular de um penhasco, mas no momento da queda, uma situação inesperada acontece e ele se transforma em dois – um homem e um cavalo - o que deixa clara a mensagem que somos homens animais, homens falhos e com pouca consciência. 

A narrativa representa a constante fuga em que vivemos: a fuga de nós mesmos e da nossa consciência. 

"Então olhou seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer."

Por fim, em Desforra, o último conto do livro, Saramago utiliza de poucas palavras para contar a história de um porco que ao ser castrado pelo homem, decide comer os próprios testículos. O contexto agressivo e intenso da narrativa visa reafirmar a condição do homem que nega a sua condição e a sua capacidade predatória e destrutiva.

(Imagem via "Universo dos Leitores")

Esse livro permite uma leitura agradável e reflexiva, além de ser um excelente contato com a linguagem inteligente e diferenciada de Saramago, um gênio da literatura."

Texto de Isabela Lapa

Programa "Parece que fue ayer" entrevista a José Saramago (23/12/2000)

Pode ser visualizado aqui via YouTube

Mais um testemunho sobre temas que não se esgotam

Entrevistadora Blanca Rodriguez para o programa "Confidencias" para o Canal 10

Montevideo - Uruguai



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Revista Cult - Horácio Costa entrevista Saramago "O despertar da palavra"

A entrevista pode ser consultada e lida, aqui
em http://revistacult.uol.com.br/home/2014/10/saramago-o-despertar-da-palavra/

"O escritor português, que acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura, 
fala sobre seu período de formação e sobre seu projeto de autobiografia" 
por Horácio Costa



"A entrevista que segue teve lugar em fevereiro passado, em Madri. O Instituto do México, na Espanha, organizou, no primeiro trimestre deste ano, um ciclo de conferências: “Portugal desde México”. A diretora do Instituto, Luz del Amo, que tivera a idéia de organizar o ciclo – algo inédito, ou pelo menos pouco usual no mundo hispânico, onde via de regra Portugal, ainda mais do que o Brasil, sofre de uma espécie singular de “obnubilação programada” – tinha-me pedido que convidasse Saramago; ele aceitou, sem cobrar cachê. Pediu para ficar no mesmo hotel de sempre (o Suécia), a trezentos metros do Prado. Não é o primeiro favor que me faz e espero que não seja o último. Já anteriormente me brindara com muitas informações e respondera às muitíssimas questões que lhe apresentei, enquanto escrevia minha tese para Yale, “José Saramago: O período formativo”. A presente entrevista, portanto, não é, lato sensu, a primeira que me deu.
Há catorze anos, quando completei trinta, recebi de presente de minha amiga e ex professora Renina Katz, uma leitora inveterada, o romance Memorial do Convento. O entusiasmo com o qual Renina me recomendou a leitura, uma vez feita e já de volta aos Estados Unidos, transferi para Emir Rodríguez-Monegal. Naqueles meses, eu andava atrás de um tema de tese; numa tarde do verão de 1985, a caminho do teatro em Hartford, pude conversar longamente sobre Saramago com Emir, que recentemente estivera com ele durante um congresso de escritores, e que seria o meu orientador, se tudo desse certo (não deu: a Monegal sobravam poucos meses de vida).
Por meu lado, perguntava-lhe como era o homem em pessoa; pelo seu, e muito menos afoitamente, Emir me interrogava sobre a radicação de Saramago na literatura portuguesa contemporânea. Não é necessário dizer que ele soube responder às minhas perguntas, traçando-me o perfil de um cavalheiro lusitano de humor mordente, de viés irônico, que Emir comparava ao de Borges, a quem tinha conhecido tão bem; entretanto, à medida que o crítico uruguaio aumentava em agudeza as suas questões, crescentemente eu me dava conta do pouquíssimo que sabia, e que de fato era então conhecido, sobre o autor português. Eu já me dedicara, em Yale, a pesquisar sobre esse escritor que me chegara às mãos sem nenhum antecedente; ainda que a Biblioteca Sterling seja uma das maiores e melhores do mundo, eu me decepcionara com o pouco que nela havia sobre Saramago.
O que tínhamos em mãos era apenas o Memorial. Portanto, qualquer consideração crítica que podíamos fazer se limitava ao tipo de escritura que Saramago nele adotava. Diante dela, e assumindo como base o realismo-maravilhoso em versão hispano americana, concluímos que a qualidade do imaginário de Saramago dele diferia em um ponto básico: estava prenhe de lirismo e escapava dos padrões de alegorização mais óbvios e tão frequentes neste. Havia pontos evidentes de contato – para começar, o fascínio pelo barroco, que na narração reverberava temática e lingüisticamente –, mas o tônus geral do relato não apontava para as terras americanas.
Anos mais tarde, em Portugal, pesquisando sobre o Memorial, terminei por assegurar me disto: se muito da postura de um Carpentier ou de um García-Márquez se fazia notar (principalmente, no nível do anedótico, na pesquisa de fontes da época e por aí), a base era diferente. A velha cultura portuguesa, às vezes excepcional – quando representada por um Fernão Lopes, um Camões ou um Vieira –, mas frequentemente marginal à Europa dos grandes debates, ainda que muitas vezes ironizada pelo escritor, se impunha com uma clareza meridiana. Aí estava, e está, o quid de Saramago. Não só de estilemas individualizadores vive um grande escritor: nunca é demais lembrá-lo, ele ou ela via de regra (há exceções) pisam o terreno conhecido que lhe dá a sua própria cultura, a sua própria língua.
Naquela tarde, disse a Emir que eu pesquisaria mais sobre o romancista e que, em função do que encontrasse, talvez escolhesse a sua obra como objeto da minha tese de doutorado. À época, muito pouca gente entendeu que eu escolhesse Saramago, então um escritor com alguma bagagem (o melhor viria depois), e menos ainda que me dedicasse a sua obra menor. Optei por estudar o período de formação do escritor por duas razões: primeiro, por jamais ter ele recebido atenção crítica (uma importante estudiosa italiana da literatura portuguesa não há muito me dizia que Saramago tinha nascido feito, assim como se um Gulliver qualquer); segundo, porque estudar um período não-canonizável de um escritor em vias de canonização (agora já plena, depois do Nobel) pode colocar uma série de questões críticas de interesse, entre elas a de discutir como o cânone funciona para canonizar os seus eleitos, como a crítica procede para eleger os seus objetos de estudo.
Se Saramago, ao longo de suas décadas de experimentação ou deriva entre vários gêneros literários, apresentou uma notável distância, ou mesmo, defasagem, perante as estéticas dominantes à época no contexto português (apesar da dicção neorrealista fundamental em sua produção política, afinada com uma vertente da poesia portuguesa dos anos 40 e 50 – porém usada por ele vinte anos depois!), um discurso crítico que procurasse acercar essa obra de exceção (frente aos modismos, às oposições quase sempre conjunturais que caracterizam o processo literário) teria que, de alguma maneira, sê-lo também, abandonando as interpretações mais circunstanciais de análise. Ir até uma obra que se divide entre “fraca” e “forte”, “ignorada” e “estudada” (e “in” e “out”, “boa” e “ruim”), foi o que eu tentei, centrando sempre as minhas interpretações no sinuoso processo de trabalho de José Saramago, antes que em seu melhor resultado, aparentemente para sempre canonizado.
A entrevista que segue constantemente refere-se a essa injunção e a essa preferência crítica minha. Pensei que valesse a pena alertar o leitor sobre a razão das perguntas que nela fiz. Agora, definir o que possam as respostas a elas esclarecê-lo sobre a obra e o indivíduo José Saramago é coisa sua.




CULT – Eu queria que você dissesse o que ficou da experiência dos gêneros que você praticou ao longo de várias décadas – crônica, poesia, ensaio, teatro – antes da publicação do Manual de Pintura e Caligrafia. Por que você acha que demorou vinte anos para escrever um segundo romance? Há um primeiro, uma tentativa pouco madura nos anos 40, mas a sua primeira obra em prosa de ficção sólida é esse Manual…

José Saramago – Em primeiro lugar, quando se pergunta o que ficou de uma obra, que supostamente pertence a um tempo passado, pressupõe-se uma dúvida, se alguma coisa terá ficado. Porque, se não existisse essa dúvida, então a pergunta não teria sentido. Quando se começa a escrever muito jovem, corre-se o risco e, afinal, isso me aconteceu, porque aos 25 anos publiquei um romance. Romance que ficou por aí, que foi reeditado apenas em 1997 porque o editor achou que se o romance fazia 50 anos, desde a primeira publicação, tinha que ser novamente publicado – e então temos uma edição nova de um romance que se chama, perdoem, Terra do Pecado. Eu não tenho culpa de o romance ter esse título, a culpa é do editor. O romance se chamava A Viúva. Um jovem de 25 anos, que era o que eu tinha, não sabia muito de pecados, e menos de viúvas… Mas eu percebi que não tinha tanta coisa para dizer, nada importante. E me calei, me calei por vinte anos praticamente.
Isso não é verdade, porque escrevi um outro romance que se chama Claraboia, que permaneceu inédito – e, esse sim, permanecerá inédito. Não o destruí porque não devo destruir as coisas que faço; se não posso destruir todas, por que vou destruir algumas? Se eu pudesse apagar todas as coisas ruins – e agora não estou falando do livro, estou falando de coisas ruins que a gente faz na vida –, eu as apagaria. Mas como Terra do Pecado, apesar de tudo, não é a pior coisa que eu fiz na vida, então que fique aí; e Claraboia ficará, mas com a condição de não ser publicado enquanto eu viver.
Até 1966, quando eu tinha 44 anos, não escrevi nada. Salvo no período imediatamente anterior a 1966, que foi quando escrevi um livro de poesia chamado Os Poemas Possíveis. E por que eu o escrevi? Bom, a resposta é sempre a mesma, ou quase sempre: porque me apaixonei. E eu já havia feito uns quantos sonetos e coisas assim no tempo que fazíamos sonetos, aos dezoito anos. Acho que os jovens de hoje já não sabem o que é escrever sonetos e as meninas não têm a felicidade de receber um soneto dos garotos. Isso acabou, que pena! Bom, então eu me apaixonei nessa época e daí saiu o livro. Confesso que, quatro anos depois, me apaixonei de novo e saiu outro livro de poemas que se chama Provavelmente Alegria. E então acabou-se a história de publicar pelo fato de me apaixonar [risos].
A partir de 1966, por circunstâncias da vida, me encontrei mais próximo do mundo literário porque trabalhava numa editora – desde os anos 50 e durante quase 15 anos. Eu tive uma vida que não tinha nada a ver com a literatura. Eu fui várias coisas na vida: trabalhei numa oficina mecânica, fui desenhista, funcionário da saúde pública, depois não sei o quê, depois editor, e era assim. Então, eu não me preparei para ser escritor. Sou escritor por acaso. E que acaso é esse? É que chegou um momento em que eu, além de me apaixonar e por isso pôr sobre a mesa livros de poesia, comecei a colaborar em jornais, escrevendo crônicas. De 1966 até 1977, houve onze anos de publicação: publiquei três livros de poesia – e o terceiro não tem nada a ver com minhas paixões –, crônicas, ensaios políticos, que no fundo eram editoriais de jornal, de um jornal que já não existe, chamado Diário de Lisboa, e já em 1975, que chamávamos o ano ardente da revolução, eu era diretor adjunto de um outro jornal, Diário de Notícias, e acho que tudo começa aí. Quando, em novembro de 1975, ocorreu a contrarrevolução, o que se chamava o processo contrarrevolucionário – e talvez algumas pessoas não estejam de acordo com a qualificação ou com a classificação –, eu fiquei na rua, sem emprego, sem salário, sem trabalho e sem possibilidade de encontrar outro facilmente, porque o jornal estava com a revolução.
Aí eu tomei a decisão definitiva da minha vida, que era a de não procurar trabalho, e me dizia: você tem sete ou oito livros escritos, que são dignos, sérios, honestos, mas por aí você não vai chegar a lugar nenhum. Se você está pensando na história da literatura, então, resigne-se a que digam (se disserem) que o senhor fulano nasceu nessa data, morreu numa outra, publicou alguns livros e ponto. Uma linha, duas linhas e nada mais. Não que eu aspirasse a um capítulo completo da história da literatura, não é isso. A decisão de não procurar trabalho era enfrentar essa idéia de que, talvez, eu seria um escritor, mas faltava uma prova, porque aqueles livros não eram, na minha opinião suficientes para tal. Isso foi o que depois levou a toda essa série de livros, romances, obras de teatro, diários que caracterizam esses últimos 20 anos. Isso é o que me leva a dizer que eu sou um jovem escritor, que eu sou um velho escritor da nova geração – porque a verdade é que eu estou escrevendo obras mais sólidas não há cinquenta, mas há vinte anos; portanto, supondo que se começa, talvez, a escrever e publicar aos 20, 23 anos, então, agora, literariamente, eu não tenho mais do que 45 anos. Sou um menino… [risos].
O que ficou do que ficou para trás? Eu diria que ficou tudo. E ficou tudo em que sentido? Eu muitas vezes digo que se alguém quiser entender bem o que eu estou   dizendo nos romances que estou escrevendo é preciso ir às crônicas que escrevi nos jornais e que estão em dois livros: Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante. Quase todos os temas que estão agora nos romances, certos pontos de vista, visão de mundo, obsessões e preocupações de ordem não apenas literária, preocupações de ordem política, de ordem civil, tudo isso se encontra nesses pequenos textos publicados em jornais, e quem se interesse pelo que eu faço – além dos romances que têm maior reputação, dos quais se fala, que saem na crítica, que estão nas livrarias e tudo isso – tem que ir a esses pequenos textos porque eu mesmo, quando por algum motivo tenha  que voltar a esses textos, me reencontro. Nessas crônicas há muito de ficção, e sobretudo há o trabalho sobre a memória, a memória da infância, da adolescência, a memória dos adultos, dos avós, das coisas vistas – e esse, se eu chegar a escrevê-lo, será o conteúdo de um livro que já tem título, mas que ainda não está escrito e que se chamará O Livro das Tentações. Já estou me antecipando, mas uma coisa chama a outra. É uma autobiografia minha. Eu sou tão vaidoso que inclusive vou escrever a minha biografia. Mas é uma autobiografia um pouco estranha, porque termina aos catorze anos de idade. O que eu quero fazer é isso, recordar o menino que eu fui. Tentar saber quem era esse menino. Porque a verdade é que nós pensamos que toda a nossa vida está aí para que nos tornemos adultos. E, quando somos adultos, nos comportamos como se olhássemos para nós como algo que saiu do estado de crisálida, imaginando que a infância e a primeira adolescência é a crisálida, e que depois da crisálida saiu o inseto adulto com todo o seu esplendor, as suas cores, com toda a sua beleza. Nos casos em que têm esplendor e que são belos, claro; há insetos que deveriam ter ficado na crisálida e não sair.
Eu não penso assim. Para dar-lhes uma idéia do que eu penso nesse sentido: não sei se o meu leitor percebeu que eu ponho sempre epígrafes; a epígrafe de Todos os Nomes, para falar do último romance publicado, é “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens” –, é uma citação de um livro chamado Livro das Evidências, que não existe, como em outro romance, História do Cerco de Lisboa, há uma outra epígrafe que foi tirada do Livro dos Conselhos, que também não existe. E isso é um pouco borgeano, e se isso continuar, não terei mais remédio do que escrever o Livro das Evidências e o Livro dos Conselhos. E, então, a epígrafe que terá o Livro das Tentações – e com isso, acho que terei explicado tudo o que tentei explicar até agora – é a seguinte: “Deixa-te levar pelo menino que foste…”. Porque, na verdade, de nada eu gostaria mais – ou de poucas coisas eu gostaria tanto – do que poder passear pela rua, não levando pela mão o menino que fui, mas sendo levado pela mão desse menino. Se eu pudesse recuperá-lo, tê-lo agora mesmo, quanto eu gostaria. Vocês podem pensar: mas que ideia estranha essa, você é ele e ele é você. Não, eu sou ele, mas ele não sou eu. Um deles não conhece o outro; e o fato de que um deles não conheça o outro me perturba. E por isso eu digo: deixa-te levar pelo menino que foste. Talvez o menino, supondo que os meninos não são maus – alguns são péssimos, claro –, fosse capaz de, na hora que vamos fazer uma coisa errada, de puxar pela nossa roupa e dizer: não faça isso.
Há uma continuidade de pensamento e inclusive uma continuidade de sensibilidade no que estou fazendo agora e que vêm dos textos mais antigos. Como os textos não nascem do nada, nascem de alguém que está vivendo, mesmo que não esteja escrevendo, então tudo é uma relação que vai pelo interior da vida e que une tudo a tudo. O que eu posso dizer, claro, é que há algumas coisas que fiz antes e que, se eu as fizesse agora, tentaria fazê-las melhor. Mas não se trata aqui de mais qualidade literária ou de menos qualidade literária, trata-se do que se está dizendo aqui.

(José Saramago)

A forma como se desenvolve sua “carreira” é bastante atípica, especialmente em relação ao que cada vez mais acontece no mundo literário, afetado por uma série de problemas externos, a questão do mercado, os prêmios literários etc… Num texto crítico dos anos 60, parte das suas colaborações para a Seara Nova, você escreveu: “A literatura não é uma carreira”. Aquele momento era especialmente significativo, porque então você era conhecido em Portugal como poeta. Você estava publicando o seu segundo livro de poesia, prestes a publicá-lo, e entrava na literatura ou na vida cultural lisboeta por meio da atividade poética. E você começa a escrever essas notas críticas numa publicação importante da literatura portuguesa contemporânea, a Seara Nova. Então, eu gostaria que você desenvolvesse essa ideia de autor, naquele momento biologicamente já não muito jovem, nos anos 60, que tem consciência de que a literatura não é uma carreira; e como você vê isso agora, não só com relação ao mundo contemporâneo, mas também à luz da sua produção posterior.
Quando me convidaram para fazer crítica nessa revista, eu só havia publicado esse livro de poesia chamado Os Poemas Possíveis. Inclusive impus uma condição, a de que não faria crítica de livros de poesia. Porque me parecia que isso não teria muito sentido para mim, um jovem poeta, com apenas um livro, e que não era Rimbaud nem Fernando Pessoa. Pode-se perguntar: você não quis fazer crítica sobre livro de poesia, mas estava disposto a fazer sobre romances? Sim, do ponto de vista do leitor, como se eu fosse um leitor, já que no fundo o crítico é um leitor. No entanto, é um leitor que tem o direito de publicar a sua opinião. Essa é, suponho, a diferença mais visível que há entre um e outro. E é verdade que numa dessas críticas eu escrevi que a literatura não é uma carreira. Depois de 30 anos, e com tudo o que aconteceu na minha vida, parece que há uma contradição entre a minha vida e essa afirmação, porque eu vivo do que escrevo. Mas não tenho os tipos de obrigações de um trabalho, não tenho ações, não tenho bens, não tenho nada senão o que pode ser posto sobre a mesa, o que escrevo. Eu nunca me lancei a isso que chamamos uma carreira de escritor. Entendo que uma pessoa se lance a uma carreira de advogado, médico, engenheiro ou algo parecido porque isso significa que se preparou para exercer uma atividade profissional e, portanto, está nisso e vai trabalhar nisso. Os médicos precisam de doentes, mas estão certos de que doentes sempre existirão, não? E, portanto, estão certos de que podem abrir o seu consultório para recebê-los. Esses, sim, podem falar de uma carreira.
De repente, amanhã pode ser que eu não tenha nenhuma idéia para um livro e se isso acontecer eu deixarei de escrever. E o fato de que eu esteja vivendo da literatura, porque é verdade, não significa que eu não escreva nada de que eu necessite escrever como homem. Isto é, eu não posso viver sendo duas pessoas em uma – a pessoa corrente e normal, que, afinal, sou, e uma entidade, um pouco estranha, que se chama escritor. Esses dois não vivem lado a lado, são um apenas, estão fundidos um no outro. E se o homem não tem nada para dizer como homem, também não terá nada para dizer como escritor. Se isso acontecer, e eu já disse isso, me calarei. E poderia ter acontecido de eu me calar depois do Memorial do Convento, do Ano da Morte de Ricardo Reis, da História do Cerco de Lisboa, ou do Evangelho Segundo Jesus Cristo. Poderia não ter tido mais nenhuma ideia, e fim. E é verdade que, cada vez que eu termino um romance, não tenho nenhuma outra ideia e fico esperando para ver o que acontece. Pode levar um mês, dois, três, seis meses, até me ocorrer uma ideia. Eu acho que os que me leem perceberam que os meus livros não se repetem. Eles percebem que o autor é este pela forma de narrar, pelas preocupações que expressa, mas cada livro contém alguma coisa que aí se acaba. E isso tudo é o contrário do que se necessitaria para uma carreira. Para uma carreira, o conveniente seria explorar os filões encontrados para que ela pudesse se desenvolver, não? Mas eu fico assim, sem enredo, esperando para ver o que acontece.

(Com o diretor Miguel Gonçalves Mendes 
durante as gravações do documentário José e Pilar)

Você disse que não teve uma educação formal em literatura, que foi um leitor. Mas eu lhe peço que comente a importância que tiveram a atividade crítica que você exerceu e a atividade de tradutor nesse período de formação, de autoaprendizagem.

É preciso dizer algo que ainda não foi dito e que deve ser considerado. Se eu, aos 20 e poucos anos, escrevi um romance, foi porque alguma coisa eu tinha lido. E tinha lido muitíssimo. Onde? Nas bibliotecas públicas. Entre 16 e 22 anos, eu fui um leitor noturno, porque tinha que trabalhar de dia, ia a uma biblioteca pública de uma cidade pequena e lia tudo o que encontrava. Às vezes, não entendia nada, ou quase nada, de alguns livros que lia; não tinha ninguém que me dissesse: esse agora não convém, é melhor que você leia esse outro. Mas, de qualquer modo, com todos disparates, erros e incompreensões, creio que pude ler uma gama bastante ampla de autores. Eu diria que Terra do Pecado, por um lado, funcionou como uma sedimentação de leituras; pode-se dizer que não há nada de original ali, mas, se não somos Rimbaud, o que entendemos por “original” aos 20 e poucos anos?
Você pergunta se o fato de fazer traduções influiu em alguma coisa. Não, em nada, nada, nada… É muito diferente sentar- se para traduzir uma obra pelo desejo de traduzi la, por vontade própria e, então, desfrutar do trabalho de tradução, buscando as funções mais adequadas e tudo isso… Mas eu não traduzi por gosto, por prazer; eu traduzi para ganhar a vida e traduzi de tudo: livros de política, de economia, de arte, romances, coisas tontas como uns livros de um senhor chamado Jivkov, que era búlgaro, secretário-geral do Partido Comunista da Bulgária e ao mesmo tempo presidente, e eu tive que traduzir coisas dessas. Com isso não aprendi nada. Mas claro que há outro tipo de aprendizagem. Quando tive que traduzir Bonnard, aprendi muito. Mas não aprendi a escrever e acho que quem tem que traduzir nas mesmas condições e circunstâncias que eu corre o risco de ter a sua escrita prejudicada pela variedade de estilos, de modos de narrar dos diferentes autores que tem que traduzir. Então, posso dizer que não aprendi nada. Agora, acho que aprendi a escrever porque li muito. Sempre li muito, desde menino, desde adolescente, ia à biblioteca pública para ler, para ler e nada mais, e no dia seguinte tinha que me levantar cedíssimo para ir à oficina onde estava trabalhando. Não estou idealizando a minha vida, não estou fazendo romantismo barato e falso, estou falando de fatos e nada mais; sem cair na tentação de exagerar para uma vida extraordinária, senão o contrário.
Eu comecei por esse romance, depois a poesia, depois a crônica, depois fiz um pouco de teatro. Mas o teatro não foi por uma iniciativa minha. Eu tenho quatro obras de teatro, todas elas foram representadas, e aparentemente eu poderia dizer: sou dramaturgo. Não, não sou, eu não me vejo como dramaturgo. Romancista, sim; mas depois de todas essas experiências e de tudo isso. Mas talvez o romancista que sou deva algo a uma circunstância que a que ver com uma obra da qual não se fala muito, e é uma pena que não se fale muito dela, que é esse romance que publiquei em 1980 e que se chama Levantado do Chão. Em 1975, como disse, fiquei sem trabalho. Em 1976, eu estava no Alentejo, no sul de Portugal. Eu venho de uma família de camponeses pobres, sem terra, do norte de Lisboa, a uns 100 km, mais precisamente do nordeste; e, nessas alturas, quando eu estava com essas dúvida – “o que vou fazer da minha vida? escrevo, não escrevo? como? o quê? para quem? e com que meios?” –, veio-me a idéia de escrever algo sobre a minha gente – avós, pais –, que viveu no campo nas condições que os mais velhos aqui podem imaginar, se viveram no campo há 40, 50, 60, 70, 100 anos: saberão o que é isso. E eu soube, não muito profundamente, mas, de qualquer forma, soube. O estranho é que eu deveria ir diretamente aos meus lugares, à minha cidade, e ficar ali, mas, talvez porque eu conhecesse muito bem tudo isso, não queria escrever sobre isso. Então, fui ao Alentejo em 1976 e fiquei lá dois meses, falando com as pessoas, indo ao campo onde trabalhavam, comendo com eles, dormindo com eles. E voltei, depois, por mais algumas semanas. Portanto, juntei uma quantidade de idéias, informações, histórias e tudo isso. E esse livro foi escrito em 1979 e publicado em 1980. Quer dizer, foram precisos três anos para que eu pudesse escrever esse romance.
Na verdade, durante esse tempo escrevi um livro de relatos curtos, Objeto Quase, e publiquei o Manual de Pintura e Caligrafia. Portanto, estive fazendo algumas coisas. Mas não estava fazendo o que tinha de fazer – agora sei disso, mas naquela época eu não sabia. Porque eu não sabia de uma coisa, muito mais importante do que às vezes se imagina: eu tinha uma história para contar, a história dessa gente, de três gerações de uma família de camponeses do Alentejo, com tudo: a fome, o desemprego, o latifúndio, a polícia, a igreja, tudo. Mas me faltava alguma coisa, me faltava saber como contar isso. Então eu descobri que o como tem tanta importância quanto o quê. Não se pode contar como se não há o que contar, mas pode acontecer de você ter o que e ficar paralisado porque não tem o como. O tema que eu tinha estava claríssimo, era um romance neorrealista, bastavam camponeses, fome, desemprego, luta, tudo isso. E modelos do romance neorrealista português, nós os temos, e grandes romances. Portanto, o molde eu já tinha e só precisava colocar nele a minha própria matéria e, então, já teria o romance. Mas, não, algo dentro de mim dizia: não, não e não; enquanto você não encontrar a sua própria forma, não poderá escrever. Claro que isso eu estou dizendo agora, com certeza vocês não estarão imaginando que naquela época eu conversasse dessa forma comigo mesmo: não, eu não conversava. Mas eu tinha uma barreira que me impedia de ir adiante. Quando eu voltava ao Alentejo e encontrava os amigos que eu tinha feito lá, gente de uma qualidade humana impressionante, eles me perguntavam: e o romance, quando você vai publicá-lo? Eu dizia: é que estou ocupado agora com outros assuntos e tal. Não, na verdade eu estava em pânico [risos]. Em pânico porque eu não tinha o como. Até que, em desespero de causa, pensei: isso não pode ficar assim e tenho de começar a escrever esse romance e comecei a escrevê-lo como um romance normalzinho. E quando eu digo romance normalzinho, e há grandíssimos romances normaizinhos, não estou dizendo nada contra, ao contrário: surpreende-me que numa forma quase canônica possam ser escritos romances magníficos, sem rupturas… Claro que há outros romances magníficos que o são por vários motivos, entre eles porque romperam com convenções e com tudo isso. E comecei a escrever com cada coisa no seu lugar: roteiro e tal… Mas eu não estava gostando nada do que estava fazendo.
Então, o que aconteceu? Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso eu não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que eu escrevo: sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí. O que aconteceu? Não sei explicar. Ou, então, tenho uma explicação: se eu estivesse escrevendo um romance urbano, um romance com um tema qualquer de Lisboa, com personagens de Lisboa, isso não aconteceria. E tenho certeza de que hoje estaria escrevendo esses romances como todo mundo – talvez bons, talvez não tão bons, mas estaria acatando respeitosamente toda a convenção do que se chama escritura. Mas alguma coisa aconteceu aí: eu havia estado com essa gente, ouvindo, escutando-os, estavam contando-me as suas vidas, o que tinha acontecido com eles. Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que está aqui. Não estou certo de que seja a única, mas com certeza, essa conta.
Quando esse romance foi publicado em Portugal, houve um reboliço porque as pessoas não entendiam nada, inclusive um amigo meu me chamou para dizer: olha, eu sou seu amigo, mas a verdade é que leio três páginas e me perco, eu não entendo o que você diz. E eu disse: você tem em casa um corredor comprido, não? Pois então, acenda a luz à noite e comece a andar de um lado para o outro no corredor, lendo em voz alta. Se você ler em voz alta, vai ver o que acontece. Da mesma forma que, quando nos comunicamos oralmente, não necessitamos nem de travessões, nem de pontinhos, nem nada do que parece necessário usar quando escrevemos, pois então, você, como leitor, colocará aí, não o que falta, porque não falta nada… A palavra escrita num livro é uma palavra morta; quando fazemos a leitura silenciosa, não está morta, acorda um pouquinho; mas a palavra só fica acordada quando a dizemos. Para que a palavra soe desperta é preciso dizê-la; ler silenciosamente as palavras não é suficiente. E nós todos sabemos que, quando se lê poesia, fazer uma leitura silenciosa de uma poesia ou fazer uma leitura em voz alta dela são dois mundos completamente diferentes.
Quando eu digo ao meu leitor “você tem que ler escutando dentro da sua cabeça a voz que está dizendo”, isso se aplica ao autor. Eu começo um romance, um conto, um relato, ou algo assim, mas enquanto não ouço dentro da minha cabeça a voz que está dizendo, o texto não avança. A prosa fica ali, parada. Tem que soar dentro. E é ainda bastante estranho que isso aconteça, porque parece que não percebemos que no fundo falar e fazer música é a mesma coisa, exatamente a mesma coisa. Fala-se e faz-se música com os mesmos ingredientes: sons e pausas, nada mais. Toda música pode ser reduzida a isso: sons e pausas. Toda palavra, ou todo discurso, pode ser reduzido a isso, som e pausa. Mas, da mesma forma que a música necessita de uma espécie de suporte rítmico que a conduza – não estou muito certo disso, mas estou falando de outras músicas –, o próprio discurso, que está sendo escrito, talvez dele necessite.

Eu gostaria que você falasse sobre o romance, ou melhor, sobre o exercício da prosa de ficção por meio do romance: o exercício desse imaginário no mundo contemporâneo. O que é isso? Qual a sua importância?
O que é hoje para mim ficção? É como uma voz, tudo é uma voz, diria o poeta, o dramaturgo, na circunstância em que eu falei antes. Ocorre que a voz, no meu caso, tem toda a importância do mundo. No meu caso, o homem e o escritor, como eu disse antes, não apenas estão juntos, mas estão fundidos um no outro. Então eu diria que a ficção para mim, hoje, não sendo uma carreira, é o recurso que eu tenho para expressar minhas dúvidas, minhas perplexidades, minhas ilusões, minhas decepções. Não no sentido de uma literatura confessional. A preocupação que eu tenho é esta: Em que mundo estou vivendo? Que mundo é este? O que são as relações humanas? O que é essa história de sermos o que chamamos a humanidade? O que é isso de ser Humanidade? Ter encontrado para essa ficção uma forma pessoal de narrar, que é a minha, acho que esse meu privilégio – eu não sei como nem a quem pagá-lo – de haver podido chegar a ter uma voz própria para narrar o que tenho para narrar não tem preço. Agora, isso tudo depois passa por uma quantidade, porque o meu processo narrativo, que nasce com Levantado do Chão e que aparentemente se repete em todos os outros romances, repete o essencial, mas há mudanças, adaptações ao próprio tema, à própria história que está sendo contada. Eu estou percebendo que, depois de uma expressão bem mais barroca como é o caso do Memorial do Convento, talvez por interferência do próprio século 18 em que tudo acontece, estou me aproximando cada vez mais de uma narrativa seca, cada vez mais seca. Encontrei, outro dia, uma fórmula que me parece boa, é como se durante todo esse tempo eu estivesse descrevendo uma estátua – o rosto, o nariz – e agora eu me interessasse muito mais pela pedra de que se faz a estátua. Quer dizer, já descrevi a estátua, todo mundo já sabe que estátua é essa que eu estive descrevendo desde Levantado do Chão até o Evangelho Segundo Jesus Cristo. A partir de Ensaio Sobre a Cegueira, em Todos os Nomes e no próximo romance, se o escrever, trato da pedra."

"Horácio Costa é poeta, tradutor, crítico literário e professor da FFLCH-USP"