Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Maria, personagem de "O Evangelho segundo Jesus Cristo" e a menção à gestação do filho


A mulher, mãe, Maria, que do seu ventre gera seu filho...

"Debaixo do arco que abrigava o pessoal de Nazaré, todos dormiam. Todos, à excepção de Maria. Não podendo deitar-se por causa da desconformidade do ventre, que à vista mais parecia conter um gigante, reclinava-se nuns alforges da equipagem, buscando amparo para os martirizados rins. Como os outros, escutara o debate entre José e o velho Simeão, e alegrara-se com a vitória do marido, como é obrigação de toda a mulher, mesmo em se tratando de pelejas incruentas, como esta foi. Mas já se lhe varrera da lembrança o que tinham discutido, ou a memória do debate se submergira nas sensações que por dentro do seu corpo iam e vinham, iguais às marés do oceano que nunca vira, mas de que alguma vez ouvira falar, fluindo e refluindo, entre o ansioso choque das ondas que eram o filho movendo-se, porém de um modo singular, como se, estando dentro dela, a quisesse levantar, em peso, nos seus ombros. Só os olhos de Maria estavam abertos, brilhando na penumbra, e continuaram a brilhar mesmo depois de o lume se apagar de todo, mas isto não é nenhuma admiração, sucede a todas as mães desde o princípio do mundo, contudo ficámos a sabê-lo definitivamente quando à mulher do carpinteiro José apareceu um anjo, que o era, segundo declaração do próprio, apesar de vir em figura de mendigo itinerante."
Caminho, 1991
Página 61

"O paralelo entre O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago, 
e a iluminura de Albrecht Dürer (Grande Calvário) no início deste romance."


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