"Crucificação de Cristo" de Albrecht Dürer
(...) Lá atrás, no mesmo campo onde os cavaleiros executavam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível.
Fim do primeiro capítulo, páginas 19 e 20
Edição Caminho
No primeiro diário da série "Cadernos de Lanzarote", José Saramago apresenta alguns comentários em resposta ao semanário "France Catholique" que se insurgiu contra a obra.
8 de Outubro
"Um semanário francês, France Catholique, envia-me umas perguntas sobre o Evangelho, o meu. Querem saber quais foram os critérios que adoptei em relação às informações contidas nos Evangelhos, ora tomando-os literalmente ora modificando os actos, as palavras, a cronologia, os lugares, e por que inventei eu não só nos «silêncios» do texto, mas também no corpo do que foi «autenticamente transmitido». Também querem saber se ignorei cientemente aspectos essenciais da tradição judaica, particularmente a Lei recebida no Sinai, que «não é um catálogo de promessas, mas um contrato reçu et conclu entre o Povo e Deus». E perguntam mais: que experiência me levou a dar, em Deus como nos homens, tão grande lugar ao mal, ao pecado, ao remorso, e nenhum ao perdão; se considero as guerras nacionalistas e as lutas políticas como meios menos nocivos ou alienantes que a profissão de fé dos crentes; se, significando evangelho boa nova, penso que o título é adequado ao livro; e finalmente por que razão retirei Maria de junto da cruz.
Que vou responder? Primeiro, quanto aos critérios, que usei os do romancista, não os do teólogo ou do historiador. Segundo, que um contrato decente deve expressar e harmonizar a vontade das duas partes. Terceiro, que antes de Jesus já os homens eram capazes de perdoar, mas os deuses não. Quarto, que não se devem confundir as guerras (nacionalistas, ou outras) com as lutas políticas, e que, acima de tudo, é necessário respeitar a «santidade da vida». Quinto, que o título nasceu como nasceu, e não há nada a fazer. Sexto, que só em João a mãe de Jesus está presente, Mateus, Marcos e Lucas não a mencionam sequer."
9 de Outubro
Um tanto mais desenvolvidas, as respostas definitivas foram as seguintes:
Primeira. Que devo entender por um corpo «autenticamente transmitido»? Entre os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João há diferenças e contradições universalmente reconhecidas. Se se considera que essas mesmas contradições e diferenças fazem parte do «corpo», então não deveria ser motivo de escândalo que alguém, interpretando os documentos evangélicos, não como uma doutrina, mas como um texto, procure encontrar neles uma nova coerência, problematizante e humana. Os meus critérios foram, portanto, os do romancista, não os do historiador ou do teólogo.
Segunda. Um contrato verdadeiramente digno desse nome, e muito mais se vai condicionar radicalmente a vida de um povo, como a Lei recebida no Sinai, teria sempre de respeitar e conciliar a vontade das duas partes envolvidas. Não creio que se possa afirmar que seja este o caso: Deus impôs as suas condições - o Velho Testamento é, todo ele, uma demonstração de poder divino - e o povo judeu aceitou-as. A isto não chamaria eu contrato, mas diktat.
Terceira. Simplesmente, o espectáculo do mundo. Jesus, filho de um Deus e pai de um Deus (será preciso dizer que o Deus de que hoje falamos está feito à imagem e semelhança do Filho?), não inventou o perdão. O perdão é humano. E o único lugar da transcendência é, acaso, a mais imanente de todas as coisas: a cabeça do homem.
Quarta. Não é legítimo confundir as guerras (e não apenas as nacionalistas) com as lutas políticas. O que chamamos luta política é uma consequência lógica da vida social. Por outro lado, eu não considero nociva ou alienante a profissão de fé dos crentes. Apenas entendo que é meu direito e meu dever debater questões que formaram e continuam a formar, directa ou indirectamente, a substância mesma da minha vida. Como tenho dito, não sou crente, estou fora da Igreja, mas não do mundo que a Igreja configurou.
Quinta. O título do meu livro nasceu de uma ilusão de óptica. Estando em Sevilha, ao atravessar uma rua na direcção de um quiosque de jornais, li, no meio da confusão das palavras e das imagens expostas, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Este título, portanto, foi-me dado, e como tal o mantive, estando embora consciente da sua dupla inadequação: primeiro, porque o meu livro não é realmente uma boa nova para quem estiver mais atento ao «corpo» do que ao espírito; segundo, porque Jesus não escreveu nunca a sua própria vida. Talvez que se a tivesse escrito (perdoado me seja agora este pecado de orgulho) encontrássemos nela algo do que eu próprio escrevi: por exemplo, a conversação com o escriba no Templo...
Sexta. Só no Evangelho segundo João a mãe de Jesus está presente no martírio e morte do filho. Nos outros evangelhos, as mulheres (e entre elas nunca é mencionada Maria) assistiam de longe. Eu não estava lá, mas estou pronto a jurar que Jesus morreu só, como sós temos de morrer todos.
Ponto final. Ainda acabo teólogo. Ou já o sou?
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