Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

"José Saramago, uma vida de resistência" documentário da BBC (2002)

"Documentário sobre José Saramago, da série "BBC Profiles", por Julian Evans, em 2002."

"On the eve of publication of The Cave- Saramago's first novel since winning the Nobel Prize for Literature - the writer discusses his life and career.

Director: Christopher Bruce
Writer: Julian Evans
Stars: Hélia Correia, Maria da Piedade Damiao, Julian Evans"



Pode ser consultado e visualizado via Youtube, aqui

 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Entrega do Prémio Cidade de Lisboa (01/06/1982)


 Entrega do prémio Cidade de Lisboa, ao escritor José Saramago pelo livro Levantado do Chão. A esta cerimónia presidiu o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Nuno Abecasis (01/06/1982)

Pode ser consultada via Arquivo Municipal, aqui 

sábado, 3 de outubro de 2020

"Preparação do programa comemorativo do centenário de Saramago arrancou hoje" (via RTP 02/10/2020)

Pilar del Río no momento da apresentação
Notícia que pode ser recuperada aqui,

em https://www.rtp.pt/noticias/cultura/preparacao-do-programa-comemorativo-do-centenario-de-saramago-arrancou-hoje_n1263553

"O Ministério da Cultura e a Fundação José Saramago assinaram hoje um acordo para prepararem conjuntamente um programa comemorativo do centenário do escritor, para 2022, que celebre e homenageie a sua vida e obra, e simultaneamente promova a leitura.

O memorando de entendimento foi assinado hoje à tarde pela ministra Graça Fonseca, e pela presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Rio, à sombra da oliveira que guarda as cinzas do escritor, em frente à Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago (FJS).

O objetivo deste acordo é preparar um programa comemorativo do centenário do escritor português, vencedor do Nobel da Literatura, que celebre a sua vida e obra, nas dimensões de escritor e de pensador; que reforce a sua presença na história cultural e literária; que promova o estudo e a difusão tanto da obra como do pensamento do autor; que estimule, através da sua obra, o conhecimento e o interesse pela literatura portuguesa e pelo património cultural português.

Segundo Graça Fonseca, o Ministério da Cultura terá um papel central no programa comemorativo, através das suas diversas instituições, mas o objetivo é que esta seja "uma iniciativa aberta a todos aqueles que queiram dar o seu contributo às comemorações".

"Festejar José Saramago é celebrar uma obra ímpar e transversal", mas é também "festejar Portugal e a língua portuguesa, num dos seus mais intensos e brilhantes cultores", assim como um dos mais significativos momentos da história recente, a atribuição do Nobel da Literatura a um português.

Para a ministra, esta será "uma oportunidade privilegiada para celebrar a obra de José Saramago, mas também para homenagear a sua figura de cidadão".

"Promover a leitura, em articulação com os setores públicos e privado, é uma missão estrutural do Ministério da Cultura, e é, como não poderia deixar de ser, um dos eixos centrais deste centenário", afirmou, sublinhando que esta promoção da leitura se reveste de um sentido mais amplo, que se estenda para lá da comunidade de leitores de José Saramago.

Neste mesmo sentido, Pilar del Rio assinalou que "este centenário vai ativar a memória" e que serão recordados temas inerentes às obras de Saramago, como a reconstrução do Convento de Mafra, ou temas políticos, como "a noite levantada de 25 de Abril, assim como se recordará Luis de Camões, Padre António Vieira, ou Gil Vicente, "que perguntou pelas alabardas e espingardas, e que José Saramago lembrou no seu último livro".

"Reviveremos momentos únicos que os livros nos proporcionam", afirmou, sublinhando que irão trabalhar para que as comemorações do centenário -- que começaram a ser preparadas em tempos de pandemia -- sejam "um acontecimento na vida cultural portuguesa".

O comissário para a celebração do centenário, Carlos Reis, destacou que este entendimento com o Ministério da Cultura é "fundamental", porque muito do que se pretende fazer "é feito ou dinamizado por organismos sob a tutela do Ministério da Cultura.

"O centenário será um momento decisivo para consolidar o escritor como referência cultural e para celebrar a literatura, que nunca foi tão importante como neste momento de angústia e medo que estamos a viver".

O centenário do nascimento de José Saramago assinala-se a 16 de novembro de 2022.


quinta-feira, 14 de maio de 2020

"Still a street-fighting man" Entrevista de Stephanie Merritt a José Saramago para o "The Guardian" (30/04/2006)

A entrevista de Stephanie Merritt publicada no "The Guardian" em 30/04/2006 pode ser recuperada e consultada aqui,
em https://www.theguardian.com/books/2006/apr/30/fiction.features1?fbclid=IwAR0pf74nS8G1oYS0G4xytiJ9zM0YJYrU_lECn1oWJunC1mTJKEF6Eeivsjc

"Still a street-fighting man"

"In his first interview with an English newspaper, 83-year-old Portuguese novelist José Saramago reveals that his famed radicalism is undiminished"

"The architecture of José Saramago's purpose-built library, as it rises from a parched hillside on his adopted island of Lanzarote, creates the impression of a modern cathedral. Sunlight splinters through high, narrow windows of opaque glass that stretch the full two storeys; the clean, white walls and cool flagstones contribute to a sense of hushed reverence in the presence of so many volumes, ancient and modern, in so many languages. Here is a shrine to literature, an alternative religion for a Portuguese Nobel laureate, who left his homeland 14 years ago in protest at the government's censorship of his novel, The Gospel According to Jesus Christ (it vetoed its submission for the European Literature Prize on the grounds that it was offensive to Catholics).

It takes some effort to believe that Saramago is about to turn 84 - not just because of his vivid physical presence, his barely-lined face and the quickness of his eyes and hands when he talks, but also because of his extraordinary productivity.

Although Seeing is published this week in English translation, he has produced another book in the meantime; Las Intermitencias de la Muerte was published last autumn in Portugal, Spain and Latin America (his Spanish wife, Pilar del Rio, translates his books as he goes along so that they can be published simultaneously for his large Spanish readership), and he is now working on an autobiography entitled Peque?Memorias (Little Memories), about his childhood in rural Portugal.

But the image of the venerable novelist shut away in his island retreat, disengaged from the world, could not be further from the truth. Saramago is about to leave Lanzarote for two months of travelling, as he does most years, in part to promote the new novel, but mainly to speak at conferences and presentations on politics and sociology. 'Most of it doesn't have much to do with literature,' he explains, 'but this is a part of my life that I consider very important, not to limit myself to literary work; I try to be involved in the world to the best of my strengths and abilities.' Still a member of the Communist party, Saramago is a vocal opponent of globalisation and many of his best known novels have taken the form of political allegory. Does he believe that the artist is obliged to take on a political role? 'It isn't a role,' he says, almost sharply.

'The painter paints, the musician makes music, the novelist writes novels. But I believe that we all have some influence, not because of the fact that one is an artist, but because we are citizens. As citizens, we all have an obligation to intervene and become involved, it's the citizen who changes things. I can't imagine myself outside any kind of social or political involvement. Yes, I'm a writer, but I live in this world and my writing doesn't exist on a separate level. And if people know who I am and read my books, well, good; that way, if I have something more to say, then everyone benefits.'

Seeing evolved into a kind of sequel to his 1995 novel, Blindness, in which the inhabitants of a republic that may or may not be Portugal are struck by a temporary epidemic of blindness and quickly revert to barbarism. Seeing revisits the same country four years later as it experiences another unprecedented phenomenon: despite the high turnout for the municipal election, when the votes are counted, more than 80 per cent have been returned blank. This wholesale vote of no confidence in any of the political parties makes a farce of the democratic process and the leaders are forced to declare a state of emergency.

'I was giving a talk about my novel, The Double, in Barcelona,' Saramago remembers. 'I have this habit of only talking about my books for a few minutes, then I prefer to spend the time talking about the world in which we find ourselves, a world which is a disaster, and usually I end up talking about the problem of democracy, whether we truly have a democratic system, and I believe that we don't. And in Barcelona, someone asked me, well then, what do you propose? Because I was saying that, in reality, the world is governed by institutions that are not democratic - the World Bank, the IMF, the WTO. People live with the illusion that we have a democratic system, but it's only the outward form of one. In reality we live in a plutocracy, a government of the rich.'

So what was his solution?

'I answered that I didn't have a solution, except that we, as citizens, do have the power of the vote, but we always use it to vote for one or other of the parties on off er. But there is another possibility, which is to cast a blank vote.' He leans forward and points a stern finger. 'And this is not at all the same as abstention. Abstention means you stayed at home or went to the beach. By casting a blank vote, you're saying that you understand your responsibility, you have a political conscience and you came to vote, but you don't agree with any of the existing parties and this is the only way you have of saying so.

'Then I thought about what would happen if the blank votes went up to 50 or more per cent. It would be a way of saying society has to change but the political powers we have at the moment are not enough to effect this change. The whole democratic system would have to be rethought.' He speaks Spanish with a heavy Portuguese inflection, each sentence composed with precision, not at all like the rather breathless, digressive narrative style that has become a hallmark of his novels. Expounding these theories, he comes across as grave and wise, though when he talks about the problems of poverty in Africa or the volatility of most employment, there flares a passionate anger that has fuelled his lifelong commitment to leftist politics.

But there's a twinkle of humour, too, in his mock sternness with his dog as she scuffles around our feet, and a warmth in his exchanges with his wife, who comes in to offer us coffee; as she turns to leave, he impulsively clutches her hand and gives it an affectionate squeeze. I point out that, for all the brave intentions of the blank voters in Seeing, the novel has a bleak end - the authorities simply revert to force, though the protest has been as peaceful as a protest could be; in the end, it seems to have been in vain. I tell him it reminded me of the anti-war demonstrations in London.

'Yes, it all ends badly, because things are not mature,' he says sadly. 'Here in Spain, 90 per cent of the population was against the war and nobody in power was interested. But look what just happened with the employment law in France - the law was withdrawn because the people marched in the streets. I think what we need is a global protest movement of people who won't give up, who won't leave the streets. In Madrid and London, we marched, we did our duty, then we went home and those in power did nothing.

'But we have to keep on demonstrating and demonstrating and demonstrating' - here he breaks into a rich, throaty laugh - 'there's no solution but to say we do not want to live in a world like this, with wars, inequality, injustice, the daily humiliation of millions of people who have no hope that life is worth anything. We have to express it with vehemence and spend days on the street if we have to, until those in power recognise that the people are not happy.'

In a lifetime of political activism, Saramago has witnessed the struggle from various angles. He grew up as the son of landless peasant labourers in a village north east of Lisbon and, although he published his first novel, Land of Sin, at the age of 23, it was another 30 years until he attempted another. In the meantime, he worked successively as a mechanic, civil servant, metalworker, production manager at a publishing house and a newspaper managing editor, until the politico-military coup of 1975 made it impossible for someone of his political colours to find work.

He turned to writing full time, publishing his second novel, Manual of Painting and Calligraphy, in 1976, and producing plays, poetry, essays and newspaper columns until his 1982 historical novel, Baltasar and Blimunda, brought him international recognition. His most successful novels were all written when he was in his sixties and he won the Nobel Prize in 1998, at the age of 76. Why, after so many years and excursions into different genres, did he decide that the novel was the best form for the ideas he wanted to express?

'I think the novel is not so much a literary genre, but a literary space, like a sea that is filled by many rivers. The novel receives streams of science, philosophy, poetry and contains all of these; it's not simply telling a story.' Saramago is often described as a pessimistic writer. I ask if he feels genuinely pessimistic about the future or if he thinks there could be hope for the left?

'We're not short of movements proclaiming that a different world is possible,' he says, heavily, 'but unless we can co-ordinate them into an organic international movement, capitalism just laughs at all these little organisations that do no damage. The problem is that the right doesn't need any ideas to govern, but the left can't govern without ideas. It's very difficult.

'At 83, I don't hope for much, but you are young, you have to keep a perspective. I don't think this novel is going to change the world, but look - those in power are there because we put them there. If they don't get it right, then out! And let others try. There are plenty of reasons not to put up with the world as it is, and if the book has any kind of message, I suppose that's it."

domingo, 10 de maio de 2020

"A separação ibérica idealizada por José Saramago" - por João Céu e Silva (DN/1864 (01/02/2020)

"Trinta anos antes do referendo do Brexit, o escritor separou a Península Ibérica do continente europeu. Um sonho que a Inglaterra persegue, apesar de já ser uma ilha, ao querer afastar-se da União Europeia após o voto popular de 2016."



"Trinta anos antes do referendo do Brexit, 
José Saramago separou a Península Ibérica do 
continente europeu no livro A Jangada de Pedra."

"A separação ibérica idealizada por José Saramago" - por João Céu e Silva (DN/1864 (01/02/2020)
Pode ser recuperada e consultada aqui
em https://www.dn.pt/1864/a-separacao-iberica-idealizada-por-jose-saramago-11763278.html

"Não é o cão Constante o protagonista de José Saramago que tem mais importância no romance A Jangada de Pedra, mas até o animal é um símbolo do ceticismo do escritor perante a ideia da integração dos dois países ibéricos na Comunidade Económica Europeia (CEE) - a atual União Europeia. Quem dá início à cena fantástica que separa a península do restante continente europeu é Joana Carda, ao riscar com uma vara de negrilho o chão espanhol perto da fronteira com a França, um gesto que separa a terra ibérica e a empurra para uma viagem em direção aos mares atlânticos do Sul.

O cão Constante é, no entanto, o ser ibérico que hesita entre as terras de Espanha e as de França ao sentir a fenda abrir-se com o gesto de Joana Carda e que pula para o lado de cá, colocando-se do lado da opção saramaguiana de quem vive na Península Ibérica e é contra o esquecimento atávico dos poderosos da Europa."

"A Jangada de Pedra é o romance publicado em 1986, exatamente 
quando Portugal e Espanha aderem à CEE numa cerimónia cheia 
de significado ao usar o claustro do Mosteiros dos Jerónimos para 
assinar o processo. Saramago é contra por considerar que essa adesão 
não irá retirar os dois povos de um esquecimento de há muito e de 
uma falta de identificação com o continente além-Pirenéus."

"A Jangada de Pedra é o romance publicado em 1986, exatamente quando Portugal e Espanha aderem à CEE numa cerimónia cheia de significado ao usar o claustro do Mosteiros dos Jerónimos para assinar o processo. Saramago é contra por considerar que essa adesão não irá retirar os dois povos de um esquecimento de há muito e de uma falta de identificação com o continente além-Pirenéus. Na boca das personagens Joana Carda, Maria Guavaira, Joaquim Sassa e José Anainço, além desse cão com um papel preponderante - não é o único cão importante na sua obra - vão-se contando as grandes objeções a essa espécie de unificação europeia e dados exemplos dos desfasamentos entre as culturas e as realidades sociais das duas partes.

Pode-se dizer que A Jangada de Pedra é um argumento que agora se concretiza quando se observa a Inglaterra apostada na efetivação do Brexit, uma ideia para um romance que alguns escritores portugueses consideram genial, apesar de ser unânime que o romance sofre de um grande problema, um início fulgurante e a ausência de matéria-prima para se manter ao mesmo nível literário. Essa questão não escapou ao próprio autor, que como recorda o seu antigo editor, Zeferino Coelho, ouviu Saramago referir que "é um romance em que o clímax está no princípio"."


"A Jangada de Pedra, livro de José Saramago, foi publicado em 1986, 
no mesmo ano em que Portugal e Espanha aderem à CEE."

"A comparação entre A Jangada de Pedra e o Brexit desejado pela Inglaterra salta à vista trinta anos depois, mesmo que esta saída do Reino Unido tenha protagonistas e situações bem diferentes das de José Saramago. No romance, os protagonistas não são tão inventivos como os políticos britânicos e o tremor que leva à separação é feito de simbologias pouco reais: uma meia de lã azul que se desfaz sem um fim, uma pedra lançada ao mar que viaja uma distância impossível ou uma revoada de estorninhos. Mas o ceticismo de Saramago e de algumas das suas personagens em relação à futura União Europeia é replicado no Brexit. Segundo o ex-ministro da Cultura o poeta Luís Filipe Castro Mendes "não foi preciso arrancar a ilha [a Inglaterra] do seu lugar porque já está separada fisicamente do continente", no entanto pode imaginar-se a Inglaterra como a península de Saramago "numa deslocação política rumo aos Estados Unidos". É, no seu entender, "uma perfeita analogia entre uma península que sai da Europa rumo à América Latina e uma Inglaterra que sai rumo à América". Ou seja, conclui: "Um movimento que José Saramago antecipou."

Na base da separação de A Jangada de Pedra está o ceticismo de Saramago. Para Castro Mendes, o "escritor participa de um ceticismo de esquerda, em que vê na Europa uma manifestação do poder do capitalismo, daí não simpatizar com a ideia europeia porque esta tem servido para aprofundar o fosso entre os países com diferentes níveis de desenvolvimento económico dentro da [futura] União Europeia - isso viu-se durante a troika, através de uma clivagem entre credores e devedores que é contra o ideário de solidariedade e de coesão -, que provocou uma evolução negativa nos últimos anos e o consequente crescimento do euroceticismo"."

"Para Zeferino Coelho, tudo tem que ver com a maneira como 
José Saramago vê a Europa e dá uma versão sobre como nasce 
o romance: “ele ia num comboio entre paris e Bruxelas com 
mais gente e conversavam. Então, Saramago propôs às pessoas 
adivinharem as nacionalidades de cada uma e nenhuma delas falou 
em Portugal.”© Global Imagens"

"Para Zeferino Coelho, tudo tem que ver com a maneira como José Saramago vê a Europa e dá uma versão sobre como nasce o romance: "Ele ia num comboio entre Paris e Bruxelas com mais gente e conversavam. Então, Saramago propôs às pessoas adivinharem as nacionalidades de cada uma e nenhuma delas falou em Portugal." Será este esquecimento que há na Europa em relação a Portugal que está na origem do romance, além de que todo o processo da União Europeia do ponto de vista do escritor "depende do grande capital europeu". Portanto, "achava que a utopia de haver uma fuga para esta realidade nos povos ibéricos só resultaria se pudessem ter uma vizinhança com os povos africanos e sul-americanos, que sofrem a mesma opressão da parte do grande capital europeu e americano. Era isto que ele tinha na cabeça e daí a ideia daquela rutura [terrestre], que é uma ideia mágica".

É o potencial da metáfora inicial de Saramago na construção d'A Jangada de Pedra que mais surpreende os leitores. O seu antigo editor considera que essa criação "acontece muito na obra do Saramago, como no Ensaio sobre a Cegueira, em que as pessoas cegam sem se saber porquê, e assemelha-se ao que se faz na geometria: lança-se um conjunto de dois ou três princípios e deduz-se a partir daí. Foi isso que ele também fez nesse romance."

Magia premonitória
A escritora Lídia Jorge considera que "na altura achou o livro interessante e, passado todo este tempo, ainda o vê tão forte e premonitório. Ultrapassa uma visão comum portuguesa, é internacional". Para a autora, que recentemente recordou o romance por necessidade de escrever um texto sobre a questão da Europa, o que Saramago faz "numa forma um pouco irónica é intuir o que nós todos só hoje percebemos. Que os países quando não são ilhas gostariam de o ser". No caso da Grã-Bretanha e do Brexit, a Inglaterra já "tem a grande vantagem de ser uma ilha, mas a Alemanha bem gostaria de ter sido uma ilha, tal como a França, e o mesmo se passa com Portugal, que também gostaria de se ter deslocado do seu sítio afastando-se de Espanha." Acrescenta: "A história dos países que são tomados de ideias de grandeza porque têm uma história que é única começam a funcionar no imaginário como ilhas. José Saramago percebeu isto muito bem em 1986, transformando a península nessa jangada porque não é vista pelos outros europeus como um espaço geopolítico importante. O que ele demonstra é que se a Península Ibérica fosse deslocada, tornar-se-ia tão incómoda que toda a gente nela iria reparar."

"Também o escritor Mário Cláudio acha a tese de 
A Jangada de Pedra muito interessante: "A metáfora 
que José Saramago escolheu é um achado e qualquer
 autor europeu gostaria de a encontrar, mas a verdade 
é que só nós é que a poderíamos ter por razões de 
ordem geográfica e histórica e estaríamos em condições 
de levar avante um livro destes."© Rui Oliveira /Global Imagens"

"Também o escritor Mário Cláudio acha a tese de A Jangada de Pedra muito interessante: "A metáfora que José Saramago escolheu é um achado e qualquer autor europeu gostaria de a encontrar, mas a verdade é que só nós é que a poderíamos ter por razões de ordem geográfica e histórica e estaríamos em condições de levar avante um livro destes." Já se fosse um autor inglês, diz, "não faria a sua ilha deslocar-se para o mar da América do Sul, antes rumar à Irlanda, por exemplo, porque a Inglaterra não tem um imaginário comum tão forte como nós com a América Latina". Para Mário Cláudio, este romance tem características políticas muito especiais. Nada que estranhe: "Os meus livros são políticos também, mesmo que passados noutras épocas. É o caso da reedição recente de As Batalhas do Caia, que aborda a questão ibérica sempre recorrente da anexação de Portugal pelo país vizinho. Coincidentemente, ambos tratam de questões ibéricas."

"A escritora Lídia Jorge considera que “na altura achou o livro 
interessante e, passado todo este tempo, ainda o vê tão forte e 
premonitório. Ultrapassa uma visão comum portuguesa, 
é internacional”.© DIANA QUINTELA / GLOBAL IMAGENS"

"Lídia Jorge alerta ainda para o facto de na altura o romance "ter sido olhado de forma depreciativa porque a ideia que estava na base de José Saramago era a de ser contra a integração de Portugal e de Espanha na CEE. Aparece como um livro ilustrativo de uma ideia antieuropeísta, só que passado este tempo todo essa raiz desaparece para ficar a ideia pura, que é a criação de uma nova geografia. E o desejo que os países têm de uma nova geografia é muito forte, veja-se que no Brexit existe o aproveitamento absoluto dessa ideia e, no momento em que esse país está em crise, pensa que tal situação vem das vizinhanças e quer tornar-se uma ilha. Como já o são, aproveitam isso da forma que estamos a observar".

Zeferino Coelho não se surpreendeu como a temática quando recebeu o original: "Nada daquilo é estranho na forma como Saramago via a Europa e as questões do mundo. Tem um pouco de realismo mágico, porque é um livro que começa com uma coisa fantástica - a separação do continente europeu - e segue-se um conjunto de coisas também fantásticas que vão acontecendo como surgem na vida, só que irão ter uma importância grande."

"Segundo o ex-ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes, 
“não foi preciso arrancar a ilha [a Inglaterra] do seu lugar 
porque já está separada fisicamente do continente”, no entanto 
pode imaginar-se a Inglaterra como a península de Saramago 
“numa deslocação política rumo aos Estados Unidos”.© Global Imagens"

"Para o escritor Mário Cláudio, A Jangada de Pedra tem apenas o óbice do seu tamanho após a impactante metáfora inicial: "O livro aproveitaria se fosse um pouco mais curto porque haveria uma poupança de prosa benéfica." Já para Luís Filipe Castro Mendes, o romance "é feito com a coerência que José Saramago sabia pôr no seu trabalho e nas alegorias que desenhava". Explica: "Ele constrói o romance a partir de uma suspensão da credibilidade e aproveita esse arrastar telúrico da península pelos mares para criar uma verosimilhança que lhe é habitual. O leitor avança na leitura com aquele pressuposto e dentro dele constrói uma realidade verosímil - essa é a grande força da ficção e do grande romancista - dentro de um pressuposto de total inverosimilhança. Nesse aspeto é magnificamente construído, mas as ideias dos romances de Saramago são sempre grandes."

sábado, 9 de maio de 2020

"Uma pessoa da família" publicado em 1986 na revista "Status" e agora recuperada na edição #75 da revista "Blimunda" (Agosto de 2018)

O presente texto pode ser consultado e recuperado aqui

"Em 1986, a extinta revista brasileira Status publicou um texto de José Saramago sobre a relação de Portugal com a literatura brasileira e vice-versa. Naquela altura o escritor mantinha na mencionada publicação uma coluna intitulada Notas do Ultramar. Em 1998, dias após José Saramago ser proclamado Prémio Nobel de Literatura, a também brasileira revista Bravo! recuperou a citada crónica e publicou-a. Agora, 20 anos após essa segunda vida do texto cujo título é «Uma pessoa da família», chegou a vez da Blimunda divulgá-lo."

Revista Blimunda - Capa da edição # 75 - Agosto de 2018

"Dizia-me aquele português em São Paulo, ou, por maior rigor, de São Paulo, pois aí vive e trabalha e daí não pensar retirar-se, dizia-me ele sorrindo com a amizade que guarda e a ironia que ao acaso lhe parecia adequada. “Sabe você como já chama os brasileiro a Fernando Pessoa?”. Levantei um sobrolho perplexo e inquisitivo, esperei o fim da pausa retórica que, pelos vistos, o meu amigo queria prolongar, enfim acedi a entrar no jogo: “Chamam-lhe Fernando Pessoa, suponho”. O tom provocador que eu dera à resposta não lhe apagou o sorriso, e as palavras seguintes vieram tocadas por um certo ar de comiseração que ainda mais afiava a ironia: “Chamam-lhe grande poeta da língua portuguesa, pois então”. Compreendi onde ele queria chegar: “Não dizem grande poeta português?” E ele, empurrando a faquinha: “Cada vez se vai dizendo menos”.
Confesso que não gostei. O meu patriotismo literário ofendia-se com a ligeireza, a sem-cerimónia dos irmão brasis, ou primos, que, não pensando, obviamente, em discutir ou ignorar a grandeza do poeta, decidem escamotear-lhe a nacionalidade, tomando como fundamental, quem sabe, a própria sentença de Pessoa: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Disse ao amigo que a atitude configurava forte abuso, que realmente o Brasil sofria de vertigem imperial e que, por esse andar, acabariam por levar-nos o próprio Luís de Camões, ou o Eça de Queiroz, e a Deus, graças por dos mais escritores portugueses conhecerem tão pouco. Exprimi um mau humor nacionalista porventura louvável, mas, logo o percebi, culturalmente pueril.
As coisas são o que são, serem-no é a sua irrefragável força, e a nós cabe-nos tentar compreendê-las, ajeitá-las, se possível, à oportunidade e ao interesse da ocasião, mas respeitando-as sempre, evitando sobretudo cair na tentação da avestruz, o que, na circunstância, seria fingir que as coisas, afinal, são outra coisa. Não estou a brincar com as palavras, pelo menos não mais do que o gosto de ordená-las ao longo de um pensamento para tentar exprimi-lo com a maior clareza possível. Se os brasileiros chamam a Fernando Pessoa de grande poeta da língua portuguesa é porque o admiram e respeitam, porque o desejariam seu. Bom proveito, então, lhes faça tanto mais que Fernando Pessoa é bastante grande para satisfazer dois países e povos, e ainda sobejar Pessoa. também eu desejaria que Manuel Bandeira fosse meu como igualmente desejaria que o fosse Antonio Machado, nascido aqui ao lado, em Espanha, e esse, provavelmente, é o único caso em que uma coisa dividida se tornará tanto maior quanto mais dividida estiver. Tomem pois os brasileiros, para si, a Fernando Pessoa, que não ficaremos mais pobres por isso. Pelo contrário. A cultura a que Fernando Pessoa pertence é a cultura da fala e da escrita portuguesa, aquela pátria única que ele, em palavras brevíssimas e lapidares, como convinha, definiu de uma vez para sempre.
Mas seria mais útil que nos entendêssemos quanto ao resto. Essa cultura de que a língua portuguesa é o veículo e o instrumento não principiou no dia 7 de setembro de 1822, quando a independência do Brasil foi proclamada. Para trás não ficavam o caos, o tempo das trevas, a brutalidade da ignorância. Para trás ficava, sim, um formigueiro cultural com quase 700 anos de trabalho miúdo e algumas grandes empresas. Usando a metáfora mais luminosa, de ar livre e céu aberto, a parte visível da cultura que diremos brasileira emerge e assenta, como parte visível de um iceberg, sobre a massa profunda da história e da cultura portuguesa. 
A cultura brasileira tem uma pré-história, e essa, dêem-lhe as voltas que entenderem é, e não pode deixar de ser, a cultura portuguesa. Levem-nos o Fernando Pessoa, mas não julguem que levam tudo com ele. Compete aos brasileiros, claro está, responder se proclamaram o nascimento de sua cultura na mesma data em que proclamaram a independência nacional, ou se reconhecem como também seu aquele remoto ano em que uma palavra se descobriu portuguesa, para, sendo história, começar a ser cultura.
Tranquilizai-vos, porém. Cuido saber dos fatos da vida o suficiente para não ceder à ingenuidade, senão à estupidez, de considerar as culturas brasileira e portuguesa como meramente e mutuamente complementares de um só corpo cultural, o que, por caminho tão vicioso, equivaleria a querer meter num saco de conflitos todas as culturas de língua portuguesa, a pretexto de uma história em parte comum, ainda que sombria e sangrenta, como tantas vezes o foi. Sou pouco de impérios, velhos ou novos. O Brasil e Portugal vão, cada um por seu pé, aonde tiverem de ir, chegarão onde puderem chegar, felizes ou apenas resignados. E não creio que, nas horas más, um possa ajudar o outro: hoje ninguém ajuda ninguém. Mas somos gente de uma imensa família, de uma mesma língua, de uma cultura que é, embora diferentemente, mesma. Se os brasileiros se recusam a aceitar essa evidência, se o dia 6 de setembro de 1822 é, para eles, anterior à criação do mundo, então façam o favor de nos devolver Fernando Pessoas."



sexta-feira, 8 de maio de 2020

"Monstro da intolerância voltou" Entrevista ao Folha de São Paulo (12/01/1994)

A entrevista pode ser recuperada e consultada aqui
em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/1/12/ilustrada/2.html

"Monstro da intolerância voltou, diz Saramago" por Bob Fernandes

"Auto-exilado nas Ilhas Canárias desde que o governo português, numa manifestação de intolerância, renegou a inscrição de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" na disputa do Prêmio Europeu de Literatura, José Saramago, 71, escreve "Ensaio sobre a Cegueira". Sobre o romance, com lançamento previsto para este ano, o escritor português guarda silêncio. "Ainda está em gestação", diz. Mas, em entrevista à Folha, fala sobre a intolerância, o Brasil e os brasileiros, o amor, a cidadania, e o processo de escrever."

"Folha - O sr. está escrevendo "Ensaio sobre a Cegueira", que deve ser lançado este ano. A intolerância será, novamente, o seu tema?
Saramago - Talvez em sentido muito amplo, mas, sendo um romance, do ponto de vista da técnica narrativa difere bastante do trabalho que tenho feito até aqui. Mas eu não gostaria de ir mais longe porque eu não posso nem devo falar sobre uma coisa que ainda está em gestação.

Folha - A intolerância é uma condição inerente ao homem?
Saramago - Provavelmente é. Mas é também a consequência de uma luta pelo domínio sobre o outro. Seja qual for a natureza do domínio, seja na relação do colonizador com o colonizado, na própria estrutura de classes, isto está sempre presente no comportamento das pessoas. Mesmo que esta não seja uma intolerância ativa como é a outra, mais radical, a intolerância racial, étnica.

Folha - Como esta que a Europa começa a reviver?
Saramago - É. Nós supúnhamos que, depois da última Grande Guerra, dos campos de concentração, tivesse ficado claro até que extremos a intolerância pode levar. Mas nós não nos curamos deste mal, este é um monstro que deita outra vez as garras de fora.

Folha - Onde está o monstro? Na Rússia de Jirinovski, na França de Le Pen, na Alemanha, na ex-Iugoslávia?
Saramago - Não do mesmo modo, mas em quase toda a Europa. Não com a mesma gravidade há o problema dos ciganos na Espanha, há problemas também em Portugal.

Folha - A questão dos brasileiros em Portugal tem o tamanho que a mídia dá?
Saramago - Eu creio que não, embora seja óbvio que existam contradições. Mas não são insuperáveis. Pelo que sei, estou um pouco longe, desde a questão muito debatida dos dentistas não há um outro contencioso. Se deixarem as pessoas falarem umas às outras, sobretudo no caso de brasileiros e portugueses, as pessoas acabam se entendendo.

Folha - E as piadas de português?
Saramago - Podem estar certos os brasileiros de que os portugueses também contam anedotas sobre os brasileiros.

Folha - O sr. tem proposto o regresso do autor, a existência também do cidadão e não apenas do escritor. É isso?
Saramago - O cidadão que o escritor é não pode ocultar-se por trás da obra. Ela, mesmo importante, não pode servir de esconderijo para o autor, dar-lhe uma espécie de boa consciência graças à qual ele poderia dizer que está ocupado e não tem tempo para intervir na vida do país.

Folha - Sem tempo para ser cidadão.
Saramago - Exatamente. Embora eu não queira dizer com isto que o escritor deva se considerar, ou ser considerado, um guia espiritual.

Folha - Nem o sr. imagina a volta da arte engajada, não?
Saramago - Realmente não. O que eu digo é que eu tenho, como cidadão, um compromisso com o meu tempo, com o meu país, com as circunstancias, digamos, do mundo. Eu não posso virar as costas a tudo isso e ficar a contemplar minha obra. O futuro irá julgar a obra do autor, mas o presente tem o direito de fazer um juízo sobre o autor, o que ele é.

Folha - O que sobrou, o que é herança da velha história de Portugal e Brasil?
Saramago - Há uma coisa que é o bem comum, a língua, que é a coisa mais importante que nós deixamos no Brasil. A língua, que foi um elemento de unidade neste país imenso. A questão é saber se os portugueses e os brasileiros têm consciência deste bem comum num mundo como este em que vivemos, que é o mundo da competição, da concorrência, um mundo que luta por dominar. Temos consciência de que esta língua é a quarta ou quinta mais falada no mundo? Eu suspeito que não. Eu sinto que falta quase tudo para potencializar esta realidade. Dá até a impressão de que, uma vez que falamos a mesma língua, não precisamos dialogar.

Folha - O que falta?
Saramago - No mínimo um verdadeiro circuito de comunicação interna e, sobretudo, trabalho em comum de brasileiros, portugueses, e africanos de expressão portuguesa.

Folha - Como estamos falando em bem comum, herança cultural, como o sr. vê este processo brasileiro, hoje, de decomposição e recomposição?
Saramago - Para falar com franqueza, ou o povo brasileiro intervém na sua própria vida –o povo, não os segmentos políticos que o representam – torna isto uma prática quotidiana, ou tudo continuará como sempre foi antes. O povo brasileiro mostrou que, em circunstâncias especiais, é capaz de intervir de uma maneira extraordinária no processo.

Folha - O sr. se refere a que momento?
Saramago - A substituição de Collor de Mello, à campanha pelas eleições diretas. Nós sabemos que a carne é fraca, e os políticos são feitos de carne. O que eu me refiro é à ausência de cidadania, do uso da capacidade que cada cidadão tem de intervir na vida do seu país. A partir do momento em que o cidadão renuncia a esta intervenção, o poder real escapa-lhe das mãos.

Folha - Nos seus livros o amor sempre se realiza plenamente, ao contrário da maioria dos autores modernos. É nisto que o sr. acredita?
Saramago - Sim. Se eu não acreditasse nisto povoaria meus romances de pessoas infelizes, casamentos maus. Sei que a vida toda não é um mar de rosas, sei que há quem escreva coisas contrárias ao que acredita mas, para mim, isto é impossível.

Folha - Pessoas de 20, 18 anos. O sr. consegue entender, acompanhar, como são, hoje, as relações amorosas entre elas?
Saramago - Eu tenho dificuldades em compreender exatamente. Penso que há alguma coisa, ligada a movimentos recentes, que levam a mulher para uma posição um pouco mais próxima do lar.

Folha - O sr. pede que, no Brasil, seus livros sejam editados com a mesma grafia dos editados em Portugal. Por quê?
Saramago - Eu sou capaz de entender um livro de um autor brasileiro com sua grafia, modos e sintaxe próprios. E sei que os brasileiros também compreendem o que é escrito à maneira de Portugal. Se eu admitisse a mudança, estaria negando a identidade da língua portuguesa."

Pilar del Río: «Seremos libres si ejercemos nuestro poder cívico» - Publicado no LaMarea (07/05/2020)

Entrevista de Olivia Carballar publicado no LaMarea em 07/05/2020 e que pode ser recuperada e consultada aqui
em https://www.lamarea.com/2020/05/07/pilar-del-rio-seremos-libres-si-ejercemos-nuestro-poder-civico/

"Entrevista a la periodista y presidenta de la Fundación José Saramago 
sobre el concepto libertad en estos días de confinamiento."

"La literatura es un lugar al que siempre volvemos. Cuando empezó todo esto, corrimos a nuestras estanterías a buscar La Peste, de Albert Camus. Buscamos 1984, de George Orwell. Y buscamos, cómo no, Ensayo sobre la ceguera, de José Saramago. Quizá es buen momento también para leer, como adultos, La flor más grande del mundo, escrito por el Nobel portugués.

“Ese cuento lanza una pregunta: ¿y si los mayores tratáramos de aprender lo que venimos enseñando desde hace tanto tiempo? ¿En qué momento nos olvidamos de los valores y el respeto que nos debemos los unos a los otros? El respeto por la naturaleza, el deber de cuidado está ahí, en ese libro de una docena escasa de páginas”, reflexiona la periodista y presidenta de la Fundación José Saramago, Pilar del Río.

Antes de responder, una frase de la Carta Universal de los Deberes y Obligaciones de las Personas propuesta por el escritor: “Mientras los derechos resaltan la libertad, los deberes expresan la dignidad con la que se ejerce la libertad”. Del Río insiste: “La ciudadanía implica deberes. La Declaración de Deberes Humanos, simetría de la de Derechos, existe. Mi trabajo es difundirla como un instrumento más contra el liberticidio”.

¿Qué es para usted la libertad?
Un derecho fundamental, como la igualdad y la solidaridad. Insisto: igualdad y solidaridad junto a libertad. 

¿Cree que en esta pandemia estamos siendo todos igual de libres –o de no libres–? 
En esta pandemia hay quien se está dando cuenta de que hay valores por encima de los intereses. Y que esforzarse, trabajar por el bien común, compensa. Para disfrutar luego más. 

¿Seremos menos libres cuando acabe todo esto, si es que acaba de alguna forma?
No si seguimos ejerciendo nuestro poder cívico: el que hoy nos hace estar en casa y mañana salir a la calle en caso de que algún poder extraño y ajeno quiera conculcar derechos. La sanidad pública, por ejemplo.  

¿Le asusta que la seguridad se imponga a la libertad? ¿Ha sentido angustia en lo que llevamos de confinamiento?
No me asusta que la seguridad se imponga a la libertad, simplemente no lo permitiré. ¿Cómo? Votando. Ejerciendo mi poder. No quiero Estados policiales; quiero, sí, Estados responsables que expliquen argumentando y sin sacar fantasmas para dar miedo. El confinamiento lo llevo bien porque sé que estoy contribuyendo al bien común, aparte de a mi propia salud.

¿Qué papel debe ejercer el Estado en la libertad de todo ser humano? Hay mucha gente enamorada ahora mismo de Portugal…
El Estado debe garantizar la libertad de todos los ciudadanos ya sea en estado de emergencia o en la normalidad, así como el acceso a los bienes comunes de que los ciudadanos conscientes se han dotado y han dotado a la sociedad. De Portugal no te digo nada: desde la Revolución del 25 de Abril hasta ahora los portugueses dan ejemplos permanentemente. Otra cosa es que no los veamos. 

¿Nos acostumbramos a no ser libres con las políticas austericidas tras la crisis de 2008?
No nos acostumbramos. De hecho, se salió a las calles y la política en España cambió, pero el poder económico, ese que no nos representa porque no se presenta a las elecciones, trazó un modelo de ser ciudadano, que ahora volverán a proponer: nos quieren indiferentes, resignados o con miedo. Con ciudadanos así el sistema vive más cómodo y hace más negocios.

¿Nos cambiará el concepto de libertad esta pandemia o volveremos a nuestra individualidad?
Espero que hayamos reflexionado. Y que nuestros sentimientos se asienten en las reflexiones de los intelectuales de este tiempo, esas voces morales que estamos necesitando oír.

¿El ser humano ha sido libre alguna vez? Otro día hablamos de las mujeres…
Seres humanos libres en sociedades que esclavizan, puede ser, sí los hay. Seres humanos libres compartiendo techo con seres humanos no libres, como las mujeres, eso no lo veo. O con los pobres. O los diferentes… En fin, la libertad, sin la igualdad, me parece algo extraño. Por eso apuesto a que la libertad, junto a la igualdad y la fraternidad son derechos, bienes, que hay que conseguir ejerciéndolos cada día. No encuentro otra."

terça-feira, 5 de maio de 2020

Canal ART.TV "Invitation au voyage" - "Lanzarote, le nouvel amour de José Saramago à Lanzarote" (01/05/2020)

Pode ser visualizado e recuperado aqui
em https://www.arte.tv/fr/videos/091152-090-A/invitation-au-voyage/

"Linda Lorin nous emmène à la découverte de notre patrimoine artistique, culturel et naturel. Dans ce numéro : Lanzarote, le nouvel amour de José Saramago - Au Canada, l’épopée de la morue - En Pologne, une idée contagieuse."


"Lanzarote, le nouvel amour de José Saramago 
À la fin de sa vie, l’écrivain portugais nobélisé José Saramago trouve refuge à Lanzarote, au cœur de l’archipel des Canaries, et puise dans le caractère volcanique de l’île un nouveau souffle littéraire. 
Réalisation: Fabrice Michelin"








Assinalamos o 1.º Dia Mundial da Língua Portuguesa instituído pela UNESCO

José Saramago - Prémio Nobel da Literatura 1998


"Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura anunciou decisão nesta segunda-feira (25/11/2019) em sua sede em Paris; primeiro-ministro de Portugal, António Costa, compareceu à agência da ONU acompanhado de outros membros do governo."
Aqui via UNESCO em https://news.un.org/pt/story/2019/11/1695661

"Em 2009, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Cplp, 
instituiu o 5 de maio como Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na Cplp. 
Foto: ONU News/Alexandre Soares"

O português é língua oficial de nove países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.

É também língua oficial da Região Administrativa Especial da Macau, na China.

Segundo o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Iilp, existem pelo menos 7 milhões de pessoas que falam português e vivem fora de seus países de origem, na diáspora.

Desde 2008, a Cplp formalizou uma estratégia de promoção da língua portuguesa chamada de “internacionalização” do idioma para aumentar o número de pessoas que falam português no mundo como língua materna, estrangeira ou de herança.

Segundo agências de notícias, os países da Cplp esperam agora que com a decisão da Unesco de conferir um Dia Mundial ao português, aumente o interesse pelo idioma em áreas não-lusófonas, vendo crescer o poder de influência do português e dos países de língua portuguesa no cenário internacional.


segunda-feira, 4 de maio de 2020

Palácio Nacional de Mafra pela objectiva do fotografo JotaEne


Uma aproximação ao "Memorial do Convento" de José Saramago

A promessa da construção do convento de Mafra por El-Rei D. João V

Trabalho fotográfico de JotaEne

Fotografia de @JotaEne

(...) "Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que  é o bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Entre passar adiante e dizer o recado há vénias  complicadas, Eloreios de aproximação, pausas e recuos, que são as fórmulas de acesso à vizinhança do rei, e a tudo isto teremos de dar por feito e explicado, vista a pressa que traz o bispo e considerando o tremor inspirado do frade. Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem, falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão, e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez um aceno ao arrábido.
Perguntou el-rei, E verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um
convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha." (Páginas 13 e 14) 

sábado, 2 de maio de 2020

Palácio Nacional de Mafra pela objectiva do fotografo Humberto Joaquim

Uma aproximação ao "Memorial do Convento" de José Saramago

Trabalho fotográfico de Humberto Joaquim 

(...) "Quando de longe avistam os muros brancos da basílica, não gritam, Jerusalém, Jerusalém, por isso é mentira o que disse aquele frade que pregou quando foi levada de Pêro Pinheiro a pedra a Mafra, que todos estes homens são cruzados duma nova cruzada, que cruzados são estes que tão pouco sabem da cruzadia." (...) Pag. 295


(...) "Vem chovendo, mas não tanto que o trabalho tenha de parar, excepto o dos pedreiros, pois a água desfaz a argamassa, empoça nas larguíssimas paredes, por isso recolhem-se os operários aos telheiros, à espera que levante, enquanto os canteiros, que são gente fina, batem abrigados o mármore, tanto para a cantaria como para o lavrado, provavelmente prefeririam descansar. A estes tanto faz que as paredes cresçam depressa como devagar, têm o risco da pedra a seguir, caneluras, acantos, festões, acrotérios, grinaldas, estando acabada a obra logo a levam os carregadores a pau e corda, para o telheiro onde com outras ficará guardada, chegando a hora a irão buscar do mesmo modo, salvo se for tão pesada que requeira cabrestante e plano inclinado." (...) Pag. 218


(...) "Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo da inspiração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma acção de não menor grandeza que a basílica que não pode haver. O arquitecto ponderou, Mil frades, quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quantos, Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena para eles a basílica que desenhei e está a ser construída, com muitos vagares, se me é permitido o reparo, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, Assim se fará, dando vossa majestade as necessárias ordens." (...) Pags. 281/282


(...) "Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direcção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce, é pânico já, enfim vai ter voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todos morrerão, É Mafra, além, grita Baltasar, parece o gajeiro a bradar do cesto da gávea, Terra, nunca comparação alguma foi tão exacta, porque esta é a terra de Baltasar, reconhece-a, mesmo nunca a tendo vista do ar, quem sabe se por termos no coração uma orografia particular que, para cada um de nós, acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasar grita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo." (...) Pag. 201

"Memorial do convento, de José Saramago: a desconstrução teológica de Saramago e o fundamentalismo religioso" Por Giselle Lourenço ao "Homo Literatus" (13/08/2016)

"Memorial do convento, de José Saramago: a desconstrução teológica de Saramago e o fundamentalismo religioso"

Pode ser recuperado e consultado aqui
aqui em https://homoliteratus.com/memorial-do-convento-de-jose-saramago-a-desconstrucao-teologica-de-saramago-e-o-fundamentalismo-religioso/

Homo Literatus - Por Giselle Lourenço (13/08/2016)


Um ensaio sobre Memorial do Convento, de José Saramago

"O autor refaz, sob uma crítica ao fanatismo religioso e ao absolutismo monárquico, a história da construção do Palácio de Mafra, Portugal. Mais precisamente, no ano de 1711 tem início a construção do convento que abrigaria, inicialmente, um modesto número de frades franciscanos, em razão de uma promessa feita pelo Rei D. João V para que a Rainha Maria Ana Josefa conseguisse lhe dar um herdeiro. Contudo, a necessidade de um rei megalômano e com medo da morte faz com que mais de quarenta mil portugueses trabalhem para construir uma obra de proporções gigantescas, no intuito de el-rei  deixar evidente a marca de sua imponência e a perenidade de sua memória.
Padre Bartolomeu Lourenço, protegido do rei, tinha novas ideias, entre elas, a construção da passarola, para realizar seu sonho de voar. Suas pesquisas voltadas para a construção da engenhoca ficavam encobertas em segredo, incluindo a cumplicidade do rei, pois ao homem, não era permitido voar, dado que isso significava uma heresia ao tentar se comparar a Deus.
Em autos-de-fé, em praça pública, o Santo Ofício executava suas vítimas do século XVIII, em geral acusados de bruxarias, feitiços ou pensamentos de afronta à religião católica. Em um desses autos, Baltasar Sete-Sóis conhece Blimunda (mais tarde chamada de Sete-Luas, pelo Padre Bartolomeu). Blimunda estava a espreitar com discrição a execução ou deportação (a história não evidencia) da própria mãe, acusada de bruxaria. Em meio ao alarido e histeria coletiva de fundo religioso, Blimunda percebe, por um tipo de comunicação com a mãe, que Baltasar era o homem com quem ela deveria viver. Assim, sob o pretexto de saber seu nome, ela o convida para ali ficar com ela.
Baltasar é um ex-soldado da guerra, em decorrência da qual lhe faltam mão e braço esquerdos. Blimunda, assim como a mãe, possuía um dom especial, do qual apenas Padre Bartolomeu sabia, e depois veio a sabê-lo também Baltasar. Em jejum, ela conseguia ver o interior dos homens e de todas as coisas, não espiritualmente ou metafisicamente, mas via a matéria escondida mesmo. Portanto, conseguia ver um tumor ou uma criança no ventre de uma mulher, por exemplo. Ao começar uma relação com Blimunda, Baltasar também se aproxima de Padre Bartolomeu e os três tornam-se amigos fortemente ligados por um segredo e vontade de realização humana: a construção da passarola. Assim, trabalham por anos, com afinco, seguindo as instruções de Padre Bartolomeu para arquitetar a máquina.
Após a conclusão do trabalho, em uma fuga inesperada do Santo Ofício, os três partem para o alto, no primeiro voo da passarola. Como o voo não saiu com toda perfeição esperada nas manobras necessárias, Padre Bartolomeu sente-se fracassado em empenhar sua vida na máquina e ainda por ter envolvido as vidas do casal Blimunda e Baltasar. Por essa razão, some no mundo, e, ao que tudo indica, comete suicídio tomado pela loucura.
Desamparados dos favores do padre, o casal passa a viver em Mafra, onde Baltasar consegue trabalho na construção do convento e de tempo em tempo, sai em misteriosas visitas para cuidar da passarola, encoberta pela mata de Monte Junto, onde caiu após a primeira tentativa fracassada de voo. Durante a narrativa da construção do convento de Mafra, são ressaltadas as diversas mortes que ocorreram em decorrência das condições de trabalho daquela gente, a hipocrisia de uma sociedade que se flagelava em público em ritos religiosos para expurgar seus pecados e o autoritarismo de um monarca que se vangloriava igualando-se a Deus, exibindo seu poder e frequentando conventos femininos em busca dos prazeres sexuais com as freiras, com quem mantinha relações, fazendo nascer vários bastardos dentro dos muros das ordens religiosas.
O que meu olhar registra sobre a obra de Saramago?
Ao relatar o autor, sob o viés de denúncia o autoritarismo real e o fanatismo religioso (este último, principalmente), adentramos o terreno que favoreceu o recrudescimento de críticas, por parte de uma ala mais conservadora do catolicismo, perante a escrita de José Saramago. Afinal, já é de conhecimento de um grande público o teor nada ortodoxo com o qual o autor aborda temas religiosos e dogmáticos.
Ateu, Saramago oferece, em Memorial do convento, uma desconstrução teológica, ou ainda, uma abordagem teológica não convencional.
Ao narrar o episódio em que Blimunda, deliberadamente, sai em jejum para a igreja no intuito de olhar para a hóstia consagrada do altar e investigar o que poderia, nela, ser encontrado, o autor destaca a visão de Blimunda a respeito da mesma nuvem de vontades que encontra na maioria dos homens, ou seja, aquela nuvem escura vista por Blimunda, contida na hóstia e que denota a vontade é também o mesmo material encontrado no interior dos homens."

"[…] E Blimunda disse, Esperava ver Cristo crucificado, ou ressurrecto em glória, e vi uma nuvem fechada, Não penses mais no que viste, Penso, como não hei-de pensar, se o que está dentro da hóstia é o que está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o padre Bartolomeu Lourenço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério, Talvez não soubesse, talvez nem tudo possa ser expicado […] (SARAMAGO, 1982)."

"Ao evidenciar essa semelhança de vontades entre o humano e o divino, Saramago coloca frente a frente duas visões teológicas: uma mais tradicional, que trata da vontade de Deus como algo vertical, que vem como uma ordem de cima para baixo, algo que precisa ser percebido e obedecido; e uma reconstrução teológica que trata a vontade de Deus em consonância com as vontades humanas, algo que pode ser percebido e construído na horizontal, humano e divido em harmonia e semelhança. As vontades dos homens são as mesmas que as vontades de Deus porque é na realização humana que o divino se realiza, que se concretiza. Nesse ponto, convém lembrar a visão teológica de Andrés Torres Queiruga em sua obra A revelação de Deus na realização humana. Na obra, Queiruga trata a revelação como algo que necessita da cooperação do homem para que aconteça. Na apresentação do livro, está contida uma frase de Juan Luis Segundo que diz: “Deus não se revela a não ser na e para a realização dos homens e mulheres que buscam dar sentido a suas existências. ”
Trata-se de um novo paradigma que concebe a revelação não como um ditado verbal (expressão do próprio teólogo), mas como uma percepção do ser humano sobre suas necessidades em seu processo histórico apoiada em uma escuta atenciosa para uma necessidade maior. Assim como Saramago contrasta em toda sua narrativa com sua desconstrução inusitada com a teologia clássica e seu tom solene sobre os diversos dogmas católicos, Andres Queiruga traz à baila o quanto essa solenidade e abstração afasta-se do sentido bíblico e, consequentemente, da realidade humana.
Uma personagem como Blimunda, retratada como uma mulher despojada, direta, sem pudores desnecessários, capaz de entrever a hipocrisia sustentada nas máscaras do comportamento humano e nos ritos litúrgicos excessivos e não verdadeiros, porque não em consonância com a realidade, traduz a mais inusitada desconstrução teológica do autor de Memorial do convento, que oferta ao símbolo narrativo do despojamento o poder de enxergar a essência do sagrado.
Há ainda um outro aspecto em Blimunda que convém destacar: o contraponto que essa personagem faz com a Rainha Maria Ana Josefa. Enquanto aquela é livre para lidar com a fé da maneira como sente que deve, enquanto é livre para amar e para escolher seu parceiro, enquanto é livre para pensar e para expressar seus pensamentos e aforismos, que ocupavam a reflexão até de Padre Bartolomeu Lourenço, esta estava presa em uma vida de aparências e infelicidades, ciente de que não era amada e nem desejada pelo rei, ciente das traições reais e dos bastardos que nasciam, fantasiando paixões oníricas e impondo-se, depois, a culpa, encontrando na prática da religiosidade muito mais uma maneira de conviver com a suposta culpa que ela achava que tinha do que como uma tábua de salvação para sua vida infeliz.
Ampliando as possibilidades teológicas a outras personagens, o narrador (que ora é onisciente e ora adquire a perspectiva e o foco de alguma personagem isolada) traduz nos exatos termos a amizade entre Blimunda, Baltasar Sete-Sóis e Padre Bartolomeu: uma verdadeira trindade humana. Quando toca nesse ponto, também traduz os anseios de novos paradigmas teológicos quanto à trindade, que em meados do século XVIII jamais poderia ser concebida com a participação humana em sua dínamis. Padre Bartolomeu executando o papel do Pai, porque concebe a ideia inovadora e criadora da passarola, Baltasar no papel de Filho, porque acolhe o projeto do Pai e o executa com consciência plena de que deve ir até o fim do projeto (até que, por ele, morre) e Blimunda fazendo as vezes do Espírito, porque possui os dons espirituais necessários para que o trabalho se concretize.
Ao longo da narrativa é possível entrever outras desconstruções para além dos dogmas já mencionados, como quando o narrador coloca em xeque o mito bíblico do Paraíso, a validade do sacramento da confissão e a existência do lado esquerdo de Deus:"

"[…] Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta […] (SARAMAGO, 1982)."

"Evidentemente, Saramago transpõe para sua obra a visão e os questionamentos de um livre-pensador. Quer também apontar para as armadilhas dos excessos e do fanatismo religioso, que, em vez de contribuir para que a mensagem religiosa seja melhor aproveitada, apenas colabora para um processo de desumanização e de degradação civilizatória. Antes de preconceber qualquer ideia a respeito de sua literatura, tomados por fortes raízes religiosas que temos deste lado do Atlântico (assim como as possuem também o país de origem do autor), convém saber que, apenas com o livre-pensar é possível atingir certos estágios de desenvolvimento, como tem comprovado o nosso processo civilizatório. Disse Bertrand Russell em Ensaios céticos que o livre-pensar jamais será plenamente alcançado, mas que é possível, hoje, aproximar-se bem mais dele.
Podemos dizer que um pensamento é livre quando ele é exposto a uma competição liberada entre crenças, ou seja, quando todas as crenças possam se manifestar, e não haja vantagens ou desvantagens legais ou pecuniárias associadas a elas. (RUSSELL, 1920)
Ainda sobre o tom e o teor nada aveludado da escrita de Saramago, muito provável que seu conterrâneo Eça de Queiroz pudesse apreciar, já que teceu severas críticas à cultura portuguesa de sua época a respeito de uma certa falta de prática realista nas letras.
Sabemos cantar, algumas vezes protestar, jamais explicar. Eis por que não existe crítica em Portugal. Também o romance e o drama, até os últimos tempos, eram somente obras de poesia e de eloquência, algumas vezes, ensaios filosóficos, outras vezes, elegias sentimentais. A ação era concebida fora de toda verdade social e humana. (EÇA DE QUEIROZ, 1880).
Levando em consideração que escrevo essa resenha no dia da festa de Santo Inácio de Loyola e retomando a ideia da desconstrução teológica que vai ao encontro da tese de Queiruga sobre a participação do homem na revelação, é bom ressaltar que, a despeito de muitos rumores quanto à validade do novo paradigma teológico da participação humana na revelação de Deus, foi o próprio Santo Inácio quem tratou das potências naturais humanas como primordiais para que a graça divina possa atuar – a graça pressupõe a natureza. Foi Santo Inácio quem recomendou que, ao entrar em Exercício Espiritual, o fiel o fizesse de modo a confluir nesse momento suas potências naturais humanas para que a ação de Deus pudesse ser sentida e acolhida: “[…] usa das suas potências naturais mais livremente, para buscar com diligência o que tanto deseja […]”. São essas potências: liberdade, memória, entendimento e vontade. Portanto, também para Inácio, não teria razão de ser uma religião que retirasse do homem sua capacidade racional, que junto com a memória, pudesse estabelecer uma ampliação de horizontes na vivência dessa fé e nas novas luzes teológicas que das experiências humanas pudessem resultar.
Dada esta resenha na Festa de Santo Inácio, em 31 de julho de 2016"

"Tomai, Senhor, e recebei
toda a minha liberdade, a minha memória,
o meu entendimento e toda a minha vontade,
tudo o que tenho e possuo; Vós mo destes;
a Vós, Senhor, o restituo. Tudo é vosso,
disponde de tudo, à vossa inteira vontade.
Dai-me o vosso amor e graça, que esta me basta.

(Oração de Santo Inácio)"

"Algumas curiosidades a respeito da obra

Em entrevista, Saramago disse que sua escrita peculiar, sem utilizar sinais de pontuação ou parágrafos, é uma tentativa de se colocar como um falante ao escrever, sentindo-se um interlocutor da própria obra e não, propriamente, um escritor. Queria colocar-se num lugar mais comum com todos nós.
A peça Memorial do convento foi apresentada pela primeira (e única?) vez no Brasil em 2013, no complexo Feliz Lusitânia, numa parceria entre a UFPA e a Fundação José Saramago. O local escolhido justifica-se pela arquitetura que melhor reproduziria o cenário da narrativa, que está ambientada no século XVIII.
Saramago, além de explicar sua estratégia peculiar de escrita, também disse em entrevista que, ao visitar o Palácio de Mafra, contemplando sua imponência, escreveria sobre os bastidores da construção do palácio-convento. Arrependeu-se logo depois de ter dito, mas deu cabo da tarefa por ter manifestado o desejo da escrita da obra em voz alta, tendo outras pessoas como testemunha. Disse ainda que, dada a complexidade que o absorveu na construção da narrativa, não a teria feito se não fosse o comprometimento ao qual se sentiu atado quando pronunciou sua vontade em alta voz diante de outras pessoas que, certamente, o cobrariam do feito mais tarde.
A imponência arquitetônica de Mafra só pôde ser erigida graças ao ouro do Brasil. Além de enriquecer os cofres portugueses, quase todo o ouro que lá está é de origem brasileira.

REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
RUSSELL, Bertrand. Ensaios céticos. MOTTA, Marisa (Trad.). Porto Alegre: L&PM, 2008.
EÇA DE QUEIROZ, José Maria. O mandarim. Porto Alegre: L&PM, 2001.
INÁCIO DE LOIOLA. Exercícios Espirituais: tradução do autógrafo espanhol. DIAS PEREIRA, SJ, Dias Vital (Trad.). BAPTISTA, SJ, F. de Sales. (Org.). Braga: Livraria A. I."