Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Saramago e a força que sentia do seu público - "Sou uma pessoa amada"

Muitas vezes me questionei:
Qual seria a sensação que Saramago experimentava, ao receber do seu público, o reconhecimento. Como é que a mensagem era recepcionada e intuída?
Saramago, autor tardio dizem muitos, para mim, escritor que chegou até ao povo quando teria de ter chegado. Da entrevista dada à revista Visão (16/01/2003, com José Carlos de Vasconcelos), extrai-se este sentimento "Sou uma pessoa amada, tenho a certeza absoluta".
A atribuição do prémio Nobel, trouxe muitos leitores, mais internacionalização da obra, mas livros traduzidos em mais línguas, mais solicitações, mais exaustão pessoal, mais respostas às mesmas perguntas.
Lê-se na entrevista as recepções por este mundo fora, com centenas e milhares de pessoas para o ouvirem, verem, pedirem um autógrafo, o tal que seja especial - lembro-me de estar em longas filas nos idos tempos de noventas, na feira do livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII... realmente o povo tinha por ele uma enorme gratidão pela obra e pelas palavras.
Hoje, nos fins de 2014, do vários cantos deste planeta chegam relatos e memórias, evocações e lembranças.
Os Saramaguianos e as Saramaguianas, encetaram em si um desígnio muito especial - o homem morreu mas a obra tem descententes.




Entrevista de José Carlos de Vasconcelos para a revista Visão em 16/01/2003
(…)
E andaste aí pelo mundo, quase de uma ponta a outra. Como é que resististe, até fisicamente?
Bom, não foi fácil. E continua. Ainda no ano passado, só nos Estados Unidos estivemos, eu e a Pilar, quase um mês, percorrendo-os de uma costa a outra. Em meados de Dezembro chegámos de uma volta de mais um mês, por Portugal, Espanha, Itália. E os convites não param.

Isso tudo, além de muito cansativo, não é, a partir de certa altura, muito chato? Ou os momentos gratificantes fazem com que valha a pena?
A atitude com que vou para essas coisas é muito parecida com a que te referi quanto às entrevistas. Vou contrariado, mas à terceira palavra já estou onde tenho de estar. E essas coisas dão-me muitas alegrias. A maior, perdoe-se-me a vaidade ou presunção, é saber que para centenas ou milhares de pessoas que estão ali, o que lhes vou dizer tem importância. Podem estar enganadas, ou iludidas, mas tem importância para elas. Quando vou a Bogotá e me encontro com um teatro repleto, com 1700 pessoas lá dentro para ouvir falar de livros, e cerca de mil pessoas cá fora a protestarem por não conseguirem entrar; quando na grande praça de Cidade do México apresento um livro (A Caverna) para dez mil pessoas; quando em La Antigua, na Guatemala, havia mais de mil pessoas; quando vou dar uma conferência e me encontro com uma fila de gente que dava a volta toda a um quarteirão para entrar numa sala que já estava cheia; quando em Buenos Aires, a autografar livros na Livraria Ateneo, havia cá fora, sob chuva intensa, dezenas de pessoas à espera de conseguirem entrar – então, sem nenhuma vaidade, tenho de concluir que sou uma pessoa amada. Não é estimada – é amada. Se há alguma coisa de que tenho a certeza absoluta é deste afecto especial que liga muito dos meus leitores, apetecia-me dizer quase todos, em relação ao escritor, mas sobretudo em relação à pessoa. E isso, que acontece também em Espanha, na Itália, no Brasil, em toda a parte, dá-me a maior alegria.

A que o atribuis, dado haver escritores também muito lidos e famosos com que isso não acontece? Ao próprio tema dos livros e às tais opiniões que neles também dás?
Julgo que sim. Essas pessoas não me conhecem, não vieram aqui a casa ver como eu era. Devem é ter encontrado nos livros uma voz e assuntos que lhes interessavam. E um certo tom, a minha tal presença nos romances que escrevo, a implicação constante em cada página, em cada linha, em cada palavra. Eu há muito digo que todos os livros, e já agora em particular os meus, deviam levar uma cinta com estas palavras: atenção, este livro leva uma pessoa dentro. É isto no fundo: os meus leitores encontram nos meus livros a pessoa que eu sou e gostam. Que queres que eu te faça (risos) e que queres te diga mais? Sou um homem de sorte, até nisso sou um homem de sorte.

Há algum caso, alguma história, que te tenha marcado mais?
É muito difícil. Tenho conversado com Pilar sobre isto: as Obras Completas estão incompletas porque lhes falta o outro lado, ou como agora se diz a recepção dos leitores. Gostaria, depois de já cá não estar, que a Pilar organizasse, para publicar, cartas absolutamente extraordinárias, muitas vezes de pessoas sem qualquer preparação académica, de uma emoção raras, que me chegam de toda a parte. E que juntasse aos 30 e tal volumes que eu deixe escritos um ou dois com essas cartas.

Pintor Rogério Ribeiro referência para Saramago

A entrevista que José Saramago concedeu a Carlos Vez Marques (Junho de 2008, revista Ler), aponta logo no início para a referência a Rogério Ribeiro, pintor e artista plástico, revelando a sua importância referencial no mundo Saramaguiano.

"Mas é uma figura a que tem uma ligação muito forte, como o azulejo na fachada da casa e o quadro que tem nesta sala provam. (nota: referência à figura de Blimunda)
Isto, são duas obras de Rogério Ribeiro. O meu querido Rogério, que já cá não está. Quando ao azulejo, havia um nicho para que o dono da casa pusesse ali o que quisesse e nós decidimos pôr ali uma Blimunda, que ele (Rogério Ribeiro) nos desenhou, pintou e pôs lá."





A propósito do lançamento da obra "Rogério Ribeiro uma monografia", na qual José Saramago elaborou um prefácio muito elogioso, percebemos que o pintor Rogério Ribeiro foi muito importante e um vector referencial. http://www.jn.pt/PaginaInicial/Interior.aspx?content_id=577578

Para homem que se diz "desajeitado" na hora de felicitar, José Saramago até nem se saiu mal "Rogério Ribeiro é o melhor desenhador vivo em Portugal". O elogio foi deixado no Porto, ontem, durante a sessão de lançamento daquela que é a mais completa edição consagrada à obra do pintor Rogério Ribeiro. Trata-se de um livro com cerca de 600 páginas editado pela Cordeiros Galeria, que representa o artista de Estremoz há mais de dez anos.
Dessas quase seis centenas, uma foi escrita por José Saramago. "Uma página só, quando muitas não bastariam", diz o escritor, para quem "a substância da arte de Rogério Ribeiro é o assombro de sermos". Quem sabe se propositadamente lidas só lá para o fim da intervenção, estas palavras fecharam a mensagem que o romancista fez questão de deixar e que se resume desta forma "Na pintura há muito mais do que a obra visualmente consagrada - é condição nossa pensar".
Porque "a pintura pode ser entendida também como uma forma de expressão filosófica", Saramago afirma que "o mais importante é o que é invisível", o que vai para além "da simples cor e do simples desenho". Numa só expressão, "é a vontade de sermos outra coisa, como sermos humanos". "O que este livro necessita é que não nos contentemos com a imagem, por mais bela que ela seja", disse ainda, para acrescentar que as cores na pintura de Rogério Ribeiro, como na de outros artistas, "servem para dizer aquilo que o pintor não saberia dizer de outra forma". E porque considera que as cores, essas sim, é que podem ser belas, diz que "é um insulto chamar 'bonito' a um quadro". Além do prefácio de José Saramago, o livro "Rogério Ribeiro, uma monografia" contém textos de Eduardo Paz Barroso, responsável pela concepção editorial, Mário Cláudio, Ana Isabel Ribeiro e do próprio artista.
No próximo dia 9, chega às livrarias portuguesas o novo livro de José Saramago, intitulado "Pequenas memórias", um projecto que o autor tem vindo a adiar desde há 20 anos.
São relatos de vários momentos da sua vida, memórias "que começam pelos quatro anos e acabam aos 14 ou 15", como o próprio referiu ao JN. "Não fui uma criança feliz, mas também não posso dizer que fui uma criança infeliz", confessou, criticando o facto de os pais, nos dias de hoje, "quererem que as crianças estejam sempre contentes".
Saramago faz a apresentação pública da nova obra a 16 de Novembro, dia em que completa 84 anos.



Via Wikipédia
"Rogério Ribeiro (Estremoz, 31 de Março de 1930 - Lisboa, 10 de Março de 2008) foi um artista plástico português.
Fez a sua formação académica em pintura, na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, actual Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Foi sócio-fundador da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses (1956), onde desenvolveu intensa actividade como gravador. Trabalhou em cerâmica e em tapeçaria por encomenda de particulares, empresas e organismos oficiais. Em 1961 iniciou a sua actividade de professor de Pintura e Tecnologia na Escola de Artes Decorativas António Arroio (Lisboa). Primeiros trabalhos no âmbito do Design de Equipamento e Gráfico (1964) e colaboração com vários arquitectos nos estudos de cor e integração de materiais e trabalhos artísticos.
Foi professor da ESBAL desde 1970, instituição onde, em 1974, coordenou o grupo de trabalho de reestruturação do currículo escolar na área do Design. Em 1983 foi co-autor do projecto da Galeria de Desenho do Museu Municipal de Estremoz, com Joaquim Vermelho, Armando Alves e José Aurélio, entre outros.
Membro do Partido Comunista Português desde 1975 e do seu Comité Central entre 1983 e 1992, foi fundador da primeira Galeria Municipal de Arte em Almada e também responsável pelo projecto Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, um dos principais pólos culturais do concelho de Almada."




A antiga revista "Bola Magazine" entrevista José Saramago

A antiga e ao mesmo tempo extinta revista "Bola Magazine", em Novembro de 1998, entrevistou José Saramago. 
O mote de lançamento da entrevista é deveras interessante. Qual a visão sobre o desporto, suas eventuais influências e referências, o desporto colectivo...

A revista digital "Blimunda" da Fundação José Saramago, publica no seu número dois, em Julho de 2012, a entrevista.
O número em causa por ser descarregado aqui: http://www.josesaramago.org/blimunda-2-julho-2012/

Preview da entrevista:
"O segundo número da revista Blimunda coincide com o mês em que terminou mais um Europeu de Futebol. Atenta ao que a rodeia, a Blimunda não poderia deixar de abordar este tema, não de um ponto de vista desportivo mas sim analisando a forma como o futebol, esse fenómeno de massas, afeta a sociedade, condiciona resultados políticos ou é tratado pela literatura. Tudo isto se pôde confirmar este ano nos jogos que opuseram equipas como a Alemanha a outras como Portugal, Espanha ou Grécia, momentos que significaram mais do que simples jogos de futebol, momentos que motivaram inúmeras discussões políticas, económicas e sociais. Ainda no dossier sobre este tema, a Blimunda recupera um texto de Fernando Assis Pacheco e outro do colombiano Jairo Aníbal Niño, aqui em formato de som, numa edição da Boca – palavras que alimentam, mostrando que muitas das nossas mais fortes memórias caminham para a par com a bola, de pano ou de pele, jogada na rua ou no campo de futebol da nossa imaginação. A secção Saramaguiana recupera uma entrevista de José Saramago dada à revista A Bola Magazine no ano de 1998. Vamos falar de futebol é o título do conjunto de respostas em que José Saramago aborda temas que partem do futebol e do desporto em geral e que passam pelo Iberismo ou pela luta dos mais fracos contra os mais fortes."


A Bola Magazine, novembro de 1998
Uma bela manhã Portugal acordou e tinha, finalmente, o Nobel que anos após anos lhe era prometido e depois negado. E, no dia seguinte, o País esqueceu-se de tantas das ingratidões que infligiu a José Saramago e transformou-o no mais recente dos seus heróis. E mesmo quando o ouvimos dizer que “nenhuma vitória é definitiva”, ficamos com a certeza de que esta é.
Geralmente é assim: há uma entrevista, marcada e agendada como é natural que aconteça com todas as entrevistas, mas também uma conversa que lhe fica por cima, às vezes não muito por cima, apenas um pouco, outras definitivamente longe daquilo para que as perguntas e as respostas nos conduzem. Com José Saramago houve,portanto, a entrevista, inevitável e incontornável, mas houve sobretudo, em redor dela, uma conversa muito mais bonita porque existem ainda em Portugal pessoas que vale a pena ouvir falar, escutando-lhes atentamente a sabedoria que foram retirando do movimento rotativo da vida.
Como estas coisas têm regras, era a nós que cabia fazer as perguntas. Mas foi ele que foi levando as respostas por onde quis, com as perguntas a perderem, mais cedo ou mais tarde, o significado na sua peugada. De tal maneira que dava vontade de dizer como o padre Manuel Velho, na citação que abre o Memorial do Convento: “Yo no voy, este me lleba”. 
E então ficou desta forma:

Ser o Prémio Nobel é mais ou menos como ser campeão do Mundo da Literatura?
Não acho que seja. Os campeões do Mundo correm, ou jogam, ou lutam uns contra os outros. Nos Prémios Nobel, sejam eles da literatura ou lá do que foram, não existe contacto físico nem exibição de dotes atléticos.

Mas há competição...
Nega de pronto, como se a sugestão lhe causasse desagrado:
Não, não há competição! Cada um está a fazer o seu trabalho. E ao fazê-lo não está em competição com A ou B e muito menos com todos. É o resultado desse trabalho que é objeto da atenção de uma instituição, no caso a Academia Sueca. E, portanto, não se pode falar em... campeonato. Além disso também não está provado que
nestas coisas de Nobel ganhe o melhor.

Como no desporto, aliás. Mas este ano não podemos dizer que não foi o melhor que ganhou...
Ri e interrompe:
Isso não é a mim que cabe julgar.

Se fizesse parte de um júri encarregado de galardoar o Prémio Nobel do Desporto, em quem votaria?
Transparecem-lhe as dúvidas. Rapidamente desfeitas:
Não conheço bem o desporto mundial, nem sequer o nosso, mas vamos colocar-nos no pequeno mundo português: tal como estão as coisas agora, eu dava o prémio à Manuela Machado.

Porque é que o desporto em geral e o futebol em particular têm sido incompatíveis com a literatura? Quer dizer, o desporto não é propriamente um tema literário, pois não?
Aqui entre nós, não é. Mas na América Latina é, e muito. Tem-se escrito, e muitíssimo bem, sobre o mundo do futebol.

Mas qual o porquê de esse fenómeno ser tão localizado?
Não sei como responder-lhe a essa pergunta. No caso da América Latina poderíamos atribuir isso à terrível paixão com que o jogo é vivido por lá.

Aparentemente, por aqui também há paixão...
E conclui, após uma pausa ligeira:
...mas talvez não haja.

Se calhar há apenas facciosismos...
Olhe, se calhar é isso mesmo.

Que me lembre, dos 94 Prémios Nobel da Literatura que o precederam, apenas um, Camilo José Cela, escreveu assumidamente em redor do desporto no seu Onze Contos de Futebol. Alguma vez lhe passaria pela cabeça escrever contos sobre futebol?
Não... Não. E a razão é simples: trata-se de um mundo que não conheço. Em princípio, quem escreve deve ter muito cuidado e não meter-se por assuntos que não domina. Da mesma maneira que não seria capaz de escrever um romance ou um conto em que o personagem principal fosse um presidente do conselho de administração
de uma empresa multinacional, também não seria capaz de meter-me na pele de um dirigente de um clube de futebol ou de um jogador de futebol.

Mas há outros casos. Gente que não escreve sobre desporto mas que, ao longo dos seus livros, passa por lá. O Hugo Claus, por exemplo, como bom belga, não dispensa umas descrições sobre os sprints entre Vervaecke e Bartali; o próprio Vergílio Ferreira tem aquela história do ponta-esquerda a quem amputam uma perna e, na
cama do hospital, continua a sonhar com o momento de marcar o penalti... Em Saramago nem isso acontece...
Até agora nunca me aconteceu...

O distanciamento entre si e o desporto é assim tão grande?
Bom, eu joguei ténis durante muitos anos, vivia na Parede e tinha acesso fácil aos courts. Nado, como qualquer pessoa nada, pratiquei um desporto menos que amadorístico, as mudanças da minha vida afastaram-me da prática desportiva. Mas distanciamento não posso dizer que haja. Sou dos que assistem aos espetáculos confortavelmente sentados frente à televisão. Gosto de ver umas modalidades bem menos que outras. O salto em comprimento, por exemplo, aborrece-me porque é excessivamente repetitivo. Mas aprecio as corridas. As corridas que não são de longa distância, porque essas são excessivamente táticas, deixando a resolução para as últimas voltas, dando vontade de perguntar para que é que se correram todas as voltas anteriores. O futebol tem o velho problema: ou é bem ou mal jogado.

Tal como os livros. Ou são bem ou mal escritos...
E, da mesma maneira que um livro mal escrito se torna entediante, também me sucede estar a ver um jogo de futebol e deixá-lo a meio. Além disso, o futebol de hoje tem uma coisa que não suporto e que é o jogo violento. Não o jogo violento no sentido... razoável. Não é preciso embrulhar os jogadores em algodão-em-rama. Mas existe uma violência, assente na crueldade, que não aceito. Que me incomoda.

Em Portugal, um mau jogador de futebol, para não dizer um péssimo jogador de futebol, pode ganhar a vida decentemente a fazer o que gosta. Um bom escritor arrisca-se a morrer de fome, se o tentar...
Isso desgosta-o?
A resposta é imediata:
É, evidentemente, uma coisa que me desgosta muito. Como me desgosta outra situação que vem nessa linha: um escritor ganha um prémio, não precisa de ser um Nobel, bastam dois ou três mil contos, e é infalível que lhe saia ao caminho um jornalista a perguntar o que é que ele vai fazer ao dinheiro. Pergunta que nunca colocam a um jogador de futebol que ganha, numa temporada, quatro, cinco, seis vezes mais do que um escritor ganha durante a vida. Eu estava em Frankfurt, dei uma entrevista a uma cadeia de televisão, já não sei qual, e lá veio a pergunta: “E agora o que é que vai fazer a esse dinheiro?” Claro que podia ter respondido: “E o que é que o senhor tem a ver com isso?” Mas não, limitei-me a dizer-lhe: “Já perguntou isso alguma vez ao Ronaldo, ao Bebeto ou ao João Pinto?” O Ronaldo, se calhar, não sabe mesmo o que fazer ao dinheiro... Lá saberá. E, muito naturalmente, compra coisas que eu nunca compraria. 

Para lá da vidraça há um céu claro, sem nuvens e sem pássaros. E uma Lisboa que fervilha, uma quinzena de andares abaixo: “Viajo devagar, o Tempo é este papel em que escrevo”, dizia Saramago nas páginas do seu Manual de Pintura e Caligrafia. Viajamos também devagar a todo o comprimento das estradas da conversa. Que ele conduz sem sobressaltos. Ele que não gosta de conduzir...
Já li, numa entrevista que deu, se não me engano ao Baptista-Bastos, que o futebol deixou de exercer em si qualquer atração. Qual foi o porquê da desilusão? Houve alguma razão especial para isso?
Não. Eu fui sócio do Benfica com os meus oito ou nove anos, Por influência do meu pai, claro está!, ele era um benfiquista ferrenho, no tempo do Estádio das Amoreiras, com aquelas bancadas e aquele
peão de terceiro mundo. Mas depois as mudanças de vida levaram-me por outros caminhos. Não me apetecia estar a sair de casa para ver um jogo. Nunca fui suficientemente entusiasta para andar de bandeira e cachecol e toda essa parafernália que fez com que o espetáculo se tenha deslocado do campo para as bancadas. O que, aliás, está de acordo com os atuais costumes do Mundo. Além do mais desagradei-me...

Interrompe-se. Muda de ideias e decide-se pela inflexão do discurso:
Também não quero estar aqui com a conversa saudosista do “antigamente é que era bom”. Mas a verdade é que, nessa época, o jogador tinha o seu clube, e clube e jogador estavam pegados um ao outro. A camisola era uma coisa respeitável. Quase como uma outra bandeira. E o Benfica viveu o orgulho de só ter jogadores portugueses... Num tempo não muito distante. E agora o que é que acontece? Caiu-se num exagero. Onde estão hoje o Benfica, o Sporting, o F.C.Porto? O futebol não passa de um negócio. Desapareceu uma certa solidariedade de grupo. Isso fez-me desinteressar pelo futebol, mas também é certo que nunca fui um grande aficionado.

No dia em que a Academia tornou público o seu nome como vencedor do Nobel, um dos seus amigos de infância, quando lhe pediram para recordar alguma coisa de si, disse simplesmente: “Foi o primeiro miúdo do nosso tempo a ter uma bola de cauchu...”
Faz um gesto como para impedir-nos de continuar:
Você sabe que a nossa memória é a coisa mais suspeita que se possa imaginar. Ela é capaz de inventar coisas que não existiram e passar a acreditar nelas. Até acontece que eu nunca tive uma bola de cauchu. Lembra-me bem de andar por lá a dar os meus pontapés mas a bola não era minha.

O poeta T. S. Eliot, por acaso também ele Nobel lá pelos idos de 48, dizia que “o futebol é um elemento fundamental da cultura contemporânea”.
Que comentário lhe merece esta frase?
Mexe-se na cadeira e sorri:
O comentário que essa frase me merece é o de que nem sempre os poetas têm razão.

E continua, bem-disposto:
Essas coisas são sempre muito pessoais. E nada pior do que as citações dos escritores. Primeiro, porque correspondem a uma ideia pessoal; depois, porque as formulam como se fossem ideias universais. O futebol converteu-se num espetáculo e já nada tem praticamente de desporto. Apenas isso.

Deixemos então as frases dos outros e passemos para uma frase sua, retirada de uma entrevista concedida ao Jornal de Letras: “O êxito e o fracasso são coisas que têm que ver com o temperamento”. Acha que os campeões, os vencedores, são assim, fabricados por eles próprios, mesmo contra as circunstâncias?
Às vezes as circunstâncias desfazem as pessoas. Mas também é certo que as circunstâncias nos ajudam em momentos fundamentais das nossas vidas. Eu tenho de dizer que fui obrigado a lutar contra umas quantas circunstâncias. E, frequentemente, nem sequer estamos conscientes de que travamos uma batalha. Temos um objetivo e tentamos caminhar em direção a ele. E neste trabalho tão discreto que é de todos os dias acabamos por vencer essas circunstâncias sem que essa vitória se confunda com um grande acontecimento, pelo contrário, seja algo de absolutamente natural. Depois olhamos para trás e ficamos com a noção dos obstáculos que ultrapassámos.

Você é, neste momento, o rosto mais visível de um certo iberismo...
Eu não sou exatamente iberista...

É o autor do conceito do transiberismo, o que para a questão que lhe quero colocar vai dar ao mesmo. Quando se trata de um Campeonato do Mundo ou de uns Jogos Olímpicos, por quem torce: pelos portugueses, pelos ibéricos, pelos lusófonos?
Eu defendo que devemos sair deste pequeno quintal que é o nosso e pensarmos que estamos numa realidade maior que é a Península Ibérica. Mas também não é ficar por aí. Olhar para o outro lado do Atlântico, para a América, para a África. E esta recente cimeira Ibero-Americana fez-nos perceber que podemos esperar do futuro algumas coisas magníficas nesse domínio, logo veremos o quê. Quanto ao que me pergunta, enfim, eu continuo a ter uma forte costela patriótica. Agora se são, por exemplo, espanhóis a defrontar alemães, eu fico do lado dos espanhóis, naturalmente. O que também não significa muito, porque prefiro sempre aqueles que fazem o seu trabalho bem feito. E se uma boa equipa alemã joga com uma boa equipa portuguesa, vejo por vezes a minha preferência cair para aquele que está a jogar melhor, independentemente do patriotismo. Com uma exceção, em todo o caso: quando um pequeno joga com um muito grande, mesmo que jogue mal estou a favor do pequeno.

“Sou tão pessimista que acho que a Humanidade não tem remédio. Vamos de desastre em desastre e não aprendemos com os erros.” 
Quem escreve desta forma viveu obrigatoriamente um sem-número de desilusões. E, no entanto, o seu rosto pacificado, tranquilo, desmente-as. Fala por vezes baixo, devagar, como que para si próprio.
Mas as suas frases nunca perdem a fluência, apesar das pausas que sugerem os pontos parágrafos que não comparecem ao encontro das suas prosas.
Quando fala dos portugueses e da “sua capacidade de esperar que não é mais do que um desejo de adiar” não está , de algum modo, a explicar a razão da escassez dos nossos êxitos?
Talvez sim. Porque um dos nossos males é a dificuldade de metermos as mãos à obra. Quando decidimos que é preciso fazer alguma coisa – vamos pôr de parte acontecimentos excecionais como a Expo-98, que esses concentram os objetivos de toda a gente e, portanto, fazem-se, refiro-me ao trabalho do dia a dia – andamos demasiado. Alimentamos a ideia “se não temos hoje, amanhã haveremos de ter”. E se assim não fosse, talvez tivéssemos muitas coisas hoje. Não quero com isto dizer que devemos cair na obsessão de fazer tudo o possível no imediato. O dolce farniente tem os seus encantos, mas infelizmente tornou-se um mal nacional. E esta espécie de resignação marcou-nos muito. Com o tempo, as coisas mudaram. Nos dias de hoje vivemos um frenesim de nos comportarmos como se comportam os outros, que faz com que tenhamos perdido uma forma muito própria de viver e caído no dilema de não saber o que imitar e quem imitar. Andamos à procura de um modelo...

O que é estranho num povo antigo como o nosso.
Sim. O que é estranho num povo que vai para nove séculos de História. Parece-me que já deveríamos ter encontrado uma forma de sermos suficientemente independentes na descoberta dos nossos caminhos. Sujeitos a influências, claro está!, com uma certa permeabilidade, mas sem esta precipitação num processo de imitações sucessivas que me conduz à dúvida de não saber muito bem quem somos. E esse não é. como compreende, o caminho do sucesso.

Faz uma pausa, junta as pontas dos dedos, e conclui:
Tenho, sobretudo, esta sensação nada agradável de perceber que não temos um projeto nosso. Que povo é que nós temos? Ou já não temos nenhum? Estaremos prontos a diluir-nos em qualquer coisa?
Para muitos de nós, o passado que temos não interessa. E quem não tem passado não tem presente. E muito provavelmente não tem futuro.

Os portugueses não sabem ganhar ou não sabem perder?
Acho que as duas situações são verificáveis. Não sabem ganhar porque cada vez que ganham passam logo a dizer que são os melhores. E não percebem que tudo isso é transitório. Não sabem perder porque vão logo à procura de justificações. Não querem aceitar-se a si mesmos na relatividade dos êxitos e dos fracassos. Acho que há uma regra de vida, que obviamente não imponho a ninguém mas que guardo para mim: as vitórias e as derrotas são idênticas numa coisa: nem uma nem outra são definitivas. Era assim que deveríamos encará-las., tanto na vida como no desporto.

E usa um exemplo para reforçar a sua teoria:
Não faz sentido vivermos ainda hoje do êxito de um terceiro lugar no Mundial de 1996. Como também não faz sentido encararmos os momentos em que as coisas não nos correm bem como momentos de humilhação. Tenho a impressão de que dramatizamos isso por não sermos capazes de nos aperceber do real sentido dramático da existência noutras áreas. Quando lhe disse que atribuiria o Nobel do Desporto à Manuela Machado é porque encontro na sua competição com os outros a luta real que ela tem consigo própria. E isso causa-me a maior das admirações e dos respeitos. Quem luta contra os seus próprios limites é para mim um exemplo. Porque acho que toda a gente sabe mais do que imagina, e este saber de que falo não é o saber que se aprende nas escolas e pode mais do que imagina. Precisa é de exteriorizar aquilo que sabe mesmo que julgue que o que sabe não tem importância.

O José Saramago também foi, à sua maneira, um maratonista.
Talvez.

E de novo um sorriso desenha-se-lhe no rosto:
Porque vivi muito... e eu costumo dizer que se tivesse morrido aos 60 anos não teria ganho os prémios que ganhei. E porque fui trabalhando e fazendo as coisas em que acreditava. Claro que o Nobel não era um objetivo. O objetivo foi sempre o livro seguinte, sem saber onde é que eles me levariam. Tentando fazer continuamente melhor. Estamos no caminho e só quando chegamos ao fim dele é que fazemos uma pausa para pensar no que é que aconteceu. O António Machado dizia e com razão: “No hay camino, se hace camino al andar”. 

O caminho faz-se a andar.
Como as conversas.



quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Georges Duby - Historiador e sua influência na visão e análise do relato histórico (História do Cerco de Lisboa)

(Livro no mural existente na Fundação José Saramago)

José Saramago reconhece a influência de alguns historiadores, na forma como encara o relato histórico nas suas obras. 
Na entrevista a José Carlos de Vasconcelos (Jornal de Letras, 18/04/1989), aquando do lançamento da obra "História do Cerco de Lisboa", Saramago faz a seguinte alusão a este processo, também ele formativo, e presente na forma de relatar a visão dos acontecimentos passados.

"Algum historiador o influenciou?"
" Traduzi livros de Georges Duby, e um deles, O Tempo das Catedrais, fascinou-me. Aí pude ver como é tão fácil não distinguir o que chamamos ficção, e o que chamamos história. A conclusão, certa ou errada, a que cheguei, é que, em rigor, a história é uma ficção. Porque, sendo uma selecção de factos organizados de certa maneira para tornar o passado coerente, é também a construção de uma ficção."


“O tempo das catedrais” de Georges Duby traduzido por José Saramago para a Editorial Estampa.

Em 1978, a Editorial Estampa publica “O tempo das Catedrais. A Arte e a Sociedade, 980-1420″ de Georges Duby com a tradução de José Saramago. O livro viria a ser re-editado, em 1993, na colecção Nova História.


Pequena menção a Georges Duby na Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Georges_Duby)
"Georges Duby (7 de Outubro de 1919 - 3 de Dezembro de 1996) foi um historiador francês, especialista na Idade Média.
Deu início à sua carreira universitária em Lyon, no ano de 1949, tendo sido posteriormente membro da Academia Francesa e professor do Collège de France entre os anos de 1970 e 1992. Foi um especialista em história medieval, lançou mais de 70 livros e coordenou coleções importantes, como a História da vida privada."

Carlos Vaz Marques entrevista José Saramago no programa Pessoal e Transmissivel



«A morte serve para que possamos continuar a viver»

Em 2005 na TSF, no programa Pessoal e Transmissível, José Saramago falou sobre a morte e disse não acreditar que a obra que escreveu fosse imortal. A TSF recorda aqui as convicções  e confissões do prémio Nobel da Literatura 1998 que morreu hoje, aos 87 anos, na sua casa na ilha espanhola de Lanzarote.

Aqui o link para ouvir a entrevista na integra 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Referência a Benedetto Crosse - José Carlos de Vasconcelos entrevista Saramago

José Carlos de Vasconcelos entrevista José Saramago
Jornal de Letras - 18 de Abril de 1999

No momento em que seria lançado o livro "História do Cerco de Lisboa", foi realizada esta entrevista, de onde a menção a Benedetto Crosse. Quem foi e o que motivou a referência que se transcreve.

José Carlos de Vasconcelos, a propósito da obra carregada por uma profunda encenação histórica, que concorre em paralelo com a participação do revisor Raimundo Silva; questiona José Saramago sobre o estudo e referências na obra.

"O livro obrigou-o a alguma preparação histórica. Isso agrada-lhe?"
Agrada-me muito. E provavelmente cada vez mais. Cada vez melhor compreendo a verdade e significado extremo da célebre frase de Benedetto Crosse: «Toda a história é a história contemporânea»." 
in Conversas com Saramago, Jornal de Letras



Benedetto Croce (Pescasseroli, 25 de fevereiro de 1866 - Nápoles, 20 de novembro de 1952) foi um historiador, escritor, filósofo e político italiano. Os seus escritos giram em torno de um largo espectro temático, sobretudo estética e teoria/filosofia da história. É considerado uma das personalidades mais importantes do liberalismo italiano no século XX.
Croce nasceu em Pescasseroli, na região de Abruzzo, no seio de uma família rica e influente. A sua educação foi marcada por uma atmosfera fortemente religiosa, da qual o jovem Croce cedo se distanciaria. Em 1883, perdeu os pais, Pasquale e Luisa Sipari, assim como a irmã, Maria, todos mortos num terremoto que acometeu a vila de Casamicciola Terme, na ilha de Ísquia, onde a família passava férias. Nesta ocasião, o próprio Croce permaneceu soterrado por longo tempo, tendo corrido sério risco de morte. Após a fatalidade, ele herdou a fortuna da família, o que lhe permitiu viver em relativo conforto, e dedicar tempo à reflexão filosófica.
Na política, foi nomeado senador em 1910. Entre 1920-21 foi ministro da educação. Croce opôs-se ao governo fascista de Benito Mussolini, embora inicialmente o tivesse apoiado.

"Deste Mundo e do Outro" - Saramago e as fortes referências dos avós maternos



José Saramago assume desde sempre a complexidade e a influência dos seus avós maternos, Josefa da Conceição e Jerónimo Melrinho, na sua construção enquanto homem e guias nos seus tempos da juventude na Azinhaga.

No livro de crónicas, "Deste Mundo e do Outro", editado em 1971 pela Editora Arcádia, esta influência vem numa sentida referência aos avós. Sentimento e interrogação.

Na 3.º edição de 1986 - Editorial Caminho, páginas 27 a 31

"Carta para Josefa, minha avó»
"Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito. (...)
(...) Não sabes nada deste mundo. (...) És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. (...)
(...) Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. (...)
«O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!» É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua."

"O meu avô, também"
(...) "Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. (...)
(...) Só isto - e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo."

Este assunto é confortavelmente retratado com diversos episódios em "As Pequenas Memórias", mas aqui se vinca a importância da forte presença dos seus avós maternos.

Fernando Alves na crónica "Sinais" - A "Escritaria" em Penafiel - Out2009 dedicada a José Saramago

A "Escritaria" na cidade de Penafiel, em 2009 dedicada a José Saramago

Fernando Alves, na sua crónica diária "Sinais" deixou-nos esta memória para o futuro.

http://www.tsf.pt/paginainicial/AudioeVideo.aspx?content_id=1391490


http://www.escritaria.pt/

O "Escritaria" de Saramago
Apresentação [setembro 2009]
 
Depois do êxito da primeira edição, dedicado a Urbano Tavares Rodrigues, o "Escritaria em" volta a Penafiel e será dedicado a José Saramago.

Alberto Santos, presidente da Câmara Municipal de Penafiel, Manuel Andrade, administrador das Edições Cão Menor, António Castanheira, fundador da Escritaria, e Urbano Tavares Rodrigues, escritor|tema da edição que terminou, foram unânimes na escolha do nome que deveria suceder ao de Urbano e foi o próprio escritor quem formalizou o convite, telefonicamente, para Lanzarote.

O formato, que remonta já ao Praxis ou como fazemos o que fazemos de 2006 e cujo sucesso é bem visível pela apropriação que se vai notando pelo país, será mantido com as adapatações justificadas pela especificidade do convidado. O centro da cidade será novamente receptáculo das intervenções que constituem a exposição sobre José Saramago, um colóquio internacional reunirá algumas das personalidades mais relevantes no conhecimento do escritor, um videograma documental tornará evidentes alguns traços da construção da identidade de José Saramago, duas obras de arte em torno da obra do convidado - desta vez da responsabilidade de dois ateliers de arquitectura - passarão a integrar o património cultural de Penafiel, o teatro marcará presença dentro e fora de portas e o cinema chegará pelas mãos de Fernando Meirelles, que trará pessoalmente o seu Ensaio sobre a Cegueira, e por A maior Flor do Mundo, de Juan Pablo Etcheverry. A música poderá ser uma novidade com obras de Azio Corghi sobre textos de José Saramago.

As atribuições mantêm-se: o promotor e anfitrião do Escritaria em é a Câmara Municipal de Penafiel, salientando-se a manutenção do empenhamento pessoal do presidente Alberto Santos; a organização do colóquio e dos espectáculos é das Edições Cão Menor, que também será a editora nacional do DVD; a concepção das intervenções plásticas no espaço da cidade é nossa, com a coordenação gráfica do designer e ilustrador Rui Martins e, finalmente, a produção do videograma é também mais uma vez da escritaria.


terça-feira, 28 de outubro de 2014

"José e Pilar" o filme



Descrição retirada do mesmo link. 

"Um dia escrevi que tudo é autobiografia; que a vida de cada um de nós estamos contando enquanto fazemos e dizemos; nos gestos, na maneira como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto no chão. Queria eu dizer, então, que vivendo rodeado de sinais, nós próprios somos um sistema de sinais. Seja como for, que os leitores se tranquilizem: este Narciso que hoje se contempla na água, desfará, amanhã, com sua própria mão, a imagem que o contempla". - José Saramago

Difícil dizer qual dos dois é mais lindo, José Saramago ou sua companheira e fiel escudeira, a jornalista espanhola a jornalista Pilar Del Río.

Miguel Gonçalves Mendes dirige o filme a partir da coleta de 240 horas de material sobre o cotidiano de José e Pilar que, portanto, são os próprios atores de seus personagens.

O filme se desenvolve em torno da criação e lançamento do livro "A Viagem do Elefante", de Saramago.

Os quatro anos de filmagens resultaram em um filme inicial com 6 horas de duração, das quais Saramago pode assistir a uma versão com 3 horas, antes de morrer.

A edição do filme durou mais de um ano e meio.

Para convencer o casal a filmar, o diretor Miguel Gonçalves Mendes levou 6 meses.

O resultado é um filme surpreendente onde somos levados ao dinâmico e cultural universo de Saramago e Pilar, nos deparando com um relacionamento belíssimo de dois seres que fazem jus ao adjetivo "humanos".

Saramago, o comunista ateu que quando o vestiam com roupa de marca, pedia que arrancassem com a tesoura a etiqueta da Armani, nos presenteia com passagens belíssimas de sua vida, já perto dos 84 anos de idade, sempre ativa e produtiva.

Destaque para suas declarações sobre religião,após a leitura de um trecho de seu livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", onde Jesus clama, sobre seu pai "Homens, perdoai-lhe, por que ele não sabe o que faz": "É uma aldrabice, pá, uma aldrabice completa... Eu fui uma ou duas vezes à missa, quando tinha 6 anos, mas eu não... Enfim, aquilo não me convenceu nada, pá. E fui eu quem disse a minha mãe: 'não, eu não vou a isso...' E não fui... E Nunca mais... E não tive nenhuma crise religiosa, e não tenho medo da morte, não tenho medo inferno, não tenho medo, digamos, do castigo eterno pelos pecados... Que pecados? Pecados? O que é isso, o pecado, pá? Quem é que inventou o pecado? A partir do momento em que se inventa o pecado, o inventor passa a dispor de um instrumento de domínio sobre o outro, tremendo! E foi o que a igreja fez, e já não faz tanto, porque, coitados, já não têm nem metade do poder que tinham, é mais uma farsa, mais uma farsa trágica... Deus... Onde está? Antigamente, dizia-se: 'está no céu'. Mas, o céu não existe! Não há céu! Não há céu! O que é isso, pá, céu? Há o espaço. Há 13 mil milhões de anos-luz. Imagina, pá...
Os limites do universo se encontra há 13 mil e 700 milhões de anos-luz... Anos-luz! Onde está deus? Quem quiser crer, creia e acabou-se! Eu digo em alto e bom som, que não, enfim, para mim, não. E repara que com 83 anos já seria uma boa altura para começar a pensar no futuro, quer dizer, uma pessoa, durante a vida, pode fazer umas quantas tonterias, dizer umas quantas barbaridades a respeito do senhor deus, mas quando chega aos 83 tem de, deveria começara a ter um bocadinho de cuidado com o que diz. Mas isso não muda nada a realidade. A realidade continua a ser igual a de sempre: nascer, viver e morrer, e acabou. Mais nada. Que isso não aconteça. Espero morrer lúcido e de olhos abertos. Pelo menos gostaria, que fosse assim".

A força e o caráter de Pilar, se refletem bem no trecho do filme em que ela declara:
"A mim o que me parece é que a razão tem que prevalecer sobre a vontade. Isso parece o que há de mais frio e o que há de mais forte que se pode dizer, mas creio que somos racionais, e temos a obrigação de ser racionais e de não nos deixar levar, jamais, pelo instinto. Ou seja, recuso-me, recuso-me a chorar e a ficar insatisfeita e deprimida. "Ah, mas é que a depressão existe..." Sim, pois sim, mas tomamos uns comprimidos e vamos trabalhar, ponto! Sou a favor dos fármacos. Ouve, uma vida inteira sofrendo com dores quando há a Medicina, que nos ajuda, e vêm agora uns quantos gurus dizer: "Não... É que fazem mal!" Não, o que faz mal é passar mal! É preciso desdramatizar! Sobretudo nós, os privilegiados... Eu não posso estar e não posso me dar ao luxo de estar desesperada, nem sem esperança, nem triste, porque tenho tudo, e mais, tenho, inclusive, a força para combater, o que é o maior privilégio!"

"Já não estar" - tema do filme "José e Pilar" cantado por Camané

"Já não estar" - tema do filme "José e Pilar", 
música de José Mário Branco, letra de Manuela de Freitas e interpretado por Camané.

Voz: Camané
Composição: José Mário Branco
Letra: Manuela de Freitas
Guitarra e Arranjo: José Peixoto


Entrevista da RTP2 - Judite de Sousa entrevista José Saramago


José Saramago, Prémio Nobel da Literatura (entrevista a Judite de Sousa, 2/12/1998)


Referência ao homem, à humanidade, que vai até ao planeta longínquo de Marte mas não consegue erradicar os males que permanecem neste mundo.

Entrevista que antecede o discurso em Estocolmo 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sistema Planetário de Betelguese presente em «O Ano de 1993»


Sistema planetário de Betelgeuse vem mencionado de forma discreta, no livro poema "O Ano de 1993", e dado o enquadramento da menção, levou-me a tentar perceber onde se situa, como se descreve ou perceber uma pista para tão imprevista alusão.

"(...) Em vão recordava as letras em vão as desenhava ele próprio na memória
Eram riscos cegos na escuridão desenhos de Marte Mercúrio ou Plutão ou ainda a escrita do sistema planetário da Betelgeuse (...)"

O Ano de 1993
3.ª Edição 
Caminho

Via Fundação José Saramago

Editado pela primeira vez em 1975, a reedição da Caminho, vinte e dois anos depois, vem acompanhada pelos desenhos do pintor Rogério Ribeiro. São pequenas histórias a formarem uma só. Una e intacta. Poesia a lançar já pontes para a ficção. Sem rima, fraseada, falando do futuro da própria escrita do autor. Poemas de alerta, mas de esperança, também, apesar do desespero que reside no seu fundo ainda lírico e iniciático. "O interrogatório do homem que saiu de casa depois da hora de recolher começou há quinze dias e ainda não acabou / Os inquiridores fazem uma pergunta em cada sessenta minutos vinte e quatro por dia e exigem cinquenta e nove respostas diferentes para cada uma / É um método novo / Acreditam que é impossível não estar a resposta verdadeira entre as cinquenta e nove que foram dadas / E contam com a perspicácia do ordenador para descobrir qual delas seja e a sua ligação com as outras / (...) / O homem que saiu de casa depois da hora de recolher não dirá porque saiu / E os inquiridores não sabem que a verdade está na sexagésima resposta / Entretanto a tortura continua até que o médico declare / Não vale a pena."


Via WikiPédia 

Alpha Orionis (α Orionis) conhecida como Betelgeuse é uma estrela de brilho variável sendo a 10ª ou 12ª estrela mais brilhante no firmamento. É também a segunda estrela mais brilhante na constelação de Orion. Apesar de ter a designação α ("alpha") na Classificação de Bayer, ela não é mais brilhante que Rigel (β Orionis).

Betelgeuse é na verdade mais brilhante do que Rigel no comprimento de onda infravermelho, mas não nos comprimentos de onda visíveis.

Betelgeuse é uma estrela supergigante vermelha, e uma das maiores estrelas conhecidas, sendo de grande interesse para a astronomia. O diâmetro angular de Betelgeuse foi medido pela primeira vez em 1920-1921 por Michelson e Pease, sendo uma das cinco primeiras a serem medidas usando um interferómetro no telescópio de 100 polegadas do Monte Wilson. O seu diâmetro varia entre 500 e 900 vezes o do Sol. No diâmetro máximo, a estrela seria maior que a órbita de Saturno se colocada no lugar do Sol. Apesar de ser apenas 14 vezes mais massiva que o Sol, é cerca de algumas centenas de milhões de vezes maior em volume, como uma bola de futebol comparada a um grande estádio de futebol. A sua proximidade à Terra e o seu enorme tamanho fazem dela a estrela com o terceiro maior diâmetro angular vista da Terra [1], menor apenas que o Sol e R Doradus. É uma das 12 estrelas em que os telescópios atuais podem visualizar o seu disco real.

Supernova[editar | editar código-fonte]
Os astrónomos prevêem que Betelgeuse pode passar por uma supernova tipo II. No entanto, as opiniões estão divididas quanto ao momento em que isto deve ocorrer. Alguns sugerem que a variabilidade actual como um sinal de que já está na fase de queima de carbono do seu ciclo de vida, e deve sofrer uma explosão supernova aproximadamente nos próximos mil anos. Cépticos discordam com esse ponto de vista e afirmam que a estrela deve sobreviver muito mais tempo.

Há consenso de que tal supernova seria um evento astronómico espectacular, mas não seria uma ameaça para a vida na Terra, dada a enorme distância a que se encontra. Mas a estrela vai tornar-se pelo menos 10000 vezes mais brilhante, o que significa um brilho equivalente ao de uma Lua crescente. Entretanto alguns crêem que ela pode chegar ao brilho de uma Lua cheia (mv = -12.5). Esse fenómeno deve durar por alguns meses, parecendo uma pequena Lua cheia com a cor de uma lâmpada incandescente à noite e facilmente visível durante o dia. Após esse período a estrela vai apagar-se gradualmente até que após alguns meses ou anos desapareça complectamente e Orion perca o ombro direito.

domingo, 26 de outubro de 2014

Johann Sebastian Bach - Suite n.º 6 - Opus 1012 em Ré Maior - O Violoncelista em "As Intermitências da Morte»



(...) "De súbito, a orquestra calou-se, apenas se ouve o som de um violoncelo, chama-se a isto um solo, um modesto solo que não chegará a durar nem dois minutos, é como se as das forças que o xamã havia invocado se tivesse erguido uma voz, falando porventura em nome de todos aqueles que agora estão silenciosos, o próprio maestro está imóvel, olha aquele músico que deixou aberto numa cadeira o caderno com a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach, a suite que ele nunca tocará neste teatro, porque é apenas um violoncelista de orquestra, ainda que principal do seu naipe, não um daqueles famosos concertistas que percorrem o mundo inteiro (...)"

As Intermitências da Morte
Edição de 2005 - Caminho
Página 174



Bach : Solo Cello Suite, No. 6, in D Major, BWV 1012 : Prelude

Robert Schumann - Fantasia Opus 73 - O Violoncelista em "As Intermitências da Morte»



As Intermitências da Morte
Edição de 2005 - Caminho
Página 155

(...) «A morte seguiu pois pelo corredor até à primeira porta à direita de quem entra e por aí passou à sala de música, que outro nome não se vê que deva ser dado à divisão de uma casa onde se encontra um piano aberto e um violoncelo, um atril com as três peças da fantasia opus setenta e três de robert schumann, conforme a morte pôde ler graças a um candeeiro de iluminação pública cuja esmaecida luz alanrajada entrava pelas duas janelas (...)» 


Schumann Fantasiestücke Op 73
Gautier Capuçon cello 
Martha Argerich piano
Verbier Festival 2011

sábado, 25 de outubro de 2014

As origens e lugares de referência - Rio Almonda

O rio Almonda, vem mencionado na obra biográfica, "As Pequenas Memórias", onde José Saramago aborda as recordações de juventude, o contexto familiar e a vida social em Portugal, quer seja em Lisboa ou na Azinhaga.
Aqui, na terra dos seus avós maternos, corre o rio Almonda em direcção à sua junção com o rio Tejo.

Refêrência via Wikipédia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Almonda

"O Almonda é um rio português que nasce na Serra de Aire a 5 km a noroeste de Torres Novas, na vertente da Serra de Aire, perto de Almonda, a que deu o nome, e de Casais Martanes. No seu percurso de 30 quilómetros atravessa os municípios de Torres Novas e da Golegã onde desagua na margem direita do Tejo

O rio Almonda segue o seu curso desde a nascente situada em Moinho da Fonte, depois entre a Ribeira Branca e a Ribeira Ruiva, banha a povoação de Lapas, serpenteia a cidade de Torres Novas e desagua no rio Tejo, no sítio da Igreja Grande, no concelho da Golegã. No total, o seu percurso é de cerca de 30 quilómetros.

O rio é atravessado por mais de duas dezenas de pontes e teve importância decisiva no desenvolvimento agrícola e industrial do concelho de Torres Novas. Prova disso é o facto de ainda existirem ao longo do seu percurso (pelas diversas aldeias e até mesmo dentro da cidade de Torres Novas) antigos moinhos movidos pelas suas águas, embora grande parte deles já se encontrem em ruínas. Existe também dentro de Torres Novas uma pequena central hidroeléctrica, onde se produzia electricidade a partir das suas águas."




Rio Almonda. Lugar. Margens de rio, exploração e travessias várias, de actividade piscatória e rega dos campos de cultivo.
A referência é bastante presente no livro "As Pequenas Memórias". Logo no início, Saramago apresenta a desenvoltura de uma criança que se aventura pelos campos e margens do rio almonda. Menciona que o medo dos cães não o impede de se aventurar pelos campos fora e à inexistência de outras possibilidades para ocupar o tempo, a comunhão com a natureza fica demonstrada desde a infância. Este espírito desassossegado, mas de paz com a mãe natureza, depreendo, o acompanhará em toda a vida. Da Azinhaga até Tias em Lanzarote, existe no homem uma paz permanente com a natureza pura, que não raras vezes se revolta contra a ocupação bruta da industrialização. Para mim, e como eu o poderei afirmar com esta leviandade de narrador, a paz e felicidade que Saramago viveu ao conseguir com  muito custo físico, subir a montanha de terra vulcânica em Lanzarote, no meio de uma paisagem quase inóspita, representa a fidelidade com que o espírito da criança (do meio rural) sempre transportou até ao fim dos seus dias.
Seria Saramago, um humanista descontente com o homem?, com as suas fraquezas de consciência para com o legado da natureza e sua necessidade de a preservar? 
Não o podendo afirmar, posso acreditar que esta preocupação sempre esteve presente.

Página 18 e 19 da 1.ª edição - Caminho

"Então digo à minha avó: «Avó, vou dar por aí uma volta.» Ela diz «Vai, vai», mas não me recomenda que tenha cuidado, nesse tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam. Meto um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge, pego num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontro canino, e saio para o campo. Não tenho muito por onde escolher: ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos de rio já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim na direcção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paul do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso.» 

Humberto Werneck entrevista José Saramago para a Playboy Brasil - 1995

O mundo literário e o outro, aquele que poderei chamar de civil, sempre demonstrou muita curiosidade e respeito pelo homem - José de Sousa Saramago - que escrevia e pensava na forma de José Saramago.
Aqui se transcreve na integra a entrevista de Humberto Werneck, editor chefe da Playboy Brasil, realizada em Lanzarote, datada de 1995



Entrevista Aqui
http://umcadernoparasaramago.blogspot.pt/2010/06/o-cidadao-portugues-jose-de-sousa.html?m=1

O cidadão português José de Sousa Saramago é um daqueles casos nada comuns de alguém que, já na idade madura, deu uma guinada radical na vida. Vinte anos atrás, estava ele, cinqüentão, solidamente estabelecido em Lisboa e num segundo casamento; vivia de traduções e tinha atrás de si uma breve experiência como jornalista. Nas horas vagas, administrava uma discreta carreira literária, iniciada na juventude com o romance Terra do Pecado, interrompida em seguida por quase duas décadas e desdobrada, a partir de 1966, numa dezena de livros que não chegaram a fazer barulho, a maioria deles coletâneas de poemas e de escritos jornalísticos. Nada permitia supor que José Saramago viria a se tornar quem hoje é: às vésperas de completar (no mês que vem) 76 anos de idade, um romancista lido e admirado em todo o mundo, traduzido para 21 idiomas e insistentemente apontado, desde 1994, como um dos favoritos para ganhar Prêmio Nobel de Literatura, tradicionalmente anunciado no mês de outubro e que seria o primeiro concedido a um autor de língua portuguesa.

Pois foi aí, já quase sexagenário, que a vida de José Saramago - menino pobre que não teve um livro antes dos 19 anos e que na juventude trabalhou como mecânico de automóveis (embora não saiba dirigir) - se pôs a trepidar, num benfazejo terremoto que em pouco mais de uma década haveria de redesenhar a sua paisagem existencial. Aos 57 anos, para começar, ele finalmente decolou como escritor ao publicar o romance Levantado do Chão. Aos 64, encontrou o que acredita ser o seu definitivo amor em alguém 28 anos mais jovem, a jornalista sevilhana María del Pilar del Río Sánchez. Aos 70, transplantou-se das margens do Tejo para uma ressequida ilha vulcânica espanhola onde não corre um ribeirão sequer e toda a água tem que ser tirada do mar, Lanzarote, a mais oriental das sete Canárias, com 50 000 habitantes e 805 quilômetros quadrados.

Ali, numa casa que vem a ser a primeira e até agora única propriedade desse persistente militante comunista, foram escritos seus livros mais recentes, Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes, além dos diários intitulados Cadernos de Lanzarote, encorpando uma obra na qual já se destacavam os romances Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra e O Evangelho Segundo Jesus Cristo. No Brasil, onde o melhor de Saramago já foi publicado, apenas este último título vendeu 85 000 exemplares.

A virada na vida do escritor foi engatilhada de maneira acidental, em 1975, quando, demitido do cargo de diretor-adjunto do Diário de Notícias ele decidiu não procurar emprego, abrindo assim espaço para que a sua criação literária deslanchasse em regime de dedicação exclusiva.

José Saramago, que tem uma filha, Violante, bióloga, de seu primeiro casamento, e dois netos, Ana e Tiago, já era autor consagrado em 1992, quando o ateísmo contundente de O Evangelho Segundo Jesus Cristo desaguou num episódio de censura que acabou determinando a sua mudança para Lanzarote, onde se instalou em fevereiro de 1993. O editor sênior Humberto Werneck, de PLAYBOY, lá esteve para entrevistar o escritor e conta:

"Branca, com dois pavimentos, a casa de José Saramago se chama exatamente isso, 'A Casa', conforme se lê junto ao portão de entrada. Fica no número 3 da Rua Los Topes, numa esquina da minúscula cidade de Tías, mas pode ser que o visitante tenha dificuldade em encontrá-la, pois o dono de A Casa, tendo lido sobre a história do lugar, decidiu restabelecer a sua antiga denominação, hoje inteiramente esquecida, Las Tías de Fajardo.

"Os carteiros de Lanzarote já se conformaram com a esquisitice, e não é impossível que o mesmo acabe acontecendo com os demais lanzarotenhos, sobretudo se o ilustre forasteiro vier a ganhar o Prêmio Nobel. Já são provavelmente maioria os nativos capazes de reconhecer aquele senhor alto, desempenado e sobrancelhudo, com óculos grandes demais para o seu rosto e cabelos grisalhos que escasseiam no alto e abundam, um tanto alvoroçados, na parte de trás da cabeça. Saramago ganhou faz um ano o título de 'filho adotivo' da ilha e só não é 'o' escritor de Lanzarote porque lá vive o romancista espanhol Alberto Vásquez-Figueroa, com quem fez camaradagem.

"Reservado, porém afável, de pouco riso mas longe de merecer a fama de mal-humorado que o persegue, José Saramago acumula as características a princípio excludentes de homem a um tempo caseiro e viajador: duas vezes por mês, em média, ele abandona a paisagem lunar de Lanzarote para atender a compromissos profissionais, sempre em companhia de Pilar del Río, hoje a sua tradutora para o espanhol e revisora das antigas traduções.

"Quando está na ilha, o escritor pouco sai de sua casa, plantada num jardim atapetado de picón, cascalho fino de origem vulcânica de cor preta ou tijolo escuro. A vegetação esparsa inclui duas oliveiras que o escritor quis ter ali por serem as árvores de sua infância na Azinhaga, povoado da região portuguesa de Ribatejo onde nasceu, filho de pais camponeses muito pobres, e onde viveu até mudar-se para Lisboa, aos 2 anos de idade.

"Num dos cantos do jardim há uma piscina (coberta, por causa do vento forte) com 7 metros e meio de comprimento, que o escritor atravessa pelo menos trinta vezes todos os dias - uma das explicações para a excelente forma física em que se encontra a apenas quatro anos de tornar-se octogenário. O mesmo se diga, aliás, da bela e simpática Pilar del Río, que aos 47 anos, mãe de um rapaz de 21, Juan José, que mora com o pai em Sevilha, não aparenta mais que 35.

"Marido e mulher têm, cada qual, seu escritório, e o de Saramago, no segundo piso, deixa ver o mar. As edições portuguesas e estrangeiras de seus livros espremem-se numa estante com quatro prateleiras e bom metro e meio de comprimento. Numa fotografia, uma tabuleta em francês provoca o ateu empedernido: "Dieu te cherche" - Deus te procura. Nesse escritório (onde foram gravadas, em três rodadas, as 7 horas desta entrevista), usando um laptop Canon acoplado a um monitor Samsung, Saramago escreve pela manhã e no final da tarde a sua quota diária de literatura, nunca mais de duas páginas, ao som de Mozart, Bach ou Beethoven, e responde a algumas das cartas, cerca de 100, em média, que lhe chegam todos os meses de vários cantos do mundo.

"Depois do almoço, já embarcado no hábito espanhol da siesta, ele cochila ou apenas relaxa na sala, no andar térreo. Nesses momentos nunca lhe falta a companhia da fauna canina doméstica: o cão d'água português (espécie de poodle) Camões, a yorkshire Greta e o poodle Pepe. À noite, na cozinha, vai repetir-se um ritual: sentam-se os três diante de seu dono, que, faca na mão, distribui rodelas de banana. Pepe foi batizado pelo escritor na esperança de que não sobrasse para ele próprio esse apelido a que, na Espanha, praticamente todos os Josés se acham condenados. Camões assim se chama porque apareceu na casa no dia de 1995 em que Saramago ganhou o Prêmio Camões, concedido anualmente pelos governos de Lisboa e Brasília a um escritor de língua portuguesa e que já distinguiu os brasileiros Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz e Antonio Candido. Camões adora livros: comeu duas biografias do presidente sul-africano Nelson Mandela, em diferentes línguas, e ultimamente se dedicava a roer as bordas de um grosso álbum de pinturas de Goya.

"Ao contrário de outros autores lusitanos, Saramago exige que seus livros sejam publicados no Brasil exatamente como saíram em Portugal, sem concessões destinadas a facilitar o entendimento do leitor brasileiro. Na transcrição desta entrevista, PLAYBOY não chega a adotar a ortografia vigente em Lisboa, mas busca não abrasileirar a fala do escritor. Como, ó pá, ninguém é de ferro, algumas palavras ganharam 'tradução' entre colchetes."

Aos 70 anos, o senhor veio parar nesta ilha, com outra língua, outra cultura. É um exílio?

A palavra é demasiado dramática. Se estou aqui, isso se deve a uma decisão absurda, estúpida do governo [português] de então [chefiado pelo ex-primeiro ministro António Cavaco Silva], em 1992, quando um subsecretário [António Sousa Lara] de Estado da Cultura - imagine, da Cultura... - decidiu que um livro meu, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não podia ser apresentado como candidato ao Prêmio Literário Europeu, porque, segundo ele, ofendia as crenças religiosas do povo português. Fiquei bastante desgostoso, indignado - e foi nessa altura que a minha mulher me disse: "Por que nós não fazemos uma casa em Lanzarote?"

Por que Lanzarote?

Nós tínhamos estado aqui no ano anterior e gostamos muito. Mas quando minha mulher sugeriu fazermos a casa, reagi como seria natural: "Pilar, por favor..." Mas ao cabo de dois dias eu estava a dizer: "Essa idéia afinal de contas não é má..." São duas reações masculinas típicas. Quando a mulher diz ao marido: "E se nós fizéssemos isto assim, assim?", em geral ele responde: "Não, que idéia!" A segunda reação é dizer, 24 ou 48 horas depois, como quem condescende: "Olha que essa tua idéia afinal de contas não é tão má..."

Uma mudança como essa traz problemas de adaptação...

Sim, mas adapto-me muito facilmente a situações novas.

E é chegado a experiências tardias na vida, não?

Tenho que reconhecer que as coisas boas da minha vida aconteceram um pouco tarde. Quando publico o Memorial do Convento, em 1982, estou com 60 anos, e com 60 anos o escritor normalmente tem sua obra feita. Não é que não continue, mas a parte central da sua obra já está feita. Eu tinha alguns livros, mas é com o Memorial do Convento que tudo ganha outra força.

A sua estréia foi lá atrás, aos 25 anos.

Tenho um livro que foi reeditado agora - o meu editor teimou e a minha mulher ajudou nisso -, um romance que publiquei em 1947. Chama-se Terra do Pecado. Não está mal escrito, mas tem pouco a ver comigo hoje. Ainda escrevi um outro livrinho [o romance A Clarabóia], que está por aí, mas, enfim...

Não será publicado?

Em vida minha, não. Depois, se quiserem...

Do que se trata?

É a história de um prédio onde há seis inquilinos, e é como se por cima da escada houvesse uma clarabóia por onde o narrador vê o que se passa embaixo. Não está mal, mas não quero que publiquem.

Depois de Terra do Pecado o senhor ficou quase vinte anos sem escrever. O que houve?

Se eu tivesse tido êxito com aquele primeiro livro... Mas também seria difícil esperar que tivesse. Vivi sempre muito isolado, nunca pertenci a grupos literários, pelas próprias condições sociais em que vivia, sem grandes meios. Sou uma pessoa que não passou pela universidade, portanto não criou amigos nessa roda que se supõe ser de intelectuais. Vivi sempre assim, à margem.

A sua formação literária foi um pouco errática, não é?

Nem sequer errática [ri]... Eu diria condicionada pela minha situação material. Depois da instituição primária, entrei no liceu [ginásio], onde estive só dois anos. A família não podia levar-me até o fim do curso. A partir daí estive numa escola industrial e tirei o curso de serralharia e mecânica. E aos 17, 18 anos fui trabalhar numa oficina de automóveis, onde estive por dois anos.

O que fazia lá?

Desmontava e consertava motores, regulava válvulas, condicionava, mudava juntas de motores. Agora, o que há talvez de importante aí é que nesse curso industrial havia uma disciplina de Literatura, coisa um pouco estranha, e que me abriu o mundo da literatura.

O seu primeiro livro foi mal recebido?

Não. Mas é um livro entre muitos, não tem muita importância. Naquele impulso ainda escrevi A Clarabóia. Não sei se naquela altura tive consciência de que não tinha grandes coisas para dizer e que, portanto, não valia a pena. O melhor que me aconteceu foi ter uma vida suficientemente larga para que aquilo que tinha que chegar chegasse.

Dá a impressão de que o escritor tem um manancial que pode ser explorado seja na juventude, seja na idade madura. Pode-se dizer que está jorrando agora uma coisa que ficou represada?

Se esse manancial existia, pelo menos eu não tinha consciência dele. Nunca fiz uma lista de assuntos e disse: "Vou fazer tudo isso". Cada vez que acabo um livro, fico sem saber o que vai acontecer depois. Cheguei ao ponto a que cheguei dando um passo de cada vez, e esses passos não estavam planeados. Agora, isso tem outra vantagem: me dá uma sensação de... não quero dizer de juventude, mas de...

... vitalidade.

Talvez de uma capacidade imaginativa que pode não ser muito comum quando se chega à idade que tenho. Provavelmente é isso que me leva a dizer: "Que sorte eu tive, de tudo o que tinha a fazer de mais importante estar a fazê-lo nesta fase da minha vida". Porque se tivesse feito aos 50 anos, provavelmente agora não tinha mais nada para dizer. Se nós tivéssemos a certeza de ter uma vida longa, talvez valesse a pena guardar para a parte final dela aquilo que temos realmente para fazer. É a circunstância em que nós nos achamos que nos obriga a decidir, e há dois momentos importantíssimos na minha vida. Um é o aparecimento da Pilar. Foi um mundo novo que se abriu. O outro foi em 1975, quando era diretor-adjunto do Diário de Notícias e, por causa de um movimento que se pode chamar de contragolpe [político], fui posto na rua.

O que foi que houve?

No dia 25 de novembro de 1975 há, de uma parte dos militares, uma intervenção que suspende o curso da revolução [a chamada "Revolução dos Cravos", que a 25 de abril de 1974 pôs fim a 48 anos de ditadura salazarista] tal como ela se vinha desenvolvendo e que põe um travão àquilo que estava a ser o movimento popular. Foi o primeiro sinal de que Portugal iria entrar na "normalidade". O jornal pertencia ao Estado e os responsáveis, então, demitem a redação e a administração. E aí é que tomo a decisão de não procurar trabalho. Tinha muitos inimigos e não era fácil que fosse encontrar trabalho. Mas nem sequer tentei.

Inimigos no mundo jornalístico ou no mundo das letras?

Inimigo nas letras eu tenho é agora. Naquela altura eu não era ninguém.

O senhor se considerava um jornalista ou um escritor?

Nunca me considerei um jornalista. Porque entrei nos jornais sempre pela porta da administração, nunca pela porta da redação. Nunca fiz uma entrevista, uma reportagem, nunca escrevi uma notícia. Também é certo que não me considerava tão escritor assim, porque aquilo que tinha feito não me dava um estatuto de escritor. No fundo, era apenas alguém que estava à espera de que as pedras do puzzle do destino - supondo-se que haja destino, não creio que haja - se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta: "Não vou procurar trabalho". Tinha uma idéia vaga, queria escrever um livro sobre a vida dos camponeses. Comecei a pensar o que faria sobre o lugar onde nasci, mas as circunstâncias me levaram para o Alentejo [região a leste de Lisboa]. Fui para lá em 1976, fiquei semanas ouvindo pessoas, tomando notas, e isso veio a dar no livro Levantado do Chão, que se publicou em 1980.

O que pretendia quando começou a escrever? Fama? Dinheiro?

Eu não queria nada. Queria apenas escrever. E quanto a isso de querer ser rico, eu nem agora penso em ser rico.

O senhor não está rico?

Não. Ao olhar para estas paredes, diga: "Estão feitas com livros". Não tenho bens de outra natureza. Se quisesse ser rico, tinha permitido que se adaptasse o Memorial do Convento a uma novela brasileira.

Houve uma proposta?

A [falecida atriz] Dina Sfat, em Lisboa, disse-me: "Queremos fazer o Memorial do Convento". Eu disse nessa altura: "Não tenho qualquer razão para querer ser rico". Evidentemente que se dirá hoje: "Ah, mas você vive bem". Vivo relativamente bem. Mas isso não é como resultado de um projeto para enriquecer.

O senhor recusou a proposta de Dina Sfat mas aceitou outra, para adaptação cinematográfica de A Jangada de Pedra.

Esse foi um caso em que eu cedi. Mas não cedi a nada senão à simpatia da própria pessoa [a professora húngara Yvette Biró, da Universidade de Nova York]. Ela mostrou um interesse tão grande, de uma forma tão inteligente... O guião [roteiro] está feito, ela está à procura de um produtor, parece que está bastante adiantado - mas a verdade é que não dou seguimento a nada, como se no fundo quisesse que tudo isso abortasse. Há outras situações, como, por exemplo, a que se refere ao Ensaio sobre a Cegueira. Oito produtoras norte-americanas e uma inglesa estão a ler o livro. Já disse ao meu agente: "Deixa-os lá fazer propostas, mas não será adaptado o livro".

Nem se for uma proposta extremamente tentadora?

É preciso pensar sobre o que produtores norte-americanos fariam de um livro como esse.

O que eles fariam?

Aproveitariam o que no livro há de mais exterior, que é a violência e o sexo. E aquilo que é importante, a interrogação sobre como é que nós nos comportamos, que uso fazemos da nossa razão, que cegueira nossa é essa que não é dos olhos mas do espírito, que relações humanas são essas a que chamamos humanas e que de humanas têm tão pouco. A lição que o livro pretende dar desapareceria completamente.

Mesmo nas mãos de um cineasta sensível, um Antonioni?

Bom, há dois ou três nomes que provavelmente me fariam pensar duas vezes. A verdade é que os grandes realizadores [diretores] desapareceram. Os realizadores, hoje, são meros funcionários que fazem aquilo que os produtores mandam. Costumo resolver isso dizendo que não quero ver a cara das minhas personagens. Pois se nem eu as descrevo...

Mas o senhor deve ter imagens na cabeça quando escreve.

Não tenho ninguém na cabeça. Sento-me diante do computador com a idéia de uma história que quero contar, mas não necessito inspirar-me em figuras reais.

É verdade que todos os seus livros partiram de um título?

Foi assim praticamente com todos. Foram títulos dados, não sei por quem, não sei por quê. O Ano da Morte de Ricardo Reis nasceu em Berlim. Eu tinha ido aí com uns quantos escritores e num fim de tarde, cansado, deixo-me cair na cama - e nesse momento caem-me do teto, quase, estas palavras: "O ano da morte de Ricardo Reis".

E O Evangelho Segundo Jesus Cristo?

Esse nasceu de uma ilusão de óptica, em Sevilha. Atravessando uma rua na direção de um quiosque [banca] de jornais e revistas, naquele conjunto de títulos e manchetes pareceu-me ler "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Continuei a andar, depois parei e disse: "Isso não pode ser" - e voltei atrás. De fato, não havia nem evangelho, nem Jesus nem Cristo. Se eu tivesse uma boa visão, se não fosse míope, provavelmente esse livro não existiria. O Ensaio sobre a Cegueira nasce num restaurante. Estou sentado, à espera de que me sirvam, e nesse momento, a propósito de nada, penso: "E se fôssemos todos cegos?"

É verdade que Todos os Nomes nasceu no Brasil?

Nasceu quando fui receber o Prêmio Camões [em janeiro de 1996]. O avião já estava descendo em direção ao aeroporto de Brasília - e de repente passa-me pela cabeça isto: "todos os nomes". Nada disso é definido, aparece como idéias vagas que passam, e algumas delas foram para mim tão claras, ou pelo menos tão insinuantes, que me permitiram dizer: "Isto significa qualquer coisa". Custa trabalho encontrar, depois, um caminho para chegar aonde eu quero. Todos os Nomes, por exemplo, foi bastante complicado e provavelmente não existiria se não tivesse coincidido com a procura dos dados da vida e da morte do meu irmão [Francisco de Sousa]. Eu queria saber as circunstâncias da breve vida desse meu irmão, tem que ver com um livro para o qual tenho já muito material recolhido, que é uma autobiografia...

O Livro das Tentações?

Sim. Uma autobiografia que vai só até os 14 anos.

Não é curioso o senhor ter começado pelo pecado ­ Terra do Pecado - para cinqüenta anos depois chegar à tentação?

Não, mas são outras tentações. Se é uma autobiografia que vai até os meus 14 anos, que tentações podem ser essas? Não as tentações da carne, nem as do poder, da glória, não. Nasce uma criança, e o mundo todo, que está aí para ser conhecido, é como uma tentação. Ora bem, esse irmão mais velho morreu com 4 anos quando eu tinha 2. Se vou escrever um livro sobre a minha vida, tenho que falar nele. Não sabia praticamente nada dele, então pedi um certificado de nascimento - e aí é que começam as surpresas: a data da morte não está lá. Do ponto de vista burocrático, meu irmão está vivo...

Para quem não acredita na vida eterna, hein?

Realmente, não acredito na vida eterna, embora vá inventando formas de dar-lhe alguma eternidade à vida. Quando invento [em Todos os Nomes] uma conservatória [arquivo do Registro Civil] onde estão todos os nomes e um cemitério onde estarão todos os mortos, no fundo é uma forma de dar eternidade àquilo que não é eterno, ou pelo menos dar-lhe permanência. Se não fosse essa história do meu irmão, talvez escrevesse um livro chamado Todos os Nomes, mas seria outro totalmente, porque a minha busca dos dados referentes a ele é que me leva, no romance, a dar numa conservatória. Parece haver uma espécie de predestinação em tudo aquilo que faço. Há coisas que acontecem e que suscitam outras idéias, portanto é tudo uma questão de estar com atenção ao modo como essas idéias se desenvolvem. Algumas delas não têm saída, mas há outras que encontram seu próprio caminho. Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações...