Depois de "conviver" com a obra de José Saramago, importa-me saber alguns detalhes sobre as origens e casualidade à volta do processo criativo.
Sendo ideias que ocorrem, como no "Ensaio sobre a Cegueira" num restaurante na Madragoa, num escaparate de jornais em Espanha, ou na visita à imensidão do "calhau" do Convento de Mafra.
Se não é importante para a obra, não ajuda à sua interpretação, porém é fundamental para se conhecer o processo criativo e construtivo que o romancista referencia.
(...) Memorial do Convento, romance que nasceu duma circunstância fortuita que passo a contar em meia dúzia de palavras. Um dia, estando em Mafra com algumas pessoas contemplando o Convento, pronunciei em voz alta: «Gostaria um dia de pôr isto num romance». Provavelmente, se não as tivesse dito em voz alta, se simplesmente o tivesse pensado e permanecido em silêncio, a própria dimensão da tarefa me haveria intimidado tanto que talvez não tivesse sido capaz de escrever o livro. Aconteceu que, por pronunciar em voz alta aquilo que tinha pensado, em senti obrigado perante as pessoas que me tinham ouvido, e que inevitavelmente não deixariam de perguntar-me depois como levava o livro sobre o Convento... Devo aclarar que a ideia de escrever sobre o Convento de Mafra foi posterior à ideia de "Ano da Morte de Ricardo Reis", no entanto, "Memorial do Convento" foi publicado em Portugal em 1982 e o "Ano da Morte de Ricardo Reis" em 1984. A explicação é simples: se enfrentar-me ao Convento de Mafra me pareceu uma ideia tremendamente arriscada, tocar a figura de Ricardo Reis, que é a mesma coisa que dizer Fernando Pessoa, era então o cúmulo da ousadia. Senti tal receio de provocar as iras e os desdéns dos eruditos pessoanos, eu que não diplomas, nem atributos académicos, nem méritos conhecidos ou por conhecer, que disse para mim mesmo, não como o outro «Afasta de mim esse cálice», mas sim «Afasta de mim essa tentação». Por isso o "Memorial do Convento" foi escrito antes, como se a tarefa não fosse, coisa que acabei por saber depois, muitíssimo mais árdua e difícil que a de descrever o que sucedeu no ano em que morreu Ricardo Reis... (...)
A Estátua e a Pedra
Fundação José Saramago
Páginas 23 e 24
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