Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Crónica de Inês Pedrosa - Agosto de 2010

"A Alegria de Saramago"


Uma das grandes qualidades de José Saramago - morto aos 87 anos em 18 de junho passado - era o de nunca ter sofrido daquela doença que o crítico americano Harold Bloom definia como "a angústia da influência". Vivia as obras alheias - de há quinhentos anos ou de hoje - com o genuíno orgulho de quem, acima de tudo, se identifica com a grandeza das coisas belas. Se sofria de alguma coisa, era da alegria da influência. Como diria o professor e escritor português Eduardo Prado Coelho, não tinha medo de gostar.
Começo esta memória projetiva de Saramago sob o signo da alegria, porque estou cansada das recorrentes acusações de pessimismo que lhe foram sendo feitas. Muitas e muitas vezes lhe perguntavam porque se indignava tanto, porque fazia questão de futurar em negativo, quando a vida se mostrava tão afável com ele. Saramago respondia desabridamente a estas provocações, porque não confundia a sua felicidade com a infelicidade de grande parte do mundo à sua volta. Possuía, em altíssimo grau, aquilo a que os cristãos chamam compaixão — capacidade de partilhar a paixão dos outros.
Também isso fez dele um escritor universal. Ao velho postulado segundo o qual a literatura não se faz com bons sentimentos, poderia responder: nem com sentimentos ruins. Sobretudo, a literatura não se faz com o umbigo, mas com as tripas - e ele sabia como ninguém expôr as tripas do mundo. Há muito de "instalação", no sentido plástico e contemporâneo do termo, nas alegorias que são o motor dos seus romances. Muito de "performance", também; o seu discurso é uma intersecção vibrante, torrencial, de vozes eruditas e populares.
Aquilo que parece, como tantas vezes é dito, "uma escrita difícil", torna-se transparente palavra-em-ação, quando lido em voz alta. Utilizou a vírgula como marca de democratização da palavra: no barroco arrojado de Saramago, as vozes menores habitam o mesmo espaço das vozes maiores. Os seus romances históricos são futuristas, porque proféticos e protagonizados por personagens da arraia-miúda; os seus romances futuristas são históricos, porque desenvolvem tragédias anunciadas. A sua é uma escrita de herança, como era a do Padre António Vieira, um dos seus grandes modelos - na escrita, e não só. Como Vieira, Saramago foi revolucionário e conservador, feroz e terno, um vendaval de lucidez e assombro. Gostava de gostar, sim - mas também de não gostar.
Extremamente delicado no trato, não era um homem de contenções, e menos ainda de mesuras. O professor Eduardo Lourenço escrevia, no dia seguinte à sua morte: "Aparece tarde no horizonte da ficção portuguesa, quando já ninguém o esperava, provavelmente nem ele. E isso é já em si um paradoxo e sobretudo um milagre cultural. À sua maneira, era uma versão nossa da Gata Borralheira."
Depois de consagrado Cinderelo, este Gato Borralheiro dedicou-se a levantar do chão a gata lamurienta e pobrezinha que a cultura portuguesa se acostumou a ser, apesar de possuir um armário cheio de fadas e trajes sumtuososos. As suas primeiras declarações depois da notícia do Prêmio Nobel, em 1998, foram de exaltação da literatura de expressão portuguesa, de Luís de Camões a Jorge Amado e Sophia de Mello Breyner. E deu o seu nome a um prêmio para jovens escritores - prêmio que que foi concedido a Paulo José Miranda, José Luís Peixoto, Adriana Lisboa, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe e, nesta edição, João Tordo. O depoimento da escritora Hélia Correia ao jornal Público é eloquente: "Que tenho um pensamento de triunfo é o que eu gostaria de explicar. Porque há aqui triunfo: a plenitude de um cidadão inteiramente dedicado à sua polis e aos seus contemporâneos. E a plenitude de um 'poeta', daquele que faz obra e é por ela tornado glorioso".
É nessa dimensão de exemplo que a ideia de uma "geração Saramago" pode fazer sentido. As parábolas alegóricas que são a matéria e o ato da ficção saramaguiana funcionam como sonhos instigantes, um genuíno cinema da imaginação. A constante defesa do escritor em relação à transposição para o cinema real - em particular o hollywoodesco - dos seus livros é, em si mesma, outra parábola exemplar. Permitiu apenas um filme, a um particular cineasta, o brasileiro Fernando Meirelles (que filmou o meu Saramago favorito, Ensaio sobre a Cegueira).
Em nenhum dos jovens escritores laureados com o Prêmio José Saramago se sente sequer uma nota da música do mestre - mas todos eles confessam a sua admiração diante do poder imagético e da energia verbal dessa obra. Saramago é difícil de copiar; o seu trajeto ensina precisamente a não temer as influências - e , sobretudo, a não nos vergarmos a elas. Ensina-nos também a não termos pressa e a não nos deixarmos encandear pelas sereias do sucesso - e esse é um ensinamento precioso, nestes tempos em que a literatura facilmente se confunde com a indústria da moda.
Creio que a felicidade que teve a coragem de procurar e alimentar na sua vida pessoal contribuiu para que o seu espírito crescesse em liberdade, inquietação e generosidade. Respeitou o neorrealismo dos seus camaradas políticos mas criou uma voz única - clássica, barroca, cubista. Fez o mesmo com a sua cabeça e a sua existência - largou a pele da ortodoxia sem rejeitar as suas origens nem abandonar os seus ideais. Os livros que nos deixa são feitos de tudo isto - e do riso de um homem que morreu de bem consigo e com a vida. Coisa rara.

Inês Pedrosa

1 de Agosto de 2010

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