"Mais uma obrigação cumprida à última hora, como em tantas outras ocasiões tem sucedido: desta vez, as palavras com que irei agradecer ao presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, a entrega do Prémio Luís de Camões. Em casos destes, as conveniências aconselham um discurso «politicamente correcto», sem surpresas, um discurso que cumpra o horário, pare em todas as estações, e sobretudo não descarrile. Pensei, contudo, que uma viagem tão longa e um acto previsivelmente tão solene mereciam um grãozinho de fantasia irreverente - e a oração saiu assim:
«Senhor Presidente, permitir-me-á que reserve para o fim as palavras formais de agradecimento, não porque elas não sejam devidas já, mas porque terei de agradecer-lhe, nessa altura, por esperançosa antecipação, muitíssimo mais (imagine!) que a honra que nos deu, a minha Mulher e a mim, ao convidar-nos a vir ao Brasil, eu, para receber das suas mãos o Prémio Luís de Camões, ela, porque aonde vai um, vai o outro.
«Desde que cheguei à idade do entendimento, ando a ouvir dizer, com encorajadora insistência, que Brasil e Portugal são dois países irmãos, de sangues cruzados e linfas misturadas, e muita história de ida e volta. Quando aqui há uns anos demos por que a pena inconstante e vária de Fernando Pessoa tinha escrito aquilo de ser a pátria dele a língua portuguesa, e, portanto, por extensão, a de todos nós, acredito que os mais idealistas desta costa e da outra, das africanas também, terão pensado que se encontrava ali a chave mágica, graças à qual acederíamos a possibilidades mais fraternas e frutuosas de encontro e de diálogo. Se a língua portuguesa era realmente pátria, então era a pátria de quantos pensavam, falavam e escreviam português, logo, afinidade de espírito e sensibilidade, bandeira e pregão de todos. Se algo faltasse ainda a essa nova pátria para ser pátria geral, que não desesperássemos, porque o tempo resolveria os problemas, e todo o mais nos havia de vir por acréscimo. Entretanto, trataríamos de convencer-nos, a nós próprios e às gerações, repetindo, até à náusea, que a nossa pátria é mesmo a língua portuguesa. Pobre e sofredora pátria essa, digo eu, tão mal ensinada, tão real aprendida, inçada grotescamente de estrangeirismos inúteis, instrumento que já parece em risco de perder a necessidade e a serventia!
«Talvez que uma língua partilhada, a nossa ou outra qualquer, com Pessoa ou sem Pessoa para proclamá-lo, possa vir a constituir-se, de facto, em uma certa forma de pátria. Mas, então, aquilo que estivesse a faltar-lhe para ser pátria suficiente, não só nunca lhe viria por simples acréscimo como seria isso, precisamente, o que iria dar-lhe o verdadeiro sentido. Di-lo-ei em palavras directas e sem retórica: interesses comuns, objectivos comuns, trabalho em comum. Os nossos registos históricos de nascimento continuam a demonstrar que somos parentes, mas as páginas das respectivas biografias colectivas estão cheias de mal-entendidos, de indiferenças, de mútuas desqualificações, de mesquinhos egoísmos, de muita conversa e pouca obra.
«Senhor Presidente, não creio que, ao convidar-me a vir ao Brasil receber o Prémio Luís de Camões, a sua intenção tenha sido apenas a de estabelecer, diplomaticamente, um princípio de alternância que, em verdade, já estava tardando. Quero antes pensar que este acto solene significa, no seu espírito, o primeiro movimento de uma mudança de estilo e de acção nas relações culturais entre os países a que chamamos de língua oficial portuguesa. Quero pensar que, num futuro próximo, já que não poderá ser imediato, todos esses países - Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal -, consoante as disponibilidades humanas e financeiras de cada um, possam elaborar e pôr em funcionamento um plano de trabalho conjunto, atento, naturalmente, às circunstâncias e exigências nacionais, mas visando, com um espírito generoso e aberto, a preservação equilibrada e a difusão eficaz da língua portuguesa no mundo, mas também, e sobretudo, no próprio interior dos países que a falam, os nossos.
«Era nisto que eu pensava, Senhor Presidente, quando comecei por dizer que teria de agradecer-lhe, por antecipação, muito mais que a honra de receber das suas mãos o Prémio Luís de Camões. Como escritor, como cidadão pedestre, peço-lhe que toque o alarme, e que ele se ouça por cima dos mares e das fronteiras. Afinal, talvez Fernando Pessoa tenha tido razão antes de tempo: foram tantas as coisas que ele anunciou para o futuro, que bem pode ser fosse esta uma delas. E não necessito lembrar que nós, os que falamos português, estamos a ser, neste momento, precisamente, um dos futuros de Pessoa...
«Senhor Presidente, chegou a vez dos outros agradecimentos. Que vão resumir-se, por a mais não poder alcançar a minha eloquência, em cinco palavras: obriga-do, de todo o coração.»
Não imagino como irá ser recebida em Brasília uma prosa assim. Mas desejaria que, conhecida ela, nunca mais os políticos de cá e de lá nos azoinassem os ouvidos com o nariz-de-cera pessoano de que a nossa pátria é a língua portuguesa... E se o que escrevi não merece tanta consideração, então que se dêem ao trabalho de ler o que realmente se encontra no Livro do Desassossego:
«Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentido patriotico. Minha pátria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
«Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m'a do seu vero manto regio, pela qual é senhora e rainha.»
Se não me engano na interpretação, a única coisa de que daqui se poderá concluir é que Fernando Pessoa estaria hoje contra o acordo ortográfico...
in, "Cadernos de Lanzarote - Diário IV"
Caminho, páginas 31 a 34 (26/01/1996)
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