Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 29 de novembro de 2014

Joseph Haydn "As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz" - José Saramago e Raimon Panikkar elaboraram as "palavras"

"Colaboração de José Saramago, Jordi Savall e Raimon Panikkar a partir da música de Joseph Haydn.
Em 2007, a editora discográfica catalã AliaVox editou a gravação de “As Sete Últimas Palavras de Cristo“ de Joseph Haydn pela Orquestra Le Concert des Nations, sob a direcção do maestro e compositor Jordi Savall e acompanhado pelos textos originais de José Saramago e Raimon Panikkar.
O desafio havia sido proposto por Savall a Saramago uns anos antes e, apesar de “ambos concordarem que as palavras [que expliquem a música de Haydn] não eram necessárias”, concordaram também que deveriam sê-lo, conforme relata Pilar del Río. Saramago dedicou-se a um árduo trabalho de pesquisa, já iniciado aquando de O Evangelho segundo Jesus Cristo. No final, “escreveu sobre cada uma delas [as palavras de Cristo na cruz], não para explicar a música mas para acrescentar ao seu Evangelho as páginas que faltavam”.
Passados mais de duzentos anos desde a sua criação, uma encomenda especial feita a Haydn nos começos de 1786, “pareceu-nos apropriado dar esta responsabilidade a dois grandes mestres do pensamento espiritual e humanístico contemporâneo: Raimon Panikkar e José Saramago complementam as breves citações do texto evangélico com uns textos e comentários que reflectem as suas profundas convicções espirituais e humanísticas”, justifica Jordi Savall no texto introdutório do CD."

Via Fundação José Saramago, pode ser consultado, aqui

"A 19 de Junho de 2011, o Ministério da Cultura e a Fundação José Saramago juntaram-se para realizar um desejo antigo de José Saramago em assistir à apresentação deste trabalho na cidade de Lisboa. Como refere Gabriela Canavilhas, então Ministra da Cultura, “Querendo assinalar o aniversário da morte do nosso Prémio Nobel da Literatura, com a cumplicidade de Pilar del Río, o Ministério da Cultura apostou na realização deste desejo silencioso de Saramago, prestando-lhe justíssimo tributo, glorificando a palavra e a música, no concerto dos grandes génios que são Saramago e Haydn”.
O espectáculo ocorreu no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, com a concepção de cena de Teresa Villaverde e interpretação da Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo maestro Moritz Gnann."

"As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de José Saramago"

"Palavra Primeira
Deus, Pai, Senhor, aqui me tens. Aqui me tens, finalmente, neste monte escalvado a que chamam Gólgota e aonde, passo a passo, vieste encaminhando a minha vida a fim de que todas as profecias fossem cumpridas. Sou o da cruz alta, a que está ao centro, e os homens que me fazem companhia, um de cada lado, são dois ladrões vulgares, daqueles que se contentam com roubar pouco, que se fossem dos que roubam muito de certeza não viriam aqui crucificados. O que está à minha direita protesta que não quer morrer, grita como um doido furioso, dá arrancos com o corpo como se pretendesse arrancar a cruz do chão e fugir com ela às costas, ao outro já o vejo resignado, tem a cabeça descaída, apenas geme. Penso que terei de lhe dizer alguma coisa que o console antes que isto se acabe. O bom que tem este lugar para os condenados é ser Jerusalém a última imagem que levam da vida. Não estamos sós. Entre os soldados romanos, os doutores da lei, os chefes dos sacerdotes, os anciãos, e a gente comum que acudiu ao espectáculo, distingo, embora mal porque as dores me estão nublando os olhos, minha mãe com algumas mulheres, e também, sim, está também Maria Madalena. E está João, mas aos outros não os vejo, terão fugido. À morte deveria assistir-se em silêncio, não este clamor de insultos, esta gritaria, este ódio insensato, estas palavras de escárnio: “Salva-te a ti mesmo se és o rei dos judeus, lá está aquele que deitava abaixo o templo e tornava a reconstruí-lo em três dias, que desça agora da cruz para nós vermos e acreditarmos nele”. Deus, Pai, Senhor, era isto necessário? Não te bastava a simples morte? Já que terei de perder a vida, perdoa-lhes tu o alvoroto, porque não sabem o que fazem. E eu? Virei a saber o que fiz no mundo? E tu, Deus, Pai, Senhor, tens a certeza de que tudo o que fizeste foi bem feito?

Palavra Segunda
Deus, Pai, Senhor, não sei como o poderei confessar, tão confundido e humilhado sinto o meu espírito. Compadecido do sofrimento do ladrão manso, não encontrei nada melhor para o consolar que prometer-lhe o paraíso. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, foram as minhas formais palavras. Mas logo me perguntei se a soberba, ou o orgulho, ou a vaidade, foi o que me levou a prometer algo que não estava em meu poder dar. Antes, numa das suas fúrias, o ladrão bravo tinha-me invectivado: “Então não és o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós!” Mas o ladrão manso repreendeu-o com estas justas palavras, em verdade inesperadas em pessoa da sua condição: “Não tens temor a Deus, tu que estás a sofrer a mesma condenação? Nós estamos aqui a pagar o justo castigo pelos actos que temos praticado, mas este não fez nada de mal”. E foi aí, Deus, Pai, Senhor, que caí em tentação: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, disse. Como pude eu esquecer-me do Juízo Universal que, esse sim, há-de separar o trigo do joio, o bom do mau, o virtuoso do pecador? Como pude esquecer o que disse o profeta: “Eu, o Senhor, penetro no íntimo do homem, e examino o seu coração, e a cada um dou segundo o seu procedimento.”? De todo modo, sou escravo da minha promessa, este homem irá comigo, comigo se apresentará à tua porta, e tu, Deus, Pai, Senhor, se quiseres receber-me a mim, terás também de recebê-lo a ele, porque eu, sozinho, não entrarei. Honra a promessa que fiz, já que neste suplício me desonraste.

Palavra Terceira
Deus, Pai, Senhor, quando, para castigar a prosápia dos homens que estavam levantando aquela torre com a intenção de chegar ao céu, lhes desordenaste a linguagem, talvez não tenhas pensado em todas as consequências do acto a que foste movido por uma ira semelhante à do dono da vinha quando dá por que os meliantes se dispõem a assaltá-la. Talvez este pensamento, na aparência fora de lugar, seja fruto do delírio, da angústia e das terríveis dores que me trespassam, mas, nesta hora última da minha passagem pela terra, não estaria bem que entre pai e filho ficassem coisas caladas. Aquela mulher que além vês, entre João e Maria Madalena, é minha mãe, tu o saberás melhor que ninguém. Nunca vi que lhe tivesses dado atenção em todos estes anos, mas não é disso que quero falar. O meu pensamento é outro. Quando confundiste a linguagem dos homens, houve palavras que se perderam, outras que tomaram caminhos desviados, outras que deixaram de pertencer a quem, tempos atrás, havia sido seu legítimo proprietário. Houve uma época, talvez na idade de ouro, falando a língua que tu confundiste, em que as mulheres podiam ser tão justas e piedosas quanto os homens fossem capazes de o ser, mas já não o eram quando eu vim ao mundo, porque, em hebraico, por exemplo, para justo e piedoso não há formas femininas equivalentes. Tendo eu que nascer forçosamente de uma mulher, como foi possível, Deus, Pai, Senhor, não teres reparado que ela não podia ser digna de me gerar, uma vez que não era piedosa nem justa? Rogar-te-ei que mo expliques quando nos encontrarmos. Não vejo nenhum dos meus irmãos. E aquele João, já não sei eu bem se é o meu discípulo, se o filho de Zebedeu, que tem o mesmo nome. Como quer que seja, vou dizer a frase que de mim se espera: “Mulher, aí tens o teu filho. João, aí tens a tua mãe.” Oxalá se dêem bem.

Palavra Quarta
Deus, Pai, Senhor, as palavras atropelam-se na minha cabeça, a ponto de já não saber se serão realmente minhas ou se as terei lido ou ouvido em alguma parte, e agora não faça mais que repeti-las de maneira mecânica, como uma criancinha que a duras penas aprende a falar. Pelo menos, tenho a certeza de que as palavras que irei proferir me sairão da boca somente para que se possa anunciar amanhã que as escrituras foram cumpridas uma vez mais. Escuta-as e diz-me se não tenho razão: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Quem me ouvir pensará que esta é a primeira vez que tu abandonas alguém e que por isso é de justiça que a pergunta seja lançada aos quatro ventos do alto desta cruz, como um aviso às pessoas. Mas tu, Deus, Pai, Senhor, desde o princípio do mundo que criaste não tens feito outra coisa que abandonar-nos. Recorda aqueles a quem, por causa de uma maçã e uma serpente, expulsaste do paraíso terrenal, recorda o espírito vingativo com que puseste diante da porta os querubins e uma espada de fogo para que eles não pudessem regressar. Crês tu, Deus, Pai, Senhor, que ao menos uma vez na vida, e em muitos casos todos os dias e a todas as horas, a espécie humana não teve motivos para fazer esta mesma pergunta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”? Que estás longe, dirás, que não podes acudir a tudo, que o homem foi feito para que governasse a sua vida sem depender de deus ou deuses, mas em teu nome, quando não tu mesmo, há quem afirme que nascemos servos e servos seremos até ao fim da vida porque tu és a causa primeira e porque, ao mesmo tempo que nos vai abandonando um a um, nos manténs agarrados na tua mão. Eu próprio te fiz a pergunta e tu não respondeste. Razão tinha aquele que disse que Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Acabe-se o homem e tudo se acabará. Abandonados já estamos, eles, eu, talvez também tu, que nem a ti próprio te podes valer. Até para alegadamente salvar a humanidade tiveste que derramar o meu sangue.

Palavra Quinta
Deus, Pai, Senhor, ainda que possa parecer extraordinário, ou mesmo incrível, que alguém à beira da morte, tal eu estou, sinta sede e imagine ter tempo e forças para beber um vaso de água, foi isto o que acabou de suceder. Talvez, em realidade, eu não tivesse autêntica sede, talvez tivesse sido apenas a recordação súbita da frescura de uma água que para sempre iria perder, a sensação de senti-la a descer por uma garganta que em breve se cerraria, o que me fez soltar aquele grito: “Tenho sede!” Sem que eu o esperasse, quase imediatamente uma esponja molhada me tocou a boca e o sabor da água misturada com vinagre me restituiu por um instante o alento. Olhando para baixo vi um homem que segurava uma cana, esta a que veio atado o misericordioso socorro, porque bem sabemos, os que nunca tivemos gelo para refrescar a água nas canículas do verão, que juntar-lhe um pouco de vinagre é remédio infalível para as piores sedes. O homem baixou a cana, tornou a empapar a esponja, e outra vez ma fez chegar aos lábios. Depois, porque os soldados romanos se acercavam com as suas lanças e faziam gestos ameaçadores, o homem retirou-se, segurando a cana ao ombro e levando o balde da água e vinagre na outra mão. Foi isto o que se passou e não qualquer outra história que venha a contar-se no futuro, como se o sofrimento de quem foi condenado a morrer na cruz não fosse já bastante para encher o livro. Talvez a alguém se lhe ocorra escrever, e por todos os modos repetir, que quiseram dar-me vinho misturado com fel ou com mirra. Não é verdade. E agora, Deus, Pai, Senhor, peço-te um último favor. Que não faças esperar este homem até ao dia do Juízo Final, que o chames a ti no preciso momento em que morrer, e que tu mesmo o vás receber à porta do paraíso. Reconhecê-lo-ás facilmente. Leva uma cana ao ombro e um balde com água e vinagre na outra mão.

Palavra Sexta
Deus, Pai, Senhor, tudo está cumprido. A cruz em que me pregaram não tardará a ter um cadáver nos seus braços, tal como, desde o princípio do mundo, foi por ti decidido que haveria de suceder. Será, por ser a minha, suficiente esta morte para a salvação da humanidade? Para salvá-la de quê ou de quem? De si mesma? Do inferno que tu mesmo fabricaste, uma vez que não havia mais ninguém que o pudesse fazer? Sou eu o cordeiro que Abel te sacrificava, ao mesmo tempo que desprezavas o trigo e o centeio que Caim te oferecia? Porquê? Não terás sido tu, Deus, Pai, Senhor, quem armou a mão de Caim para que na primeira página da história dos homens se anunciasse já o futuro que lhes estava guardado, sangue, morte, destruição e tortura desde esse dia e para sempre? E porquê ficou o crime de Caim sem castigo? Porquê teve Abel de morrer? Conhecerás tu, Deus, Pai, Senhor, o sentimento do remorso? Porquê, contra a simples justiça, prosperou o assassino, ao ponto de fundar uma cidade e ter descendência como qualquer homem comum, com as mãos limpas de sangue alheio? Sem querer faltar ao respeito, foste e serás sempre um deus dúplice, com duas caras, dois pesos e duas medidas.

Não creio que a minha morte vá servir para que os homens se salvem nem que, sem ela, se perdessem mais do que já estão. Não imaginas, Deus, Pai, Senhor, como os seres humanos são complicados e difíceis de entender. Seja como for, fiz tudo o que tinhas ordenado. Por isso está morrendo um homem nesta cruz.

Palavra Sétima
Deus, Pai, Senhor, nas tuas mãos entrego o meu espírito, que a carne que o continha, essa, ficará agarrada a este madeiro enquanto o que de mim resta não for levado ao túmulo, donde ao terceiro dia ressuscitarei, se foram certas as palavras que puseste na minha boca para que as ouvissem os que me seguiam. Censurou-mas Pedro, que me chamou de parte e disse: “Deus te livre de tal. Uma coisa assim nunca te há-de suceder.” E eu respondi-lhe: “Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho, porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens.” Foi isto o que eu lhe disse, mas agora, Deus, Pai, Senhor, agora que o meu espírito já deve ter chegado às tuas mãos, permite-me que procure, também eu, entender as coisas à maneira dos homens. Poderá o meu corpo, sem um espírito que o anime, levantar-se e sair do sepulcro, arredando a pedra que lhe tapa a entrada? E outra pergunta mais. Que sucederá comigo durante esses três dias? Apodrecerei? Será já com os primeiros sinais de podridão na cara e nas mãos que me apresentarei diante de Maria Madalena? Vivi no mundo como homem durante trinta anos, primeiro criança, depois adolescente, depois adulto, até este dia. Se te digo coisas que estás farto de saber, é para que compreendas por que razão aparecerei a Maria Madalena antes que a qualquer outro.

Acabámos. Representei o meu papel o melhor que podia. O futuro dirá se o espectáculo valeu a pena. E agora, Deus, Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?"


Joseph Haydn - The Seven Last Words of Christ
"Is an orchestral work by Joseph Haydn, commissioned in 1785 or 1786 for the Good Friday service at Cádiz Cathedral in Spain. The composer adapted it in 1787 for string quartet and in 1796 as an oratorio (with both solo and choral vocal forces), and he approved a version for solo piano.
The seven main meditative sections — labelled "sonatas" and all slow — are framed by an Introduction and a speedy "Earthquake" conclusion, for a total of nine movements. 
Complete all movements."

Será "Honorato" o início da metamorfose?

Será o pseudónimo de "Honorato", o início do processo da metamorfose, do qual resultou e gerou o escritor José Saramago?
Primeiro com o romance "A Viúva", publicado em 1947, sob o nome alterado pelo editor para "Terra do Pecado", este que antecede a "construção" da obra - "Claraboia", já a década de 50 estava perfeitamente em curso (1953). 
Este livro transporta consigo a curiosa introdução da assinatura sob pseudónimo - Honorato. 
Diz a história dos acontecimentos, que o resultado final foi enviado para apreciação do editor, e que terá ficado esquecido numa gaveta. Em 2011, sessenta anos depois, ganhou nova alma e saído de um lugar esquecido, vê a luz do dia, sendo publicado a título póstumo.
A "Terra do Pecado", que ficará para outro post, e a "Claraboia", são o início de um caminho. O tal "caminho que se faz caminhando", caminho da escrita publicada, que ficou pendurada ou suspensa, entre chavetas ou parênteses da vida, talvez demasiados anos até que a constante publicação literária ganhasse vida e cadência própria. Considero, que o sustento da vida quotidiana, do homem e da sua família, obrigou como é natural a concentrar toda a atenção no trabalho minimamente remunerado, atrasando o germinar do futuro escritor, com a marca de obra tardia.
Em a "Claraboia", a história, a gestão das personagens e seu compasso de "vida" estão presentes, conjuntamente com a consciência e problemática social - o "eu e os outros", porém, o estilo da escrita e pontuação, tal como o temos subentendido quando falamos em (ou de) José Saramago, não existe em 1953. Ainda não existia. Saramago, reconhece que só na criação da obra "Levantado do Chão", às paginas 22 ou 23, se fez um "milagre" (dito por si, com a dúvida sobre o criador do milagre).
Quero com isto afirmar, que a leitura da "Claraboia" deverá ser realizada com os olhos no romance mas com o pensamento numa afirmação pessoal, que ocorre nos anos idos da década de 50 do século passado.
Boa leitura!
Miguel de Azevedo   



Referência, via Biblioteca Activa, da Fundação José Saramago,
aqui, em http://www.josesaramago.org/claraboia-2011/

"- Vivemos entre os homens, ajudemos os homens.
- E que faz o senhor para isso?
- Conserto-lhes os sapatos, já que nada mais posso fazer agora."

«Claraboia é a história de um prédio com seis inquilinos sucessivamente envolvidos num enredo. Acho que o livro não está mal construído. Enfim, é um livro também ingénuo, mas que, tanto quanto me recordo, tem coisas que já têm que ver com o meu modo de ser.» José Saramago

"Claraboia, cuja redação José Saramago terminou a 5 de Janeiro de 1953, consiste num datiloscrito de 319 páginas, assinado com o pseudónimo de «Honorato»."

Pilar del Río, em entrevista concedida à Revista Caras (04/03/2012)

Aqui pode ser consultado o link,
em http://caras.sapo.pt/famosos/2012-03-04-pilar-del-rio-a-vida-roubou-me-de-um-so-golpe-mais-uns-dez-anos-com-o-meu-marido

Pilar del Río: "A vida roubou-me de um só golpe mais uns dez anos com o meus marido"

A viúva de José Saramago, que preside a Fundação com o seu nome, contou como foram os 24 anos que partilhou com o Prémio Nobel da Literatura, que morreu em junho de 2010.




Pilar del Río, jornalista espanhola, estava numa livraria quando se encontrou com as palavras de José Saramago. Apaixonou-se pelo génio do escritor e veio a Lisboa, onde acabou por conhecer o homem. Bastou um aperto de mão e umas horas de conversa para ficar com “a certeza absoluta de que algo ia acontecer entre nós.” Depois deste encontro, começou uma história de amor que durou 24 anos. Da mulher que o conquistou em 1986, e que era quase 30 anos mais nova, Saramago disse: “Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho.” A 18 de Junho de 2010, aos 87 anos, o escritor morreu, deixando de “estar” ao lado da mulher que amou e que lhe deu “ideias para a vida”, como partilhou no filme José e Pilar.
Pilar abriu as portas da Casa dos Bicos, futura sede da Funda­ção José Saramago, a qual preside, e recordou como foi viver ao lado do escritor português.



– O que sente quando vê a futura sede da Fundação José Saramago praticamente pronta?
Pilar del Río – Este projeto  é uma intervenção na cidade que me enche de satisfação, de orgulho e de pavor. O espólio de José Saramago e tudo o que vai acontecer aqui vai transformar toda esta zona ribeirinha. Quando abrirmos o espaço ao público, na primavera, vamos ter uma grande exposição em que se pode ver a semente e o fruto da vida de uma pessoa humilde que queria ser escritor e trabalhou muito. Vamos ter conferências, debates, reuniões, apresentações de livros... Vai ser uma casa aberta aos cidadãos com muitas atividades relacionadas com a cultura e com o pensamento. Queremos que seja um lugar vivo. O meu marido tinha muitos sonhos para este sítio e, por isso, decidimos pôr as suas cinzas diante de Os Bicos. Não podia ser em outro lugar de Lisboa... Este espaço foi o seu último sonho.

– Ainda há mais livros ou textos soltos de Saramago por publicar?
– Não. José Saramago foi escrevendo e publicando. O Claraboia [livro escrito na década de 50 e publicado o ano passado] saiu agora em Espanha, em Itália e creio que é uma porta de entrada à obra de Saramago. Este livro foi um presente que ele nos deixou.

– O facto de Saramago conti­nuar a ser recordado atenua a dor da perda?
– Não creio que assim seja. José Saramago dizia que morrer era estar e já não estar. E ele já não está. Saramago continua como escritor, intelectual, quem não está é José e isso é um assunto pessoal, privado, intransmissível.

– Alguns crí­ticos diziam que havia um Saramago antes e depois de Pilar. É verdade?
– Não. No plano literário, há um José Saramago em Claraboia e que continuou presente em toda a sua obra. No campo pessoal, claro que com a convivência nos transformamos uns aos outros. Penso que o meu marido me tornou mais contida, algo que é difícil, e eu ajudei-o a ser uma pessoa mais expansi­va. Fomos duas pessoas distin­tas que se encontraram. Mas há um só José Saramago, Levantado do Chão por si só e apenas por si!

– No filme José e Pilar vê-se por diversas vezes o seu marido a chamar por si. Havia uma dependência saudável entre vocês?
– Não. Tínhamos um saudável companheirismo. Éramos camaradas, companheiros, amigos, comentávamos tudo... Não é frequente existir uma relação entre duas pessoas que se encontraram quando já são maduras e que sabem aquilo que é importante e o que não tem importância nenhuma. Era um homem que não era vulgar, era excecional em todos os aspetos.

– Li que depois do seu primeiro encontro com Saramago saiu de lá com a sensação de uma ‘estranha paz’. Já era alguma intuição?
– Não gosto de falar de intuições ou de magias... Mas sabia que algo se ia passar e estava preparada para isso. Tinha a certeza absoluta de que algo ia acontecer entre nós. Simplesmente sabia, tinha de acontecer.

– A Pilar expressou sempre as suas opiniões e por vezes foi duramente criticada. Nunca se sentiu magoada por isso?
– Não. Podem dizer o que quiserem sobre mim. Agora, quando se tratava de interpretações maliciosas e falsas, com muitas falhas de informação sobre o meu marido, aí sim, importava-me e portava-me como uma loba!



– Era muito protetora em relação ao seu marido?
– Não. Sou jornalista e consi­dero que o único elemento que temos para nos defendermos é a honestidade. Vi muitos preconceitos em relação ao meu marido e por parte de alguns que dizem ser jornalistas. Eu sou uma defensora do jornalismo sério.

– Nos 24 anos que passaram juntos ficou alguma coisa por fazer? Tem arrependimentos?
– Podia arrepender-me de algumas coisas, mas não vale a pena pensar nisso. Depois de terminar aquele que seria o seu último livro, iríamos ficar na bibliote­ca, sentados, a ler, tranquilos, a desfrutar do nosso espaço e dos cães. E isso foi-me roubado. Sinto que a vida me roubou de um só golpe mais uns dez anos com o meu marido. Agora já não nos podemos sentar na nossa biblio­teca. Se ele não se sentou, eu também não o vou fazer!

– É por isso que está tão empenhada em perpetuar o nome e a obra de Saramago?
– Se não o fizesse não seria digna de estar onde estou. Por isso, tenho de continuar a trabalhar e a militar nesta fundação. Seria muito mais cómodo ficar em casa, como dizia o Fernando Pessoa, a “contemplar o espetáculo do mundo”, e eu podia ter ficado no sofá a viver tranquilamente, mas não quero! Podia ter tido uma vida de placidez, mas tenho uma vida de trabalho, porque é isso que devo à sociedade. E o meu marido escreveu até morrer! Ele trabalhava todos os dias e não abdicava da sua capacidade de intervenção cívica.

– José Saramago vivia para a escrita ou era um homem que tinha como prioridade os afetos?
– A sua prioridade não eram nem os afetos, nem os amigos, nem a família. Saramago não tinha pequenos sentimentos burgueses... É difícil de entender... Claro que tinha família, amigos e uma mulher, mas a sua dimensão era outra. Era um pensador e alguém que intervinha. Era Saramago por si mesmo. E militava em função das ideias.

– Depois de o seu marido mor­rer, tornou-se cidadã portuguesa. Porquê?
– Quando o meu marido morreu senti necessidade de vir para aqui e continuá-lo. Sei que o meu marido queria que eu o continuasse.

– O seu marido disse que ele próprio tinha ideias para romances e que a Pilar tinha ideias para a vida. Que ideia, ou ideias, estiveram sempre subjacentes à vossa vida?
– Ai, não sei... Foi fazer o que considerámos certo, independentemente do que os outros pensavam. José Saramago nunca se contentou com a contemplação do mundo e interveio para que ele ficasse um sítio melhor. Compartilhávamos muitas ideias e uma mesma forma de ver o mundo, e foi por isso que nos vimos uma segunda vez. Ele defendia os direitos individuais e sociais das pessoas. Era um livre pensador!

Citador #14 ... considerações escatológicas

Citador #14
... considerações escatológicas
"Correspondência 1959-1971, José Rodrigues Miguéis José Saramago"
Caminho - 2010
Página 303

"Querido Miguéis:

Se um homem vai a passar junto da Torre de Pisa e a torre lhe cai em cima e o esmaga, todo o mundo achará natural, pois a torre já estava inclinada. Até se pensará que há certa beleza em ficar esborrachado debaixo de tão ilustres pedras.
Mas se em cima desse homem desaba, sem aviso prévio, um enorme monte de merda, todo o mundo ficará espantado, pois não são costumeiros tais desabamentos, nem ninguém será capaz de perceber donde veio tão grande quantidade de trampa." (...)

Sobre a sua demissão, da Editorial COR, por nomeação da Natália Correia em sua substituição. José Saramago, na carta de 8 de Novembro de 1971, explica desta forma "estas considerações escatológicas".

Miguel de Azevedo

"Correspondência 1959-1971 - José Saramago e José Rodrigues Miguéis"

Sugestão de leitura para fim de semana
Esta obra recolhe, diversa correspondência trocada entre José Saramago (Director Literário na Editorial Estúdios COR, Lda.) e José Rodrigues Miguéis, autor considerado consagrado, de vasta obra publicada e reconhecida com diversos prémios literários.
O período de tempo conhecido, nesta vasta troca de cartas entre Lisboa e Nova Iorque, compreende o ano de 1959 (24 de Fevereiro), até 1971 (12 de Novembro).  
As cartas, reportando e abordando o trabalho literário e suas minudências, entre o editor e o editado, provoca ao longo da correspondência um tom inicialmente cauteloso e muito cordial, com um trajecto que evolui a um honesto relacionamento de amizade.
A 24 de Fevereiro de 1959, José Saramago dirige-se com um "Exm.º Sr. Dr. José Rodrigues Miguéis, até ao "Querido Miguéis" de 8 de Novembro de 1971, e 4 dias depois, de volta com um "Querido Saramago".
Foram homens das artes, da literatura e literários, de outras artes... mas sobretudo de vida, de consciência social. A questão central deste livro, transfere a questão administrativa da relação profissional, para um polo lateral e que pode ser analisado com alguma curiosidade. Não deixará por certo e decerto de ser curioso, com a distância de mais de 50 anos, observar como estes dois homens tratavam as vendas, as correcções, as sugestões, a vida que alimentava os autores e os editores. 
Mas, tal como, e numa comparação abstracta, nas "cartas de guerra" dos militares que "embarcados" num qualquer monstruoso teatro de guerra, trocavam cartas de esperança e desesperança com as famílias e suas amadas, suprimindo desta forma a incerteza do momento seguinte, aqui, e confesso o eventual forçoso paralelismo, as missivas trocadas sobem no tempo a um lugar mais pessoal e confessional, entre dois que ficam próximos.

A 21 de Agosto de 1967. José Rodrigues Miguéis, adianta...
"Meu querido Saramago
Ainda nos veremos em Lisboa, antes da sua partida para as ilhas de Afrodite e de Safo: segredo - top secret! - só para três ou quatro pessoas mais chegadas, devo aterrar na Portela na manhã de 30 (4.ª feira)... (...) 
Saudades e abraços muitos para todos os amigos e em especial para si do seu
Miguéis"

Saramago, em 8 de Novembro de 1971, confessa o seu testemunho e desapontamento pela situação que foi criada na editora, "demiti-me da editora em virtude de me terem criado uma situação vexatória, qual seja a admissão de um novo director literário (Natália Correia), imposto pelo grupo financeiro que tomou posição na firma."

"Diga-me o que puder, quando puder. E perdoe-me o laconismo. No meu desconsolo e desânimo, só a si tenho escrito e a muito poucos. Vou fazer 70 anos dentro de três semanas! Quando lá chegar saberá o que isso é...
Abraça-o o amigo certo e grato
Miguéis", 12 de Novembro de 1971

É, leitura de fim de semana... salteada... mas a rever
Miguel de Azevedo

Pequeno apontamento, de José Rodrigues Miguéis, via Wikipédia,

José Claudino Rodrigues Miguéis (Lisboa, 9 de Dezembro de 1901 - Nova Iorque, 27 de Outubro de 1980) foi um escritor português
Nascido no número 13 da Rua da Saudade, no bairro típico de Alfama, passou a sua infância e juventude em Lisboa, recordações que marcarão a sua futura obra. Ainda em Lisboa viria a formar-se em Direito em 1924. Todavia, nunca exerceria de forma sistemática profissão nesta área, tendo consagrado a sua vida à Literatura e à Pedagogia. Neste último campo viria a licenciar-se em 1933 em Ciências Pedagógicas na Universidade de Bruxelas, tendo posteriormente dirigido, com Raul Brandão, um conjunto inacabado de Leituras Primárias, obra que nunca viria a ser aprovada pelo governo.
Herdando do pai, um imigrante galego, as ideias republicanas e progressistas, cedo entrou em conflito com o Estado Novo, o que acabaria por o levar ao exílio para os Estados Unidos a partir de 1935. Desde essa altura até à sua morte apenas voltaria pontualmente a Portugal, não passando no seu país natal períodos superiores a dois anos. Em 1942 viria a adquirir a nacionalidade americana. Um ano antes do seu falecimento foi agraciado com a Ordem Militar de Santiago da Espada, no Grau de Grande Oficial. Mário Neves publicou uma biografia sua em 1990.
José Rodrigues Miguéis pertenceu ao chamado grupo Seara Nova, ao lado de grandes autores como Jaime Cortesão, António Sérgio, José Gomes Ferreira, Irene Lisboa ou Raul Proença. Colaborou em diversos jornais como O Diabo, Diário Popular, Diário de Lisboa e República. Foi, juntamente com Bento de Jesus Caraça, director de O Globo, semanário que viria a ser proibido pela censura em 1933. Nos Estados Unidos viria a trabalhar como tradutor e redactor das Selecções do Reader's Digest. Segundo os linguistas Óscar Lopes e António José Saraiva, a sua obra pode ser considerada como realismo ético, sendo claras as influências de autores como Dostoiévsky ou o seu amigo Raul Brandão. De resto, parecem claras nas suas primeiras obras as influências estéticas da Presença, podendo ler-se nas entrelinhas das suas obras simpatias com as temáticas neo-realistas portuguesas (há mesmo quem afirme que José Rodrigues Migueis tenha aderido ao partido comunista). Tem obras traduzidas em inglês, italiano, alemão, russo, checo, francês e polaco.
Em 1961 foi eleito membro da Hispanic Society of América e, em 1976, tornou-se membro da Academia das Ciências de Lisboa. Em 1979 foi agraciado com a Ordem Militar de Santiago da Espada, com o grau de Grande Oficial.

Livros publicados
A Mumia, 1971;
Páscoa feliz (Novela), 1932;
Onde a noite se acaba (Contos e Novelas), 1946
Saudades para Dona Genciana (Conto), 1956
O Natal do clandestino (Conto), 1957
Uma aventura inquietante (Romance), 1958
Léah e outras histórias (Contos e Novelas), 1958
Um homem sorri à morte com meia cara (Narrativa), 1959
A escola do paraíso (Romance), 1960
O passageiro do Expresso (Teatro), 1960
Gente da terceira classe (Contos e Novelas), 1962
É proibido apontar. Reflexões de um burguês - I (Crónicas), 1964
Nikalai! Nikalai! (Romance), 1971
O espelho poliédrico (Crónicas), 1972
Comércio com o inimigo (Contos), 1973
As harmonias do "Canelão". Reflexões de um burguês - II (Crónicas), 1974
O milagre segundo Salomé, 2 vols. (Romance), 1975
O pão não cai do céu (Romance), 1981
Passos confusos (Contos), 1982
Arroz do céu (Conto), 1983
O Anel de Contrabando , 1984
Uma flor na campa de Raul Proença, 1985
Aforismos & desaforismos de Aparício, 1996

  


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Poema "Catorze de Junho" na voz de José Saramago


(este poema declamado por Saramago, pode ser encontrado, 
no álbum "Nesta Esquina do Tempo", de Luis Pastor)


"Catorze de Junho"

Cerremos esta porta.
Devagar, devagar, as roupas caiam
Como de si mesmos se despiam deuses,
E nós o somos, por tão humanos sermos.
É quanto nos foi dado: nada.
Não digamos palavras, suspiremos apenas
Porque o tempo nos olha.
Alguém terá criado antes de ti o sol,
E a lua, e o cometa, o negro espaço,
As estrelas infinitas.
Se juntos, que faremos? O mundo seja,
Como um barco no mar, ou pão na mesa,
Ou rumoroso leito.
Não se afastou o tempo. Assiste e quer.
É já pergunta o seu olhar agudo
À primeira palavra que dizemos:
Tudo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Pilar del Río em entrevista ao jornal mexicano Excélsior

Pilar del Río, está no México, por ocasião da feira do livro, FIL Guadalajara, apresentado o inédito e inacabado livro "Alabardas Alabardas Espingardas Espingardas".
Do outro lado do mundo, para lá de tanto mar percorrido, a América Latina e Central, muito continua a exigir a presença das palavras de José Saramago. Em muitos relatos, não raras vezes Saramago se referia à multidões que se juntavam para o ouvir.
Daqui, de onde os "velhos do restelo" continuam a olhar para o seu umbigo, lá longe em outros paralelos e latitudes, chegam estes relatos. 
Não é a pequenez lusitana que assusta, é a dimensão dos outros que estranho. 

"Pilar del Río, viuda del Nobel de Literatura portugués, presentará en la FIL Guadalajara el último libro del novelista, ilustrado por su amigo Günter Grass"



(imagens de viagens ao México, onde Saramago conviveu e ouviu as razões de alguns activistas)


"Protesta Saramago contra las armas"

"CIUDAD DE MÉXICO, 25 de noviembre.- A medida que Pilar del Río leía Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, el último libro que dejó José Saramago (1922-2010), se convencía de que no quería publicarlo. Y no porque estuviera inacabado o porque no valiera la pena volver sobre el tema de la guerra y el negocio de las armas, sino porque no quería desprenderse del último eco de su esposo.

“Porque mientras estuvo en el sitio donde lo dejó… siempre cabía la esperanza de que viniera a acabarlo. Pero el día que tomé el original, lo fotocopié y lo envié a los editores, supe que estaba cerrado un capítulo. Me estuve reservando mucho tiempo a que ese momento llegara, pero sabía que el libro sería publicado en una circunstancia especial”, reconoce la viuda de Saramago.

El libro se publica ahora, porque se recuerda el centenario de la Primera Guerra Mundial, explica la periodista, y es una especie de alegato contra la guerra. Hoy sabemos que ese tema lo ocupó mucho, sobre todo en los últimos tiempos, así que podemos decir que toda la obra de Saramago es una meditación sobre el poder y la responsabilidad.

El poder que para imponerse inventa religiones como en Caín y el poder que para imponerse inventa armas porque cuando no pueden, de forma coercitiva, doctrinaria o dogmática, vienen con las armas como estamos viendo en el islam en este momento, detalla.

La historia es protagonizada por Artur Paz Semedo, el cual para Del Río es uno de los típicos personajes masculinos de las obras de Saramago, como don José de Todos los nombres o Ricardo Reis de El año de la muerte de Ricardo Reis, que eran taciturnos y un poco solitarios.

En algún momento, Francisco Umbral escribió una crónica en agosto de 1998, donde se refirió a Todos los nombres, recuerda la viuda, donde aseguraba que Saramago había escrito una no novela, con unos no personajes de una no historia, de un no encuentro, de un no amor y, que después de esto, lo único que le quedaba era sentarse a la puerta de su casa y esperar que le den el Nobel.

Es cierto, todos sus hombres viven en espacios pequeños, un poco claustrofóbicos y son pocos sociales, así que Paz Semedo me pareció un personaje que no me gustaba frente a la fecundidad de la mujer, reconoce.

“Pero luego me he dado cuenta de que la mayor parte de los seres humanos somos pobres diablos, como Paz Semedo y como don José. Somos la gente que estamos en nuestras casas y que vemos pasar trenes y no nos preguntamos qué son esos trenes que llevan tanta gente dentro… y así sucede un genocidio de judíos en un campo de concentración y nadie pregunta algo”, comenta.

Justo Saramago viene a recordar que no puede ser un buen ciudadano que cumple con las leyes de tráfico si estás haciendo armas para matar. “Entonces, ¿no somos los que estamos viendo lo que está pasando en el mundo?, ¿no estamos viendo la corrupción masiva?”, añade.

Es decir, sólo protestamos si una industria nos afecta con el mal olor. Pero si una fábrica produce armas… suponemos que van a matar a otros en África u otras partes del mundo.

Sin embargo, Saramago siempre fue un opositor a la guerra. Incluso, se sabe que no hizo el servicio militar, quizá por sus ideas y por su complexión, porque era muy delgado y no lo consideraron apto.

El libro, que integra los comentarios de Roberto Saviano y Fernando Gómez Aguilera, incluye una decena de ilustraciones del escritor alemán Günter Grass, amigo de Saramago, cuya faceta es poco conocida por el público de América Latina, aunque en Alemania sí se han difundido sus ilustraciones.

En este libro, el autor lusitano reconoce que “el sentir humano es una especie de caleidoscopio inestable”. Sin embargo, él siempre decía que hoy no estamos peor que nunca, pues por vez primera tenemos posibilidades para vencer lo imposible en la Edad Media: las epidemias, el hambre y la incultura.

Del Río recuerda que el novelista se pronunció en 1997 en contra de la matanza de Acteal en Chiapas. “¿Qué pasaría hoy con los normalistas? Nunca voy a decir lo que José haría o diría, pero desde luego él estuvo en Timor, Acteal, con los Zahrawi masacrados, y en Palestina.”

¿Qué comentaría usted sobre este tema? “En la situación actual quiero confiar en que México, que es un país de una tradición muy encontrada, con una base tan sólida… tendrá que haber un proyecto de reconstrucción de la idea originaria de este país que recibió a todos los exilios, un país que siempre ha sido de concordia, insisto, va a tener que reinventarse”, dice.

“¡México no puede tener desaparecidos! Y no pienso desde fuera, porque yo me siento absolutamente mexicana y con derecho a opinar. Así que tendremos que encontrar la fórmula. No podemos estar en esta deriva en las primeras páginas del mundo o en las conversaciones por algo que no es bueno”, concluye."

Fernando Gómes Aguillera dá uma "pincelada" no significado da metáfora de Saramago

... que através de parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia, nos permite apreender continuamente uma realidade ilusória ...
(Anúncio e pequena interpretação da entrega do prémio Nobel, pela academia sueca)

(imagem do filme Blindness, baseado no "Ensaio sobre a Cegueira")

(...) «A metáfora é sempre a melhor forma de explicar as coisas». Saramago oferecia assim as chaves da atitude que orientava os seus propósitos: representar situações através de analogias para torná-las mais compreensíveis. A sua vocação ilustrada encontrava assim apoio numa linha de escrita alegórica que equipou romances de projecção simbólica, carregados de ideias e valores, capazes de perfilar conflitos capitais do nosso tempo até desenhar uma espécie de amplo friso civilizacional: a crise da razão (Ensaio sobre a Cegueira, 1995), a necessidade do outro (Todos os Nomes, 2001), as agressões do mercado (A Caverna, 2000), o problema da identidade (O Homem Duplicado, 2002), a deterioração da democracia (Ensaio sobre a Lucidez, 2004), e a morte e o amor redentor (As Intermitências da Morte, 2007). Levanta um universo literário sustentado por tramas que por norma se iniciam numa situação impossível, extravagante, uma anomalia desenvolvida convincentemente através de concatenações dedutivas e desdobramentos cartesianos, em contextos abstractos, despojados de precisões temporais e locais, recorrendo, para além disso, a um marcado esquematismo, estratégias que reforçam o sentido didáctico, o seu alcance de Parábola em que se fundem a metáfora e o ensino. (...)

Por Fernando Gómes Aguillera
em, "A Estátua e a Pedra"
Fundação José Saramago
Páginas 49 e 50

"Yo extraño a José Saramago" - Oscar Benassini

Oscar Benassini, tem uma coluna de opinião no jornal Excélsior (México) http://www.excelsior.com.mx/opinion/oscar-benassini

Em meados de 2012, assinala 2 anos passados... que passaram após a morte de José Saramago.
É um testemunho muito interessante...

"Yo extraño a José Saramago" - Oscar Benassini 21/06/2012

Aqui o link da crónica,
em http://www.excelsior.com.mx/opinion/2012/06/21/oscar-benassini/842626

Hace ya dos años que murió el escritor portugués. Lo extraño de verdad.

"Hace ya —junio 18— dos años que murió. Lo extraño de verdad; “como si lo hubiera conocido”, diría cualquiera. Yo digo que a los artistas los conoces por su trabajo, y no hace falta pararte frente a ellos y que te sean presentados. No es raro que cuando se llega a tener esa experiencia piense uno que ha conocido a alguien diferente del que se había hecho en la conciencia por su arte. Más que ningún otro escritor, a mí me gusta mi versión de Saramago, la que se hace extrañar. Hay aspectos de su manera de vivir que sencillamente cautivan, asombran, conmueven a partir de esa sequedad que parecía ser una parte importante de su identidad. Anoto algunos de esos datos mezclados con algunas citas textuales —publicadas en Excélsior a manera de homenaje— que no dejan duda de quién era el portugués. Muy joven escribe dos novelas que no tienen éxito; ni siquiera consigue la publicación de la segunda, y pasa entonces los siguientes 25 años sin escribir ninguna más. Vende seguros, es reportero, crítico literario, columnista de cultura, editor y traductor del francés y del ruso. ¿Qué dice de esos años?: “Sencillamente no tenía algo que decir y cuando no se tiene algo que decir lo mejor es callar”. Santo Job de las letras. Se afilia luego al Partido Comunista Portugués (1969) y participa en La Revolución de los Claveles, que lleva la democracia a Portugal en 1974, tras una larguísima dictadura. Asegura entonces: “Soy comunista hormonal”, y afirma: “He aprendido a no intentar convencer a nadie. El trabajo de convencer es una falta de respeto, un intento de colonización del otro”. En 1980, a sus 58, retoma la escritura y van brotando en torrente, uno tras otro, intempestivos, los libros que lo harán merecer el Premio Nobel de Literatura 18 años después. Predica en esa época: “El caos es un orden sin descifrar”, “yo no escribo por amor sino por desasosiego, escribo porque no me gusta el mundo donde estoy viviendo”, “no es que sea pesimista, es que el mundo es pésimo” (¡maravillosa!), “hay que recuperar, mantener y transmitir la memoria histórica, porque se empieza por el olvido y se termina en la indiferencia”. El mejor de sus textos para este lector es El Evangelio según Jesucristo, una propuesta alternativa de la vida del personaje, que nos maravilla cuando, a pesar de ello, concluye exactamente de la misma manera que el texto de Mateo, con la crucifixión. La República de Portugal, que Saramago había ayudado a construir, veta el libro por considerarlo ofensivo a los católicos, y paradójicamente precipita la fama del escritor. ¿Sus sentencias?: “No creo en Dios y no me hace ninguna falta. Por lo menos estoy a salvo de ser intolerante. Un creyente pasa fácilmente a la intolerancia. No creo en Dios, no lo necesito y además soy buena persona”. Le habrá sido dado escribir de viejo, curioso, cuando esas edades suelen mermar la aptitud creativa de tantos. Su temperamento apacible, ése tomarse su tiempo en todo y para todo, viviendo con lentitud, lo vuelven uno de los creadores más tardíos de que se tenga memoria. Percibe y asume su vejez, así como la proximidad de la muerte. Sigue escribiendo con las letras como un fardo a cuestas, y sigue claridoso: “Quien va a morir está ya muerto y no lo sabe”. “No he sentido jamás la necesidad de un triunfo, la necesidad de tener una carrera, de ser reconocido, de ser aplaudido. No he hecho en cada momento nada más que lo que tenía que hacer”. “Somos la memoria que tenemos y la responsabilidad que asumimos, sin memoria no existimos y sin responsabilidad quizá no merezcamos existir”. Memorable su última visita a México. Pregunta el entrevistador en cadena nacional de televisión: “¿Por qué no nos visita más seguido?” Responde Saramago, sin sorna, inocente: “Porque me hacen entrevistas como ésta, que me fatigan por inútiles, pero es un compromiso con mi editorial y qué se le hace”. La leucemia, tardía como todo en su vida, lo mata tras permitirle declarar —congruencia absoluta— todavía: “Entraré en la nada y me disolveré en ella”. A fin de cuentas la inteligencia es un privilegio; por eso se le extraña tanto."

Unesco declara o "Cante Alentejano" Património Cultural e Imaterial da Humanidade

"A transformação social. A contestação. Personagens em diálogos. As cruentas desigualdades sociais. Surgem as perguntas proibidas. Vai-se adquirindo consciência e espaço, para que tudo se levante do chão. Um livro composto por 34 capítulos. No 17.º está a tortura e a morte de Germano Santos Vidigal. Germano, o nome que significa irmão, o homem da lança. Apesar de vencido, o sacrifício da sua vida indica o caminho. «Já o encontraram. Levam-no dois guardas, para onde quer que nos voltemos não se vê outra coisa, levam-no da praça, à saída da porta do setor seis juntam-se mais dois, e agora parece mesmo de propósito, é tudo a subir, como se estivéssemos a ver uma fita sobre a vida de Cristo, lá em cima é o calvário, estes são os centuriões de bota rija e guerreiro suor, levam as lanças engatilhadas, está um calor de sufocar, alto.»As mulheres são também chamadas à primeira linha das decisões neste belo romance de Saramago. O diálogo monossilábico entre marido e mulher da família Mau-Tempo vai-se alterando. Interessante observar uma narrativa que vai da submissão ao sentido de libertação, através de gerações."

A obra "Levantado do Chão", ou dos dias em que gerações de homens e mulheres, viveram a pobreza do campo. As lutas, as vidas, as cores e cheiros alentejanos, na visão de José Saramago. Destas agruras de um povo, nasce uma voz, coral, o "Cante Alentejano"


(O artista albanês, Saimir Strati está a construir o maior mosaico em rolhas de cortiça do Mundo em Ponte Sor, no Centro de Artes e Cultura.)





"São sete ou oito grupos de perto e longe. Cantam os trabalhos e os dias, os amores e as paisagens.
Estão duas mil pessoas a ouvi-los pela noite fora, em silêncio, só aplaudindo no fim de cada canção, à entrada de cada grupo, mas neste caso quase nada, porque é sabido que mal se podem bater palmas quando os homens começam a mover-se, lentamente, naquele movimento pendular dos pés, que parecem ir pousar onde antes haviam estado, e no entanto avançam.
O tenor lança os primeiros versos, o contratenor levanta o tom, e logo o coro, maciço como o bloco dos corpos que se aproximam, enche o espaço da noite e do coração. O viajante tem um nó na garganta, a ele é que ninguém poderia pedir-lhe que cantasse. Mais facilmente fecharia os punhos sobre os olhos para não o verem chorar."

José Saramago, "Viagem a Portugal"
Publicado no Facebook, da Fundação José Saramago,
em https://www.facebook.com/fjsaramago?fref=photo



(imagem das ceifeiras alentejanas, onde no trabalho braçal do campo, 
as mulheres tinham autorização para cantar as modas)

Menção identificativa, do "Cante Alentejano" no site da Unesco
http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=en&pg=00011&RL=01007

"Cante Alentejano is a genre of traditional two-part singing performed by amateur choral groups in southern Portugal, characterized by distinctive melodies, lyrics and vocal styles, and performed without instrumentation. Groups consist of up to thirty singers divided into groups. The ponto, in the lower range, starts the singing, followed by the alto, in the higher range, which duplicates the melody a third or a tenth above, often adding ornaments. The entire choral group then takes over, singing the remaining stanzas in parallel thirds. The alto is the guiding voice heard above the group throughout the song. A vast repertoire of traditional poetry is set to existing or newly created melodies. Lyrics explore both traditional themes such as rural life, nature, love, motherhood and religion, and changes in the cultural and social context. Cante is a fundamental aspect of social life throughout Alentejano communities, permeating social gatherings in both public and private spaces. Transmission occurs principally at choral group rehearsals between older and younger members. For its practitioners and aficionados, cante embodies a strong sense of identity and belonging. It also reinforces dialogue between different generations, genders and individuals from different backgrounds, thereby contributing to social cohesion."




Citador #13 ... do tempo que passa... as horas e os dias... em "A Caverna"

Foi vulgar, não no sentido da pequenez da reflexão, mas no sentido da constante evocativa, a questão do significado do "tempo", ou da temporalidade das acções.
Nesta simples citação, o dia que passa, os dias que passam de forma diversa, o dia que nunca é igual ao seguinte ou semelhante ao anterior que o fez nascer; Saramago aponta aqui, de forma vincada o desassossego e ansiedade na voz de Marta, a filha do oleiro Cipriano. Tão simples e tão curta esta convocatória do "tempo", mas que depara-se profundamente carregada com mais peso que os ombros destas duas personagens pensaram carregar. 
Este momento, é transversal na obra de José Saramago, e ao percorre-la conseguimos perceber que a vida dos dias e das horas, podem ter um significado diferente que o simples deixar passar luas e sois... Pode-se mesmo ousar, invocando exemplos, onde o decorrer do tempo ficou em suspenso ou regredindo, não no sentido em que os ponteiros do relógio andam para trás, mas no peso em que a acção funciona contra-natura. O menino que se esquece do tempo de regresso a casa e alimenta a flor, renovando a vida do campo em contraponto com industrialização da cidade, em "A Maior Flor do Mundo"; a mulher do médico, em "Ensaio sobre a Cegueira", que esquece o tempo que a sua vida lhe traria e acompanha o marido na descida a um inferno onde os dias parecem pausados em que a tortura da "animalidade" humana não tem fim; a senhora morte, nas "As Intermitências da Morte", onde o violoncelista sem o saber rapta com a sua musicalidade a eterna morte que o deixa de ser, dando-se por vencida e entregando-se aos braços do amor; ou... em "Todos os Nomes", onde um funcionário de uma conservatória pretende resgatar do tempo a vida de uma mulher que não a conhecendo, sentia-lhe a vida mas ela já não estava; isto sem falar de, em "O Homem Duplicado", onde o tempo pára, porque o tempo do professor de história pode não ser o dele, mas do vulto duplicado que o sendo, também poderia ser o seu original, e desta feita haveria um tempo copiado.
Saramago que recusando o epíteto ou etiqueta de romancista histórico, porque ao tempo de outras eras ele não buscava a sua explicação, mas antes, o entendimento sobre os acontecimentos do passado que se repercutem no presente e empurram consequências até ao presente/futuro, tratando esta temática com profunda reflexão. 
Não há dúvida que não é fácil dizer coisas tão simples e lineares, mas ao mesmo tempo com tanto peso e profundidade. 
As pessoas são o que carregam ou a forma como carregam a vida. José Saramago, tentou entrar na interpretação do "eu", do "eu e os outros que rodeiam", e do "nós, enquanto seres colectivos e comunitários" para construir o homem.   


(...) "Os dias são todos iguais, as horas é que não, quando os dias chegam ao fim têm sempre as vinte e quatro horas completas, mesmo quando elas não tiveram nada dentro, mas esse não é o caso nem das suas horas nem dos seus dias, Marta filósofa do tempo, disse o pai, e deu-lhe um beijo na testa. (...)

Citador #13
...as horas... os dias
em "A Caverna"
Caminho, pág. 52




quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Adelino Gomes e a reportagem "O nó na garganta do aprendiz" - Entrega do prémio Nobel (8/12/1998)

Reportagem sobre a entrega do prémio Nobel em 1998, realizada por Adelino Gomes e Alexandra Lucas Coelho, para o jornal Público.
Publicada em 8 de Dezembro de 1998




"O nó na garganta do aprendiz"

"O garoto da Azinhaga que "andou sempre descalço até aos 14 anos" terminou ontem a sua conferência de Nobel com a Academia a aplaudi-lo de pé: "Obrigado mestre. "A ele, que se apresentou como "aprendiz" num discurso quase íntimo por dentro da infância e dos livros. Comoveu e comoveu-se. Mas não deixou em sossego a Igreja, a Europa e os "poderosos do mundo”.
“Mestre Saramago, aqui, aqui!" Cercado de gente que assim o chama, José Saramago sorri, tentando corresponder aos acenos, às perguntas, aos pedidos de autógrafos, mãos ocupadas a assinar o seu nome de Nobel da literatura de 1998 nos livros que lhe, vão dando e nas cópias do texto que acaba de ler, emocionado perante a Academia Sueca — o discurso em que se define como aprendiz desses "mestres de vida" que foram os seus avós e, "essas dezenas de personagens de romance e de teatro", de repente vivas, a desfilar ali.

"Obrigada mestre", justamente assim lhe agradeceu Sture Allén, secretário permanente da Academia Sueca, mal Saramago terminou e a sala rompeu a aplaudi-lo, de pé. Demorou 45 minutos a comovente viagem de papel que o escritor partilhou com as centenas de pessoas que se juntaram às 17h30 (hora local) de ontem no salão de um velho palácio de Estocolmo, que já foi da Bolsa e agora é sede da Academia.

Lá fora era noite escura e nevava. Lá dentro um homem de 76 anos, em pé num pequeno estrado, rodeado de estátuas de gesso e lustres dourados, de frente para a mulher amada, Pilar, folheou uma a uma as 15 páginas de um discurso como a Academia Sueca não se lembra de ter ouvido, quase íntimo na memória da infância, quase mágico no súbito aparecimento de todas as suas personagens, como se a uma única, longa, história pertencessem, encadeadas, umas dando origem às outras, e ao que o autor foi sendo. Como se num fim de tarde de uma cidade escandinava precocemente anoitecida algo, dentro de Saramago e do que ele escreveu, se iluminasse para revelar. um sentido, um fio, um fim.

"Foi vivido." Erik Lorinroth, o mais antigo membro da Academia Sueca não encontra melhor palavra para resumir ao PÚBLICO o que acaba de ouvir, depois de 46 anos a escutar 46 prémios Nobel da Literatura, nesta mesma sala, "Foi maravilhoso. Cada discurso é muito diferente do outro, mas este baseou-se muito na própria vida do premiado.”



Expõe-se assim um romancista perante o mundo, a lembrar o tempo em que andava descalço na aldeia, "sempre descalço até aos 14 anos", em que ajudava o "avô Jerónimo nas suas andanças de pastor", e ia com a avó Josefa pela madrugada ambos "munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado", esse tempo em que "nas noites quentes de Verão, depois da ceia", seu avô dizia "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira" e iam, e "enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos" que o avô contava, "lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias" que e mantinham desperto.

José Saramago, na sua tribuna de Nobel: "Nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência mundo." Porque esse avô "deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras". E é neste momento que a voz do neto treme, tantos anos passados sobre o tempo da figueira, à beira das lágrimas numa sala solene que o escuta, em silêncio, suspensa, os 18 membros da Academia debruçados sobre a tradução sueca das palavras que ali estão a ser ditas, em português.

"Esteve quase a ir-se abaixo", comentará depois Zeferino Coelho, editor e amigo de Saramago há tempo bastante para não se enganar. Pilar del Rio, a espanhola que apareceu na vida do romancista português quando ele já "não podia esperar nada assim", confirma esse nó na garganta em que se embrulharam as palavras do Nobel, a meio da viagem entre a infância e os personagens. Pilar esteve sempre de olhos levantados para o marido, sem folhas brancas no colo porque as sabia de cor sempre de olhos levantados para o que fosse preciso. Para quando Saramago precisasse.

Gente capaz de dormir com porcos

Da Azinhaga, da "gente paz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito" e que, como o avó Jerónimo, ao pressentir a morte, se despedia "das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas chorando porque sabia que as tornaria a ver", desse mundo partiu Saramago para contar as personagens dos livros que lhe deram o Nobel.

"Ao pintar os meus pais e meus avós com tintas de literatura(..) estava, sem o perceber a traçar o caminho por onde as personagens iriam fabricar trazer-me os materiais e as ferramentas que (...) acabariam por fazer de mim a pessoa em hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei."



Ei-las a desfilar, pela mão do autor, como bonecas russas umas contendo as outras, num descendo pela sala da Academia, desenhando aos poucos uma certa forma implicada (logo, política) de ver o mundo. H, o "medíocre pintor de retratos" ("Manual de Pintura e Caligrafia) que ensinou a Saramago "a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração" os seus próprios limites; "os homens e as mulheres do Alentejo" ("Levantado do Chão") que o escritor conheceu como gente "enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundiários, gente permanentemente vigiada pela polícia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa"; Luís Vaz de Camões ("Que Farei com Este Livro?"), "génio poético absoluto, o maior da nossa Literatura" que "regressa pobre da Índia onde muitos se iam para enriquecer", "soldado cego de um olho e golpeado na alma", "sedutor sem fortuna" que revelou a Saramago "a humildade orgulhosa" e "obstinada" de "querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje"; Baltasar, Blimunda e Bartolomeu ("Memorial do Convento"), "três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde florescem as superstições e as fogueiras da Inquisição" e onde habita "uma multidão de milhares e milhares de homens as mãos sujas e calosas, como corpo exausto".

E o cortejo prossegue com Ricardo Reis, "mestre de arte poética" que há-de terminar no princípio da "Jangada de Pedra", romance que foi "fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos da Europa". Aqui, o Nobel abre um parêntesis no seu discurso e corrige: "Fruto de um meu ressentimento pessoal...". E sublinha, perante a Academia, a metáfora da jangada de pedra: "Que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética."

Viva a literatura

A plateia ainda o ouvirá regressar, com ironia, à Igreja, no momento em que auto-define "O Evangelho segundo Jesus Cristo" como "herético ao não ser "mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer." Sobre as crenças religiosas, "essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar" repetirá, de pé na sua tribuna de Estocolmo, três vezes a palavra “intolerância".

E assim chegamos à última página (a 12, nas cópias que a assistência tem na mão, a 15 no original do autor), em que Saramago, "o aprendiz" explica que no "Ensaio sobre a Cegueira" quis recordar "que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo". Depois, "como se tentasse exorcizar os monstros", pôs-se o aprendiz a escrever "a mais simples de todas as histórias", a que contém todos os nomes", "dos vivos e dos mortos", a que foi publicada meses antes de a Academia Sueca decidir que a este aprendiz chamaria mestre.

Sem uma única vez ter pronunciado a palavra "Nobel", José Saramago fica de pé, no fim do seu discurso, no meio das palmas. 0 secretário permanente da Academia diz em francês: "Obrigado mestre, obrigado laureado, viva a literatura, o romance, Saramago!" E ele embaraçado a sorrir, dois passos adiante no pequeno estrado, cruza os braços contra o peito, agradece à esquerda, à direita, avança um passo mais e estende a mão para Pilar. Assim ficam por um segundo, só os dois no meio da sala, antes de começar o cerco."

Texto publicado na edição de 8 de Dezembro de 1998

Entrevista ao Público, por ocasião do lançamento da obra "A Viagem do Elefante" - 7/11/2008



Entrevista a Saramago, por Sílvia Souto Cunha, publicada no Público a 7 de Novembro de 2008

Aqui, em http://visao.sapo.pt/memoria-de-elefante=f497069


(Imagem da peça de teatro, baseada na obra e encenada pela ACERT)


"Memória de elefante"

"Saramago atravessou para o lado da escuridão e regressou. Tem um novo livro, A Viagem do Elefante, um filme a partir de Ensaio sobre a Cegueira, um blogue em nome próprio, dez anos cumpridos de Nobel... Um modo de ressuscitamento."

"Há talvez um voyeurismo, como se ele fosse um Lázaro. E uma homenagem sentida, este corropio de entrevistas que cerca agora o Nobel português. Cabeça de pássaro, figura magríssima, voz frágil, Saramago é, ainda e sempre, lúcido, sarcástico, atento, atirador de farpas. A vida venceu a morte, pulsa à sua volta no novo livro, no filme realizado por Fernando Meirelles, na Fundação José Saramago que se transplantará para a Casa dos Bicos, no blog pessoal (em http://josesaramago.org ), nas lágrimas que lhe rasam os olhos quando fala da cena que mais o impressionou em Ensaio sobre a cegueira: "Quando as mulheres vão para a camarata vizinhas, para a violação, e nós as vemos passar por trás de uma janela, em fila... Para mim, naquela passagem delas, de cabeça curvada, está representada a história da mulher." 
"O que tiver de ser meu às mãos me há-de vir ter'. Que presunção é essa, que consciência de importância era essa, seu rapazote?", recorda ele aos 86 anos, a frase dita aos 18. Depois do Nobel, de 41 obras, peças, diários, depois de Lanzarote, depois de Pilar del Rio. A pergunta última será interrompida por ela, atenta à agenda. Há alguma coisa que falte vir à sua mão? A resposta: "Não falta nada. A única coisa que eu quero ter ainda é vida. Vida para viver, vida para viver com quem vivo, se possível trabalhando. Se eu faço um balanço, operação bastante inútil, enfim, pois balanço feito pelo próprio é sempre suspeito. Se eu olho para trás, independentemente dos triunfos, das glórias, aquilo que eu gosto mais é encontrar um sujeito consciente, coerente. Coerente. Nunca cedi às tentações do poder, nunca me pus à venda."



Em A Viagem do Elefante, um aldeão questiona o padre sobre Jesus. É o seu habitual desmontar do aparelho teológico através de homens simples, do senso comum? 
É mais a forma como eu digo algo que já disse. O diálogo está articulado de forma natural, com a naturalidade que a literatura pode ter. E muito estimulante, porque dá a ideia de que o leitor estará a assistir, ia dizer ao despertar de uma consciência, mas ao manifestar de uma consciência. A consciência do aldeão que enfrenta o cura com uma arma: a lógica. Gosto disso. O senso comum faz-nos muita falta. Pode ser provocante, chato. Mas também pode apresentar-se como algo muito tónico que é o desmancha-prazeres. Ou, como dizem os franceses, o 'empecher de danser'."

O senso comum é, neste momento de crise, é a única arma possível dos intelectuais, das instituições, das pessoas comuns?
Não é a única arma possível. E o senso comum não é uma arma, é um modo de relacionar-se, é uma relação que se propõe um certo equilíbrio, um reconhecimento tácito de certas verdades elementares. Enfim, são aquelas coisas que, no fundo, são uma espécie de consensualidade em que muitos podemos dialogar uns com os outros, partindo de bases que são compartilhadas, e que permite um discurso - que pode não levar à concórdia. Mas uma discordância  sobre a qual se fala já é algo mais do que uma discordância. Bastaria, no caso da crise actual, um pouco de senso comum para perceber que tudo aquilo iria conduzir-nos ao maior desastre deste século e não sei de quantos séculos mais.

Senso comum ou honestidade?
Os princípios do capitalismo, os banqueiros sobretudo da Europa central, eram quase todos calvinistas com o sentido moral de existência até demasiado rígido. Enfim, era assim que eles viviam. Esse espírito resultava de uma determinada concepção religiosa, ou de uma interpretação do cristianismo que formava pessoas de códigos de regras morais que, para eles, seria inconcebível pensar em infringir. Ora bem, a banca, com a passagem do tempo, deslocou-se até se transformar naquilo que é - o seu contrário. Esperaríamos encontrar senso comum em pessoas alcandoradas, por meios próprios ou por razões de outra ordem, a situações de poder. Como os grandes banqueiros, os grandes industriais, os grandes fazedores de dinheiro sobretudo para si próprios. Aquilo que nós chamamos 'uma certa moralidade'. Que no fundo se traduz naquele preceito, tão simples, tão simples, que é: não faças aos outros aquilo que não quiseres que façam a ti'. Todo o espírito de justiça social ou justiça em geral, está contida numa frase tão de senso comum como esta. Num artigo que publiquei, aqui em Portugal e em Espanha, a que chamei de Crime financeiro contra a humanidade, apelava a esta ideia: que se está a cometer um crime que, como tal, deveria ser julgado. Esta gente devia ser julgada nos tribunais. 
Isso causou, nessa altura, reacções bastante destemperadas como se eu tivesse dito alguma enormidade. Pois já se está a falar disso! Milhões e milhões de pessoas desempregadas por efeito de acções, delitivas ou não, que têm consequências tremendas para pessoas, famílias - e que se compraziam nas delícias, autenticas ou supostas, da classe média, com o seu carro, a sua capacidade de consumo, as suas férias, e que de repente... Há pessoas aqui que há 4 ou 5 anos colaboravam em acções de ajuda humanitária, e que agora estão à espera que alguém os ajude. 

Há quem defenda aqui uma oportunidade - um castigo para justos e pecadores, quase - para que se possa renascer melhor. Um sistema melhor. O que lhe parece essa opinião?
Isso é um discurso moralista que não leva a lado nenhum. Pode ser que leve a isso, mas não por essas razões. Aí teríamos que perguntar, quem é que nos está a castigar? Deus nosso senhor, uma vez mais? Não podemos classificar-nos de cúmplices do que está a acontecer. Transformaram-nos em sujeitos passivos, dispostos a usufruir das benesses do desenvolvimento - carros para toda a gente, férias no Pacifico para todos, consumo à disposição, crédito ilimitado para criarmos dívidas que dificilmente pagaríamos mas que, no momento em que o dinheiro entra em casa, parece que o problema da felicidade pessoal e familiar ficou resolvido... E, de repente, acordámos. Isto explodiu. Temos culpas? Provavelmente sim, mas onde é que estavam as ideias capazes de organizar-nos, ideias inteligíveis e mobilizadoras das consciências e vontades para se opõr a isso? Pode levar a uma mudança, mas precisamos de ideias. Não vamos a parte nenhuma sem ideias. 

É uma forma de dizer que precisamos de uma ideologia forte? 
Ideologia, já temos. É a ideologia do consumidor.  A facilidade de consumir forma ou deforma a consciência da pessoa. Isso acaba com tudo! Porque preencheu o espaço de uma determinada ideologia, fosse ela qual fosse. Já não és um cidadão, és um consumidor, um cliente. A partir daí, a pessoa vai cumprir as obrigações inerentes a esse facto: vai comprar e comprar e comprar. Isso acaba por ocupar todo o espaço mental na sua vida. Essa situação acabou neste momento. Acontece que a esquerda não está preparada, não se preparou para esta eventualidade.  Não vamos chamar, referindo-me exclusivamente à Europa, esquerda aos governos sociais-democratas ou socialistas. O facto de terem preocupações de justiça social, não faz deles esquerda porque a justiça social não é qualquer coisa de inseparável da esquerda. Claro que uma esquerda sem justiça social não é, não deveria ser, concebível. Mas uma direita pode ter preocupações de justiça social, no interesse da estabilidade do seu poder, há que reconhecê-lo. Agora, ideias para transformar o mundo da maneira como ele se encontra, não é fácil. Onde estão os filósofos, os sociólogos? O problema é que não faltam: pegamos num jornal e não faltam as análises, as propostas. Mas nada disso tem capacidade mobilizadora, porque  as pessoas não se deixam mobilizar, ou porque as razões aduzidas não são suficientemente convincentes, e tudo avança ao pé-coxinho. 

Falta aí uma, digamos, paixão, ingrediente das religiões e dos partidos?
Repare, a paixão partidária já está muito por baixo. E a paixão religiosa fragmentou-se em seitas cada vez mais irresponsáveis, falsas, mentirosas. A facilidade com que um oportunista qualquer monta uma nova igreja, junta uns milhares de pessoas à sua volta para ouvirem aquilo que ouvem - versões ou interpretações completamente abusivas dos evangelhos. E a necessidade que as pessoas têm de ser enganadas. Seria preciso concluir que as pessoas sabem que estão a ser enganadas, e não é assim. Acreditam naquilo. O que é interessante é que acreditam mais no irracional do que numa operação de racionalização. Esta é demasiado fria, não apaixona - para usar essa terminologia. O que é necessário para atingir os seus fins é: quanto mais irrealidade tenha o discurso que congrega esses milhares, mais eficaz se revela. As pessoas gostam de ser convencidas de que 2 mais 2 são cinco. E se aparece alguém a dizer que são 4, é um herege. Ou um desmancha-prazeres. Sobretudo, um desmancha-prazeres.



O José Saramago teve sempre, e apurou até, essa imagem do desmancha-prazeres, do denunciador. Sente-se confortável nesse papel? 
Não me sinto confortável. Mas se me perguntar se me agrada esse papel, sim. É uma expressão da minha maneira de ser. Não suporto enganos. Contei isto algumas vezes: quando era rapazito, ia ao São Carlos - não porque eu tivesse dinheiro para pagar o bilhete. O meu pai, que era policia de segurança pública, conhecia os porteiros. E eu ia lá para cima, para o galinheiro. Houve aí uma alegoria que me ficou para toda a vida. Para quem estava nos camarotes, era uma coroa o que estava sob a tribuna real. Mas para nós, sentados por trás dela, víamos outras coisas: primeiro, que a coroa não estava completa. Segundo, que tinha poeira e teias de aranha dentro e uma ponta de cigarro republicana, posta ali para protestar. Aquilo ficou-me para sempre, o outro lado das coisas. O outro lado da palavra, de tudo o que nos conduz numa determinada direcção, e que é preciso iluminar para que, se não podemos resistir, pelo menos termos consciência. Que não nos levem ao engano, que é uma expressão muito portuguesa. Por exemplo, numa entrevista a um jornal argentino, há uns quatro anos, eu disse que 'a esquerda não tem puta ideia do mundo em que vivemos'. Isto causou um escândalo dos diabos. Que eu, um homem de esquerda, comunista ainda por cima, se atreva a dizer isto! O que, desgraçadamente, é uma realidade. Porque boa parte dessa esquerda vive no passado, julga que ainda pode assaltar o Palácio de Inverno e começar aí uma nova era para a humanidade. O tempo passou, as coisas aconteceram, muitas delas autênticos desastres, crimes, e é preciso rever as próprias ideias à luz desses mesmos acontecimentos. Se as ideias resistem, vamos dar-lhes uma segunda oportunidade. É quando eu digo sobre esta crise, e já me estou a repetir, que Marx nunca teve tanta razão como hoje. 

Quando fala em segunda oportunidade, abrange a via da esquerda comunista? 
Não é a razão póstuma que possa ter Marx que vai resolver os nossos problemas. Eu sou suspeito, como militante que sou. Posso ser acusado de ter uma visão deformada sobre as coisas. Admito que sim. Mas quando olho a Europa e vejo o que aconteceu aos partidos de esquerda... Como pôde este partido, num País pequeno como o nosso, sobreviver ao ponto de poder dizer-se que é o único partido comunista que sobrevive na Europa? A verdade é que o célebre capitalismo que ia resolver tudo, resolveu tão pouco que estamos numa crise e não sabemos como iremos sair dela. As pessoas movem-se mas necessitam que uma ideia as faça mover. 

Continuamos na alegoria da caverna?
Sim. Ainda não saímos daí. Os que se encontravam na caverna de Platão viam imagens no fundo e pensavam que aquela era a realidade. Mas nós estamos numa situação talvez pior. A irrealidade manifesta daquilo que a televisão mostra, é isso que nos atrai. Nós queremos viver vidas impossíveis, fabricadas no contexto da TV, da publicidade. Se juntar isto ao crédito fácil, tem aí milhões de pessoas dispostas a fazer todos os disparates que as levem a acreditar que são felizes. Essa felicidade é uma bola de sabão, que explodiu.

Fala sobre a contemporaneidade, já lhe chamaram o Nobel bloguero. O que o interessou neste Salomão? Porquê voltar atrás na História?
Eu já fiz algumas viagens assim. O Cerco de Lisboa é isso, coloca uma questão fundamental para mim que é a da verdade histórica. A Viagem não é um livro de evasão, uma história simpática e bem-humorada, para o escritor se evadir das ameaças, tristezas e agruras do mundo exterior. A história do elefante que podia ter ido de barco até Génova e subir os Alpes até chegar a Viena, mas que foi andando, andando, milhares de quilómetros, só por si podia dar uma ideia para escrever algo. Mas o que me levou a este livro foi o destino dele no sentido de que lhe cortaram as patas, depois de morto, para as pôr à entrada do palácio como lugar para deixar as bengalas, os bastões, sombrinhas. Narrado até esse ponto, não excluindo esse final, seria uma metáfora da vida humana. 

Salomão somos todos nós?
Não temos patas de elefante para andar mas alguém se aproveitará daquilo que fizemos ou fomos, para tirar daí vantagens, notícias ou até o prazer de conservar uma memória ou um trabalho. Repare, tive o cuidado de não antropomorfizar o elefante, aquilo que é muito corrente quando um autor mete um animal na sua história. A tentação é irresistível, pô-lo a pensar como nós. Eu sei lá o que é um elefante! Um elefante pensa, constipa-se, apaixona-se? Não sei. 

Deixa-se seduzir ao ponto de se ajoelhar perante uma igreja, num "milagre" encomendado...
Sim. Ensinaram-lhe isso. Ele ajoelha-se mas não sabe porque se ajoelha: a questão é essa. O que está diante dele não é a Basílica de Santo António. Ele não sabe o que isso é. Aprendeu a suportar o peso do cornaca, aprendeu outras coisas. O elefante é um dos animais mais usados  - veja-se o circo. Se este livro se dedicasse à realidade histórica, uma página chegaria. O livro tem 260 páginas, portanto 95% é pura invenção. Tive de inventar situações de que não há registo. Há que dizer que aquele caso do salvamento da criança aconteceu. O elefante agarrou-a com a tromba. Se eu tivesse inventado tal, sentir-me-ia mal, estaria a abusar da credibilidade do leitor. 


Escreveu 40 páginas, interrompeu o livro devido à doença respiratória que teve, e acabou o livro depois. A doença mudou a forma de escrever?
Não, não mudou. A questão podia ser posta dessa maneira: um escreveu o livro, e outro esteve doente. Ora acontece que o que esteve doente escreveu o livro. Em primeiro lugar, é estranho porque é que uma doença tão grave como a que tive, não deixa no livro a mais pequena marca. Pilar diz que sim, que é o episódio do homem perdido no nevoeiro. E que isso era premonitório, embora creia que foi escrito depois de ter saído do hospital. O livro conta uma espécie de fábula, feita durante um tempo em que estive entre a vida e a morte. Algumas vezes, mais perto da morte do que da vida. Podia, consciente ou inconscientemente, fazer alguma citação em que o leitor pudesse pensar 'ah, escreve isto porque tem uma relação com esse momento'. Mas não há nem uma.

Foi uma decisão consciente?
Não foi consciente como deliberação. Agora, estive consciente de que estava a fazer isso mesmo em cada página. Eu creio que, em qualquer caso, nunca escreveria nada que tentasse reconstituir algo que eu tinha vivido num estado de consciência bastante limitado. 

Como fez José Cardoso Pires, após o seu coma, no De Profundis?
Não sei que parte de ficção haverá ou não no livro do Cardoso Pires. Por outro lado, há um antecedente igualmente importante, que é o livro do José Rodrigues Miguéis, Um homem sorri à morte com meia cara. Eu creio que não o faria. Neste caso concreto, seria errado fazê-lo, porque há pouco eu disse que estive entre cá e lá... é muito difícil que eu pudesse pôr uma história, uma versão do que foi a minha situação durante estes meses. 

Mas falou já deste novo livro como um testamento.
Será inevitavelmente um testamento se eu não escrever um outro livro. Com a passagem do tempo, não acredito em testamentos literários. Mas há outras consequências. Acho que o livro é, sobretudo, uma homenagem à língua portuguesa. A minha impressão é que esta doença transtornou a ordenação desses sedimentos: alguns que estariam no profundo passaram à superfície e tornaram-se mais conscientes. Foi uma espécie de revelação, como alguém que descobre que sabia mais do que imaginava. Construções frásicas, palavras que julgava sepultadas nos sedimentos no passado, de repente deslocaram-se para o presente. É como se tivesse captado, sem esforço, algo essencial no meu idioma. Por isso, a linguagem desta Viagem é, ao mesmo tempo, moderna e arcaica. Noutro plano, há a profunda serenidade com que vivi esse momento, inclusive o período mais agudo e perigoso da doença. Amanhã morrerás. Sim.

Teve medo que as capacidades de escrita, a memória, pudessem ser alteradas?
Nunca tive medo. O chamado medo de morrer, o medo de não ser. Tive um momento em que as funções principais do corpo se suspenderam. Creio que, aí, o vencedor dessa batalha foi o coração. Tenho um coração excelente. Enquanto o resto ameaçava falhar, ele continuava a trabalhar. Saí e vivi essa parte já consciente da minha realidade com essa profunda serenidade, que sempre tive mas que se cristalizou. Hoje, surpreendo-me com ela. 86 anos. Devia estar preocupadíssimo em chegar aos 87. Mas não. Sairei da vida quando tiver de sair. Já podia ter saído, não calhou. Valeu-me a Pilar, que me deitou a mão à gola do casaco e não me deixou cair no poço. 

O criador de banda desenhada Enki Bilal, órfão de pátria, disse que 'a última ideologia que restava era a utopia do amor'. O duo Pilar-José Saramago tornou-se um exemplo, no presente e para o futuro, sobretudo se se pensar na Fundação José Saramago?
Um dos erros maiores que podemos cometer é generalizar a vida pessoal. Não sei se ele tinha razão ao dizer que todas as ideologias acabaram. É como dizer 'A arte acabou, a literatura acabou', e depois não acabam, encontram outros caminhos. E aquilo que fica como única utopia - o facto de lhe chamar utopia já é grave - seria o amor. Mas que espécie de amor? Aquele, bastante egoísta diga-se, que une duas pessoas? Ou, por exemplo, em termos amplos, o amor pela humanidade? É um amor à pátria, a isto, aquilo ou aqueloutro? Não sei. Neste caso, o que há, além do que se chama amor, afecto, tudo isso e muitíssimas coisas, é um sentimento de igualdade. Que não é discutível. Como diria o senhor Sarkozi, não sendo eu muito versado em francês, 'c'est comme ça, il n'a rien a dire'. Também há o sentido do respeito mútuo. Não o simples respeito devido, mas alguma coisa mais profunda pelo que é a identidade do outro. Que, sendo esposa ou marido, é Outro. Não há nenhum sinal de uma subalternidade, não creio que isso possa ser dito acerca de nós. Vivemos num plano de igualdade, como não é frequente. Ou mesmo sendo frequente, nem toda a gente pode exprimir estas ideias num jornal - numa entrevista por exemplo, então nota-se mais. Mas ainda bem. Se se nota e se é verdade, e eu garanto-lhe que sim, que isso sirva não de exemplo, pois não estamos na vida para dar lições a quem quer que seja. Estamos na vida para viver segundo os nosso juízos, os nossos critérios, a nossa forma de entendermos a vida.

A propósito dos dez anos do Prémio Nobel, referiu que sentia que tinha "cumprido bem o papel do ponto de vista cívico". Quer elaborar?
Pode parecer algo supérfluo que poderia ter passado na entrevista sem ser referido. O prémio Nobel é o que é, prémio esse para um escritor português, atribuído praticamente um século depois de ter sido criado. O Prémio Nobel não tem nenhuma espécie de caderno de responsabilidades. Trata-se apenas de ir lá, receber a medalha, o diploma, o dinheiro, e se quiser fica-se por aí. A academia sueca não nos pede explicações sobre como estamos a viver esse prémio. Mas pensei que as minhas obrigações iam muito além do literário. O prémio era para um escritor, para a literatura, para um certo modo de fazê-la, pensá-la, criá-la. Mas também era um prémio para Portugal. Quando disse então que "os portugueses tinham crescido três centímetros" - todos nós nos sentimos mais altos, mais fortes, mais formosos até. Só havia uma coisa a fazer: era viver e fazer viver o mais intensamente possível as consequências do prémio. Estive em aldeias portuguesas, onde me encontrei com a filarmónica, os foguetes, o rancho a dançar, as crianças, os velhinhos que nem sabiam ler mas estavam ali. Acho que fiz bem em estar ali! Quando digo que, no plano cívico, estive à altura do Nobel, não quer dizer que o prémio exigisse aquilo! Mas era importante, e não era menos importante que eu viajasse. E houve a repercussão: as distinções honoris causa que recebi, já vão em 34 ou 35, e esperam-me mais duas: da universidade de Quioto e da universidade de Budapeste. Não quer dizer que tenha andado por aí como embaixador da cultura portuguesa, há pessoas muito mais responsáveis e com mais razões que podiam assumir-se como tal. Mas fiz tudo aquilo que podia. Cansei-me, pois cansei-me. Viagens longuíssimas, cerimónias, recepções, muitos apertos de mão, muitos sorrisos, e eu sou todo ao contrario, mas compreendia que havia de engolir até ao fim. Não me estou a queixar, foi muito lisonjeiro esse reconhecimento.

A Fundação José Saramago é a expansão natural desse dever cívico?
Minha cara, eu sou suficientemente antigo (não me custa nada reconhecê-lo) para poder ser moderno quando me apeteça. Sendo eu a pessoa que sou, não tinha outra saída. Se fosse esta a maneira da maioria das pessoas participarem numa alegria que, sendo minha em primeiro lugar, também poderia sê-la para outros. Muitos deles nem me leram, talvez agora o façam com A Viagem do Elefante.

Ou talvez também o leiam devido ao filme, Ensaio sobre a Cegueira, realizado por Fernando Meirelles a partir do seu livro. De que gostou muito, disse-o já. 
Muitíssimo. Não me surpreende nada que os Estados Unidos não tenham gostado, mas no Brasil, que me interessa muito mais, já vai quase no milhão de espectadores. E segundo me disse o Fernando, há uns dias, esperavam cerca de 500 mil pessoas. Eu tinha visto uma versão do filme, no início deste ano, no São Jorge, mas a projecção foi muito má. Agora, em Alcochete, naquela sala enorme com 900 pessoas, num ecrã como nunca vi em parte nenhuma, Ensaio mostrou-se-me como aquilo que é: um grande filme. Um grande filme. Tudo aquilo que é essencial no romance é essencial no filme. E não vale a pena entrarmos nessa discussão sobre se se pode ou deve adaptar, ou não, se é melhor o livro ou o filme... Essa é uma obsessão inútil.

Disse certa vez que gostaria de ser recordado pela cena do Ensaio sobre a cegueira, em que o cão lambe as lágrimas da mulher. Gostou de a ver no ecrã?
Sim. Mas gostaria que o cão fosse um pouco maior. Porquê? Nós, os escritores, somos assim, temos de encontrar umas respostas interessantes, senão o que seria da nossa reputação? Mas isto não é uma espécie de capricho. Tem a ver com o que sinto na relação com os animais. O cão é um animal muito particular, transforma-se num elemento da família, numa plataforma de entendimento entre as pessoas. Disse isso porque presumo que não é qualquer um que é capaz de inventar um cão que lambe as lágrimas a uma pessoa para consolá-la. Claro que não sei se o cão fez isso para consolar, mas essa é a imagem que fica. Mantenho a resposta. Embora tenha dúvidas sobre se não deveria colocar, ao lado do cão, o elefante a quem mudam até o nome. 

Reconheceu-se no narrador, interpretado por Danny Glover? 
Não. O Fernando Meirelles pretendeu fazer do personagem com a pala preta uma espécie de alter ego meu. Chegou a pensar num certo tipo de participação minha, e eu disse-lhe 'nem pensar'. Porque eu não sou actor, porque não tenho nada a fazer ali. O que tinha a fazer, o livro, estava feito. A minha presença, por muito curiosa que pudesse ser, não acrescentaria nada e deslocaria o foco. O que eu quero é que o filme seja ele, o que é, como é, e para que é. E isso está conseguido. O personagem, e o actor é muito bom, evoca-me mais talvez pelo tom em que diz as coisas do que pelo que diz: um tom de sagesse... Sabedoria mas não só, as palavras não são traduzidas de uma língua a outra 100%. Como dizia alguém, uma rua não é uma calle nem uma street. Uma rua é uma realidade social particular. Então, o modo de expressar-se do actor, eu diria que talvez se aproxime bastante da minha forma de comunicar as coisas. Sou capaz de dizer as maiores enormidades no tom mais discreto.

Há ainda Julianne Moore, a heroína do filme. Uma mulher que, como quase todas as mulheres, muda estoicamente o mundo?
Tem uma interpretação exemplar. Mas vou dizer-lhe a cena que mais me impressiona no filme: Quando  as mulheres vão para a camarata vizinha, para a violação, e nós as vemos passar por trás de uma janela, em fila... Para mim, naquela passagem delas, de cabeça curvada, está representada a história da mulher.

Não há mulher alguma a conduzir o elefante Salomão...
Não. Há uma arquiduquesa feita para parir filhos, porque para isso está, para isso a fizeram nascer e nada mais. Quando eu dizia que este livro não é um romance, é um conto - embora pela dimensão não o pareça e as pessoas decidem as coisas pela aparência que estas têm - é, no fundo, isso mesmo. A história da viagem de um elefante que vai para Viena (por Figueira de Castelo Rodrigo, Valladolid, Rosas e Génova) não pode ser um romance. Não há nenhuma Blimunda pelo caminho nem uma mulher do médico nem nenhuma das minhas heroínas - como existiam em Manual de Pintura e Caligrafia ou como a própria Morte em As Intermitências da Morte.  Aliás, este último livro teve uma critica extraordinária no The New Yorker, que me fez pensar como é que um dos melhores analistas literários dos EUA perdeu todo este tempo comigo.

Essa espécie de modéstia não será algo deslocada?
Não é modéstia, é a consciência das coisas. Habituamo-nos durante tanto tempo a não ser considerados... Aliás, a ser ignorados. E, de repente, uma obra literária de um autor português entra nos Estados Unidos da América. Eu não fiz nada para isso, não andei a visitar editores de revistas e jornais. Apercebi-me que, desde o início, a critica norte-americana foi simpática e compreensiva comigo - e eles são habitualmente implacáveis.  Não o foram de uma forma entusiástica mas, nos últimos anos, renderam-se às minhas virtudes e tal, quer se queira quer não, continua a surpreender-me. Não é modéstia. Não sei se sou modesto. Creio que sou natural, o orgulho não faz parte do meu carácter. Mas um ensaio como aquele, feito com aquela inteligência, é obra. 

Sente falta desse tipo de atenção em Portugal?Há outra gente aqui. Eu não tive quem em ajudasse, fui fazendo, livro após livro, escritos bastante tarde quando outro escritor já teria obra feita. O resultado foi este: entregam-me o Nobel, venderam-se milhares de livros. Felizmente para mim, nada disso me subiu à cabeça. 

Já antes dissera que sabia que isto estava no seu destino.
Quando eu tinha 18 anos, em conversa com amigos, disse uma frase que ainda hoje me surpreende. "O que tiver de ser meu às mãos me há-de vir ter". Que presunção é essa, que consciência de importância era essa, seu rapazote?. Mas não era presunção. Era simplesmente a consciência de que, fosse o que fosse, estava iminente. E eu não sou um espírito fatalista. A minha vida demonstra-o. 

Há algo que ainda falte vir à sua mão?
Não falta nada. A única coisa que eu quero ter ainda é vida. Vida para viver, vida para viver com quem vivo, se possível trabalhando. Se eu faço um balanço, operação bastante inútil, enfim, pois balanço feito pelo próprio é sempre suspeito... Se eu olho para trás, independentemente dos triunfos, das glórias, aquilo que eu gosto mais é de encontrar um sujeito consciente, coerente. Coerente. Nunca cedi às tentações do poder, nunca me pus à venda. No fundo, fui e sou uma pessoa totalmente desprovida de ambição. 

Livro
A grandeza de Salomão
Saramago diz que não é um romance, mas sim um conto, para estranheza dos que lhe tomam o peso. As 260 páginas de A Viagem do Elefante (Caminho) que chega às bancas hoje, quinta-feira, 6, tem mistérios mais interessantes do que a sua classificação formal. A viagem do paquiderme indiano da Lisboa de 1551 à Viena de Aústria, à pata por terra e Alpes, mercê da vontade de dom joão III em ofertar coisa digna ao primo arquiduque maximiliano (assim, em minúsculas), parte de um facto histórico para a ficção plena. Caminha por parágrafos mais sincopados do que é costume, mas revela as provocações habituais: o interpelar do leitor, a fina ironia, a denúncia da pequenez humana, o questionamento da religião. E a poesia dos instantes em que homens e bestas, às vezes sem se saber qual é qual, se superam. 
O princípio, soube-o Saramago `a mesa de um restaurante. O fim, duvidou se chegaria - Pilar del Rio confessou ter pensado pedir aos médicos que conseguissem mais três meses de vida para o marido acabar o manuscrito. A dedicatória é para ela: "A Pilar, que não deixou que eu morresse". Ao elefante Salomão, olharão como ovni e como deus - uns aldeões confundem-no até com o deus-elefante indiano Ganesha (e um deles aproveita e questiona o padre sobre a eficácia do exorcismo dos 2 mil porcos na Galileia bíblica: "(...) nunca me pareceu uma boa maneira de Jesus acabar o trabalho"). Salomão será também salvador, barrindo para um homem perdido no nevoeiro, como um Dom Sebastião qualquer. Ou como um homem a morrer. A literatura também salva...

Vida nova
A Viagem do Elefante inaugura um grafismo vivo (da autoria de Rui Garrido) que, mais tarde, funcionará como sobrecapa à linha clara dos anteriores livros, ideia que agrada a Saramago: "Gosto daquela simplicidade tipográfica", diz.