(...) o conceito "utopia".
(...) No Fórum Social de Porto Alegre, onde se reúnem todas as utopias do mundo, aparece um senhor para dizer acabemos, de uma vez, com todas as utopias. E tentei demonstrá-lo porque é muito simples, tão extremamente simples, que quando se explica, e espero que isso aconteça aqui também, uma pessoa perguntar-se por que não o tinha visto antes. (...)
(...) Vou explicar: a utopia é algo que propomos, uma construção mental que enunciamos projectada para o futuro porque temos consciência de que um objectivo que consideramos bom não o poderemos alcançar no tempo em que estamos vivos e, ainda que tenhamos consciência de que não o não podemos conseguir, mantemos a esperança de que venha a poder realizar-se no futuro. (...) Não será para mim, nem para os meus filhos, mas talvez os meus netos possam viver essa utopia.
E todos muito contentes, esquecendo uma coisa tão simples como esta: quem nos diz que o que não podemos ter agora vai ser desejado pelas pessoas do futuro, que passados duzentos anos as pessoas desse tempo vão querer o que nós sonhámos? Por que hão de estar interessadas na minha utopia essas pessoas que nem sequer sei como serão? (...)
(...) Não podemos estar certos de que o ser humano seja, em todos os momentos do futuro, a pessoa que hoje somos. (...) A única utopia viável é a do dia de amanhã, porque ainda estejamos vivos e então, sim, podemos fazer cumprir o que necessitamos hoje. Adiá-lo e adiá-lo no tempo não crio que valha a pena. (...)
em, "Democracia e Universidade"
Conferência Universidade Complutense de Madri
2005
Edição Fundação José Saramago - páginas 35 e 36
(a simbologia da Passarola, Memorial do Convento)
Aqui, em http://caderno.josesaramago.org/3855.html
"Esperanças e utopias"
"Sobre as virtudes da esperança tem-se escrito muito e parolado muito mais. Tal como sucedeu e continuará a suceder com as utopias, a esperança foi sempre, ao longo dos tempos, uma espécie de paraíso sonhado dos cépticos. E não só dos cépticos. Crentes fervorosos, dos de missa e comunhão, desses que estão convencidos de que levam por cima das suas cabeças a mão compassiva de Deus a defendê-los da chuva e do calor, não se esquecem de lhe rogar que cumpra nesta vida ao menos uma pequena parte das bem-aventuranças que prometeu para a outra. Por isso, quem não está satisfeito com o que lhe coube na desigual distribuição dos bens do planeta, sobretudo os materiais, agarra-se à esperança de que o diabo nem sempre estará atrás da porta e de que a riqueza lhe entrará um dia, antes cedo que tarde, pela janela dentro. Quem tudo perdeu, mas teve a sorte de conservar ao menos a triste vida, considera que lhe assiste o humaníssimo direito de esperar que o dia de amanhã não seja tão desgraçado como o está sendo o dia de hoje. Supondo, claro, que haja justiça neste mundo. Ora, se neste nestes lugares e nestes tempos existisse algo que merecesse semelhante nome, não a miragem do costume com que se iludem os olhos e a mente, mas uma realidade que se pudesse tocar com as mãos, é evidente que não precisaríamos de andar todos os dias com a esperança ao colo, a embalá-la, ou embalados nós ao colo dela. A simples justiça (não a dos tribunais, mas a daquele fundamental respeito que deveria presidir às relações entre os humanos) se encarregaria de pôr todas as coisas nos seus justos lugares. Dantes, ao pobre de pedir a quem se tinha acabado de negar a esmola, acrescentava-se hipocritamente que “tivesse paciência”. Penso que, na prática, aconselhar alguém a que tenha esperança não é muito diferente de aconselhá-la a ter paciência. É muito comum ouvir-se dizer da boca de políticos recém-instalados que a impaciência é contra-revolucionária. Talvez seja, talvez, mas eu inclino-me a pensar que, pelo contrário, muitas revoluções se perderam por demasiada paciência. Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é tempo de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças. Ou de utopias."
29 de Setembro de 2008
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