Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 1 de março de 2016

"Propostas para o próximo milénio" Fundação Municipal de Cultura Oviedo (Cadernos de Lanzarote Diário III - 14/12/95)

14 de Dezembro (de 1995)
"Em Oviedo, para um encontro organizado pela Fundação Municipal de Cultura sobre o tema 50 Propostas para o Próximo Milénio. Os proponentes convidados foram cinco: três filósofos (Gustavo Bueno, Gabriel Albiac e Antonio Escohotado), um economista e urbanista (Luis Racionero) e um romancista (este). Quando, há uns meses, recebi o convite, pus-me a imaginar o que teria sucedido se, no ano de 995, em Oviedo, ou num destes sítios das Astúrias, a alguém tivesse ocorrido a ideia de reunir cinco letrados (certamente todos teólogos, porque filósofos doutros saberes não os haveria então ali, e os economistas, os urbanistas e os romancistas ainda estavam por inventar), com o objectivo de apresentarem propostas para os próximos mil anos. Independentemente da circunstância de por aqueles dias, na Europa, haver sido posta a correr a voz de que o mundo se acabaria daí a cinco anos, e que portanto de nada iria servir quanto ali se dissesse, é mais do que duvidoso que as eminentes cabeças teológicas reunidas em Oviedo acertassem com uma só das suas propostas. Isto me levou a não pensar mais no milénio que está para chegar e a formular propostas apenas para amanhã, quando se supõe que ainda estaremos quase todos vivos. Permiti-me compará-las a uma ponte que, a meu ver, talvez seja necessário começar por construir, se queremos alcançar a outra margem do rio, lá onde, um dia, virão a ser construídos os magníficos palácios prometidos nas propostas dos meus colegas. Limitei-me, portanto, a sugerir: 1. Desenvolver para trás, isto é, fazer aproximar da primeira linha de progresso as cada vez maiores massas de população deixadas à retaguarda pelos modelos de desenvolvimento actualmente em uso; 2. Criar um novo sentido dos deveres da espécie humana, correlativo do exercício pleno dos seus direitos; 3. Viver como sobreviventes, isto é, compreender, de facto, que os bens, as riquezas e os produtos do planeta não são inesgotáveis; 4. Impedir que as religiões continuem a ser factores de desunião; 5. Racionalizar a razão, isto é, aplicá-la de modo simplesmente racional; 6. Resolver a contradição entre afirmar-se que cada vez estamos mais perto uns dos outros e a evidência de que cada vez nos encontramos mais afastados; 7. Definir éticas práticas de produção, distribuição e consumo; 8. Acabar de vez com a fome no mundo, porque isso já é possível; 9. Reduzir a distância, que aumenta em cada dia, entre os que sabem muito e os que sabem pouco. Na minha décima proposta preconizava um «regresso à filosofia» (apesar de ser leigo na matéria), mas retirei-a quando vi que os meus colegas, felizmente de acordo quanto ao essencial, discordavam resolutamente nos particulares, que é onde as questões realmente se decidem..." 


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