"Todos os nomes do homem duplicado ou
o caos é uma ordem por decifrar"
Eula Carvalho Pinheiro
A "Revista de Estudos Saramaguianos", está disponível aqui, para consulta e download,
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Páginas 63 a 85
"O acaso só favorece a mente preparada." - Louis Pasteur
"O mundo só está em ordem quando eu o desarrumo" - Alain Bosquet
"O que eu quero é que o leitor participe. Todo texto é um texto
por decifrar e, por mais claro que esteja, (...) ainda assim é
preciso decifrá-lo." - José Saramago
Considerações iniciais
Fazer uma leitura sobre o O homem duplicado de José Saramago, neste momento que Villeneuve fez outra por meio da linguagem cinematográfica, requer, de minha parte, a descrição de alguns acontecimentos.
A última tela do documentário José e Pilar apresenta o ecrã negro com a frase do romance O homem duplicado (e igualmente epígrafe): “O caos é uma ordem por decifrar” – inscrita na cor branca. Ao ler essa frase no final do documentário, minha inquietação aumentou: o que isso poderia indicar? O cineasta de José e Pilar possuía a intenção de levar o romance também para a linguagem cinematográfica ou estaria ali a ratificação de que José e Pilar eram a “ordem decifrada”, ou seja, “as imagens que lá estão dentro, pegadas umas às outras de maneira a contarem uma história” (SARAMAGO, 2002, p.105)? Adiante voltarei à questão, quando abordar, especificamente, o caos e a ordem.
Em 25 de setembro de 2010, por ocasião da estreia mundial do documentário José e Pilar do cineasta Miguel Gonçalves Mendes, conheci Pilar del Río. Naquela ocasião, para além da emoção que esse encontro envolvera, pude perguntar-lhe sobre uma questão pertinente ao romance O homem duplicado: desejava a confirmação de que as notícias lidas de que José Saramago tinha uma preocupação tanto em relação à crítica quanto aos leitores de não terem dado muita atenção ao referido romance se fazia verídica. A resposta afirmativa de Pilar del Río deu-me o suporte necessário para concluir a leitura que apresentaria no Congresso da Universidade Federal do Rio de Janeiro [A República da Letras e a República nas Letras]1, no dia 30 de setembro.
No início de minha comunicação, na UFRJ, indaguei aos espectadores quem já havia lido O homem duplicado. Após alguns segundos de intenso silêncio, provavelmente provocado por constrangimento, uma professora diz: “Ainda não li”. Naquele momento, levantei-me e ofertei um exemplar. Essa atitude foi necessária para a abordagem inicial: comentei sobre o quanto a escrita de O homem duplicado é fascinante e, por consequência, instigante. Embora tivesse, ainda, menos leitores que os demais romances. Daí em diante, abordei, principalmente, a intratextualidade presente no romance (que, particularmente, denomino “Saramago conversa com Saramago”, há 22 anos), e a questão do DUPLO (tanto o “duplo” inserido no romance: Tertuliano Máximo Afonso e Daniel Santa Clara – Daniel Claro, como os vários “duplos” na escrita saramaguiana).
Em relação à intratextualidade, como também aos vários duplos da escrita saramaguiana, temos, logo na segunda página, por exemplo, a menção de solitárias personagens masculinas de romances anteriores,
"O que por aí mais se vê, a ponto de já não causar surpresa, é pessoas a sofrerem com paciência o miudinho escrutínio da solidão, como foram num passado recente exemplos públicos, ainda não especialmente notórios, e até, em dois casos, de afortunado desenlace, aquele pintor de retratos de quem nunca chegámos a conhecer mais que a inicial do nome, aquele médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer nos braços da pátria amada, aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para plantar no seu lugar uma mentira, aquele funcionário subalterno do registo civil que fazia desaparecer certidões de óbito, todos eles, por casualidade ou coincidência, formando parte do sexo masculino, mas nenhum que tivesse a desgraça de chamar-se Tertuliano, e isso terá decerto representado para eles uma impagável vantagem no que toca às relações com os próximos. (SARAMAGO, 2002, p.12)"
A citação de O homem duplicado inscrita acima marca a presença dos romances Manual de pintura e caligrafia [...aquele pintor de retratos de quem nunca chegámos a conhecer mais que a inicial do nome...], O ano da morte de Ricardo Reis [...aquele médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer nos braços da pátria amada...], História do Cerco de Lisboa [...aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para plantar no seu lugar uma mentira...], Todos os nomes [...aquele funcionário subalterno do registo civil que fazia desaparecer certidões de óbito ...].
Todavia, a escrita de O homem duplicado dialoga, sobretudo, com o romance Todos os nomes. Nesse sentido, analisei o diálogo “Saramago conversa com Saramago” com base no ensaio escrito por José Saramago: O Autor como Narrador, pois
"[...] o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Não foi simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que “Madame Bovary” era ele próprio. Parece-me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem falar ao respeito devido ao autor de “Bouvard et Pécuchet”, poder-se- ia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades nela viviam, casa, rua e cidades reais ou imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o espírito, o sangue e a carne de tudo isto, tiveram de passar, inteiros, por uma só pessoa. Também eu, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda de “Memorial do Convento”, e em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou também o Deus e o Diabo que lá estão... (SARAMAGO, 1997, p. 41)"
Antes de prosseguir, especificamente, com a relação entre os romances O homem duplicado e Todos os nomes, registro o diálogo (entre os muitos que existem no que se refere à obra saramaguiana) que se faz entre autor e livro em As intermitências da morte e Todos os nomes, “pelo que possa vir a valer no futuro, aqui a deixaremos consignada”. Em nota, a minha ansiedade por perceber que poucos notaram, fica também um excerto de A viagem do elefante, no qual o autor antecipa um outro projeto de texto2.
"Aqui, na sala da morte e da gadanha, seria impossível estabelecer um critério parecido com o que foi adoptado por aquele conservador de registo civil que decidiu reunir num só arquivo os nomes e os papéis, todos eles, dos vivos e dos mortos que tinha à sua guarda, alegando que só juntos podiam representar a humanidade como ela deveria ser entendida, um todo absoluto, independentemente do tempo e dos lugares, e que tê-los mantido separados havia sido um atentado contra o espírito. Esta é a enorme diferença existente entre a morte daqui e aquele sensato conservador dos papéis da vida e da morte, ao passo que ela faz gala de desprezar olimpicamente os que morreram, recordemos a cruel frase, tantas vezes repetida, que diz o passado, passado está, ele, em compensação, graças ao que na linguagem corrente chamamos consciência histórica, é de opinião de que os vivos nunca deveriam ser separados dos mortos e que, caso contrário, não só os mortos ficariam para sempre mortos, como também os vivos só por metade viveriam a sua vida, ainda que ela fosse mais longa que a de matusalém (...). Certamente nem toda a gente estará de acordo com a ousada proposta arquivística do conservador de todos os nomes havidos e por haver, mas, pelo que possa vir valer no futuro, aqui a deixaremos consignada. (SARAMAGO, 2005, p. 158-9, grifos meus)"
Tertuliano Máximo Afonso (de O homem duplicado) é também o Sr. José (de Todos os nomes). Essa afirmação de que o professor de História e o auxiliar de escrita da Conservatória Geral do Registo Civil são a mesma pessoa ou personagens que migram de uma obra para outra, evidenciando a intratextualidade, é percebida pelo leitor atento que leu, claro está, ambos os romances; pois sem o conhecimento de que o Sr. José esteve durante uma noite no gabinete de um diretor de escola não se tem a devida constatação de que se trata do mesmo gabinete. Por outro lado, um leitor com aguçada percepção mostrar-se-á intrigado ao ler: “Já estive aqui” (SARAMAGO, 2002, p. 84); momento que Tertuliano entra no gabinete do diretor da escola.
"O gabinete do diretor era no andar de cima, a escada de acesso tinha no telhado uma claraboia tão baça por dentro e tão suja por fora que, tanto no inverno como no verão, só avaramente deixava passar para baixo alguma luz natural. Enfiou por outro corredor e parou na segunda porta. Como havia uma luz verde acesa, bateu com os nós dos dedos e abriu quando ouviu de dentro, Entre, deu os bons dias, apertou a mão que o diretor lhe estendia e, a um sinal dele, sentou-se. Sempre que aqui entrava tinha a impressão de já ter visto este mesmo gabinete noutro lugar, era como um desses sonhos que sabemos ter sonhado mas que não conseguimos recordar quando despertamos. O chão estava alcatifado, a janela tinha um cortinado de grossos panos, a secretária era ampla, de estilo antigo, moderno a cadeirão de pele negra. Tertuliano Máximo Afonso conhecia estes móveis, este cortinado, esta alcatifa, ou julgava conhecê-los, possivelmente foi ter lido um dia num romance ou num conto a lacónica descrição de um outro gabinete de um outro diretor de uma outra escola o que, assim sendo, e no caso de vir a ser demonstrado com o texto à vista, o obrigará a substituir por uma banalidade ao alcance de qualquer pessoa de razoável memória o que até hoje tinha pensado ser uma intersecção entre a sua rotineira vida e o majestoso fluxo circular do eterno retorno." (SARAMAGO, 2002, p. 80-1, grifos meus)
"Fantasias. Absorto na sua onírica visão, o professor de História não tinha ouvido as primeiras palavras do diretor, mas nós que aqui sempre estaremos para as faltas [narrador-autor], podemos dizer que não tinha perdido muito, apenas a retribuição dos seus bons dias, a pergunta Como tem passado, o preambular Pedi-lhe que viesse aqui para, daí em diante Tertuliano Máximo Afonso passou a estar presente em corpo e em espírito, com a luz dos olhos desperta e a do entendimento também. (SARAMAGO, 2002, p.81, grifos meus)"
Ainda, na sala do diretor, o texto enfatiza, uma vez mais, a sensação de reconhecimento daquele ambiente por parte de Tertuliano Máximo Afonso. Além disso, o narrador-autor afirma “ler também é uma forma de lá estar”, o que implica, necessariamente, uma conversa (um chamado de atenção) com o leitor. Nesse sentido, o leitor de Todos os nomes e Tertuliano Máximo Afonso estiveram, naquela sala, anteriormente. Para além dessa constatação, a sentença “ler também é uma forma de lá estar” é marca de outras tantas leituras empreendidas por José Saramago; por sua vez a ação de escrever como fez nos textos diarísticos e memorialísticos é testemunho para além do tempo3. Ratifico, também, que a OBRA de José Saramago é toda ela para o hoje e para o futuro: “navegação pelo rio do Tempo acima” (SARAMAGO, 2002, p.86).
"Nunca se repetirá de mais aquela outra trivialidade de que as pequenas causas podem produzir grandes efeitos. Num momento em que o director voltou à secretária para recolher os óculos, Tertuliano Máximo Afonso olhou em redor, viu o cortinado, o cadeirão de pele negra, a alcatifa, e novamente pensou, Já aqui estive. Depois , talvez porque alguém tivesse aventado que poderia apenas haver lido em qualquer parte a descrição de um gabinete parecido a este, acrescentou outro pensamento o que tinha pensado, Provavelmente, ler também é uma forma de lá estar. [...] Se eu aqui tivesse estado antes de ser professor da escola, isto que agora estou a sentir poderia não ser mais que uma memória de mim mesmo histericamente activada." (SARAMAGO, 2002, p.83-4, grifos meus)
Ambas as situações, que Tertuliano Máximo Afonso menciona, ocorreram: “Se eu aqui tivesse estado antes de ser professor da escola”; sim, foste o Sr. José da Conservatória do Registo Civil e o que estás a sentir é “uma memória [...] activada”. No romance Todos os nomes leio: “é preciso andar muito para alcançar o que está perto” (SARAMAGO, 2010, p.79).
O Sr. José – auxiliar da Conservatória do Registro Civil – observa com particular atenção o que está escrito nos verbetes; até que se depara, por acaso, com o da “mulher desconhecida” e neste coloca especial atenção. É a partir desse momento que o Sr. José “abandona uma existência por procuração e começa a viver de facto” (PERRONE-MOISÉS, 1999, p.431). Ao interessar-se pela “mulher desconhecida”, interessa-se por si mesmo, pois “conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens” – palavras que compõem a epígrafe dessa obra; e como fora mencionado por José Saramago: “as epígrafes dos meus romances dizem antecipadamente muito daquilo que será encontrado nas páginas que a elas se seguem”.
Uma digressão se faz necessária; em Todos os nomes, José Saramago ratifica sua constante intenção de dar voz a pessoas comuns que nada têm de diferente daquelas “que nascem entram nas enciclopédias, nas histórias, nas biografias, nos catálogos, nos manuais, nas colecções de recortes, os outros, mal comparando, são como a nuvem que passou sem deixar sinal de ter passado, se choveu não chegou para molhar a terra” (SARAMAGO, 2010, p. 44). As pessoas são muito mais que um nome.
O interesse do Sr. José pela “mulher desconhecida” acaba por levá-lo à escola onde ela estudara e, assim, ao gabinete do Director:
"Neste andar só havia salas de aula, o gabinete do diretor seria com certeza no de cima, afastado das vozes, dos ruídos incómodos, do tumulto da entrada e saída das classes. A escada de acesso tinha no alto uma clarabóia, ao subir por ela ascendia-se progressivamente da escuridão à luz, o que, nesta circunstância, não tem outro significado que prosaicamente podermos ver onde pomos os pés. [...] Saiu da secretaria e duas portas adiante deu finalmente com o gabinete do diretor. Comparando com a austeridade da Conservatória Geral, aqui não seria exagero falar de luxo. O chão estava alcatifado, a janela tinha um cortinado de grossos panos, agora fechados, a secretária, de estilo antigo, era ampla, o cadeirão de pele negra, moderno, tudo isto ficou a saber o Sr. José porque, ao abrir a porta e encontrar-se com uma obscuridade total, não teve dúvidas em acender primeiro a lanterna, e, logo a seguir, o candeeiro do tecto. [...] O cadeirão do diretor era cómodo, poderia dormir ali, mas muito melhor seria o comprido e profundo sofá de três lugares que parecia estar a abrir-lhe caridosamente os braços para neles reconfortar o fatigado corpo." (SARAMAGO, 2010, p.112-114, grifos meus)
Antes de acomodar-se o Sr. José, apesar do extenuado estado, “nem tinha dado pela passagem do tempo”, ali, naquele gabinete, chorou convulsivamente a pensar na possibilidade de ter estado nessa mesma situação, porém “noutra escola, o rapazinho das primeiras classes que cometeu uma travessura e foi chamado ao director para receber o merecido castigo” (SARAMAGO, 2010, p.114). Estaria nessas últimas palavras uma reflexão, uma recordação, a memória presente do rapazito José Saramago, a comprovar que “tudo é autobiografia”? Volto ao gabinete do diretor:
"O Sr. José começou por tirar os sapatos, depois despiu o casaco e a camisa, desenfiou as calças, que foi dependurar num cabide de pé alto que se encontrava a um canto, agora só faltava que pudesse com a manta do filme, acessório difícil de encontrar no gabinete de um director de colégio, salvo se o director deste for pessoa idosa, dessas a quem se lhes arrefecem os joelhos quando estão muito tempo sentadas. O espírito dedutivo do Sr. José conduziu-o mais uma vez à conclusão certa, a manta estava cuidadosamente dobrada sobre a almofada do cadeirão. Não era grande, não chegava para cobri-lo por completo, mas seria melhor que ter que ficar toda a noite ao léu. O Sr. José apagou a luz do tecto, guiou-se com a lanterna e, suspirando, estendeu-se no sofá, para logo se encolher de modo a caber todo debaixo da manta." (SARAMAGO, 2010, p.115, grifos meus)
Outras semelhanças se fazem presente entre Todos os nomes e O homem duplicado. Entre elas temos a procura por uma pessoa: o Sr. José, funcionário da Conservatória do Registro Civil, a partir do momento que um verbete ao acaso aparece entre outros que lia, decide investigar quem é aquela mulher desconhecida. Já Tertuliano Máximo Afonso, professor de História, aceita a indicação do professor de Matemática: aluga o filme “Quem Porfia Mata Caça”; estupefato com a semelhança entre um ator coadjuvante e ele, segue também as “pistas” para conhecer mais da referida pessoa. Ambos, todavia, direcionam-se pelo caminho mais longo, ou seja, indireto.
As personagens, no entanto, são alertadas para seguirem o modo mais prático para conseguirem as respostas ou, até mesmo, para desistirem da empreitada. No caso de Tertuliano Máximo Afonso, de início, será o “senso comum” que manterá dialeticamente uma conversa na tentativa de dissuadi-lo da ideia:
"[...] o senso comum de Tertuliano Máximo Afonso compareceu finalmente a dar-lhe o conselho cuja falta mais se vinha notando desde o aparecimento do empregado da recepção no televisor, e foi esse o conselho o seguinte, Se achas que deves pedir uma explicação ao teu colega, pede-a de uma vez, sempre será melhor que andares por aí com a garganta atravessada de interrogações e dúvidas, recomendo-te em todo o caso que não abras demasiado a boca, que vigies as tuas palavras, tens uma batata quente nas mãos, larga-a se não queres que te queime, devolve o vídeo à loja hoje mesmo, pões uma pedra sobre o assunto e acabas com o mistério antes que ele comece a deitar cá para fora coisas que preferirias não saber, ou ver, ou fazer, além disso, supondo que há uma pessoa que é uma cópia tua, ou tu uma cópia sua, e pelos vistos há mesmo, não tens nenhuma obrigação de ir à procura dela, esse tipo existe e tu não o sabias, existe tu e ele não sabe, nunca se viram, nunca se cruzaram na rua, o melhor que tens a fazer é, E se encontro um dia destes, se me cruzo com ele na rua, interrompeu Tertuliano Máximo Afonso, Viras a cara para o lado, nem ti vi nem te conheço, E se ele se dirigir a mim, Se tiver uma só pontinha de sensatez fará o mesmo, Não se pode exigir a toda gente que seja sensata, Por isso o mundo está como está, Não respondeste à minha pergunta, Qual, Que faço eu se ele se dirigir a mim, Dizes-lhe que extraordinária coincidência, fantástica, curiosa, o que te parecer mais adequado, mas sempre coincidência, e cortas a conversa, Assim sem mais nem menos, Assim sem mais nem menos, Seria uma má-criação, uma indelicadeza, Às vezes é a única maneira de evitar males maiores [...]." (SARAMAGO, 2002 p. 32-3, grifos meus)
Por outro lado, o romance O homem duplicado apresenta-nos, depois, Carolina Máximo, mãe de Tertuliano Máximo Afonso a prevenir também o filho do que uma ação presente possa trazer no futuro. O filho ironicamente compara a mãe à Cassandra, pois essa personagem da mitologia grega teve papel importante na Guerra de Tróia por tê-la previsto, como também a destruição que a peleja provocaria. Mais discretamente também a nomeia de Sibila, pois as sibilas eram também de poderes proféticos na mitologia greco-romana.
"A mãe de Tertuliano Máximo Afonso, cujo nome Carolina, de apelido Máximo, aqui finalmente aparece, é uma assídua e fervorosa leitora de romances. Como tal, sabe tudo de telefones que às vezes tocam sem ser esperados e de outros que tocam às vezes quando desesperadamente se espera que tocassem. Não foi este o caso de agora, a mãe de Tertuliano Máximo Afonso só tem andado a perguntar-se. Quando será que meu filho telefona, e eis que de repente tem a sua voz juntinha ao ouvido, Bons dias, minha senhora mãe, como tem passado, Bem, bem, na forma do costume, e tu, Eu também como sempre, Tens tido muito trabalho na escola, O normal, os exercícios, as chamadas, uma reunião ou outra de professores, E essas aulas, quando é que acabam este ano, Daqui por duas semanas, (...) Irei vê-la claro, mas não poderei ficar mais que três ou quatro dias, Porquê, É que tenho ainda umas coisas para arrumar aqui, umas voltas a dar, Que coisas são essas, que voltas, a escola fecha para férias e as férias, fizeram-se para descanso das pessoas (...) Tem algo que ver com tua amiga, a Maria da Paz, Até certo ponto, Pareces uma personagem de um livro que tenho andado a ler, uma mulher que quando lhe perguntavam responde sempre com outra pergunta, (...), Depois lhe contarei tudo, (...) Tranquilize-se, por favor, de uma maneira ou outra neste mundo tudo acaba por se resolver, Às vezes da maneira pior, (...) mas aquela frase da mãe, Às vezes da maneira pior, quando, para a sossegar, ele tinha dito que neste mundo tudo se resolve, soavam-lhe agora a vaticínio de desastre, a anúncio de fatalidades, como se, em lugar da idosa senhora que se chamava Carolina Máximo e era sua mãe, lhe tivesse saído do outro lado do fio uma sibila ou uma cassandra a dizer-lhe, por outras palavras, Ainda estás a tempo de parar." (SARAMAGO, 2002, p.137-9, grifos meus)
À semelhança do processo dialético que Tertuliano Máximo Afonso estabelece com o “senso comum” (ou seja, Tertuliano com Tertuliano); o Sr. José dialoga consigo e esse outro “José” é o “tecto” de seu pequeno quarto; nesse momento também é sobre a busca pela mulher desconhecida que está a ser discutida. Continuar ou interromper são dois pensamentos que habitam uma mesma pessoa que se divide em outra.
"A ideia que o tecto deu ao Sr. José foi que interrompesse as férias e voltasse ao trabalho, Dizes ao chefe que já estás com suficientes forças e pedes que te reserve o resto dos dias para outra ocasião, isto no caso de vires ainda a encontrar maneira de sair do buraco em que te meteste, com todas as portas fechadas e sem uma pista que te oriente, O chefe vai achar estranho, Coisas muito mais estranhas tens tu andado a fazer nos últimos tempos, Vivia em paz antes desta obsessão absurda, andar à procura de uma mulher que nem sabe que existo, Mas sabes tu que ela existe, o problema é esse, Melhor seria desistir de uma vez, Pode ser, pode ser, em todo o caso lembra-te de que não é só a sabedoria dos tectos que é infinita, as surpresas da vida também o são, Que queres dizer com essa sentença tão rançosa, Que os dias se sucedem e não se repetem, Essa é mais rançosa ainda, não me digas que é nesses lugares-comuns que consiste a sabedoria dos tectos, comentou desdenhoso o Sr. José, Não sabes nada da vida se crês que há mais alguma coisa para saber, respondeu o tecto, e calou-se." (SARAMAGO, 2010, p.187-8, grifos meus: sublinhadas, do narrador e em negrito do tecto)
O Sr. José e a senhora do rés-do-chão direito dialogam sobre isso:
"E que informação era essa que tinha para me dar. A mulher bebeu um pouco de chá, estendeu a mão hesitante para o prato das bolachas, mas não concluiu o gesto. Disse, Recorda-se de eu lhe ter sugerido, no fim da sua visita, quando já se ia retirar, que procurasse na lista telefónica o nome da minha afilhada, Recordo-me, mas preferi não seguir o seu conselho, Porquê, É muito difícil de explicar, Com certeza terá tido as suas razões, Dar razões para o que se faz ou se deixa de fazer é o que há de mais fácil, quando percebemos que as não temos ou não as temos suficientes tratamos de inventá-las, no caso da sua afilhada, por exemplo, eu poderia agora declarar que achei preferível seguir o caminho mais longo e mais complicado, E essa razão, pergunto, é das verdadeiras, ou é das inventadas, Concordemos que tem tanto de verdade como de mentira, E qual é nela a parte de mentira, Em estar eu a proceder de modo a que a razão que lhe dei seja tomada como verdade inteira, E não o é, Não, porque omito a razão de ter preferido aquele caminho e não outro, directo, Aborrece-o a rotina de seu trabalho, Essa poderia ser outra razão [...]" (SARAMAGO, 2010, p. 227-8, grifos meus)
Tertuliano Máximo Afonso pensou em procurar na lista telefônica por ele mesmo. Mas a exemplo do Sr. José preferiu “o caminho mais longo e complicado”.
"Se tu fores à lista telefónica, disse, poderás saber onde ele vive, não precisarás de perguntar à produtora, e até, no caso de estares com disposição para isso, poderás ir ver a rua onde ele mora, e a casa, claro que deverás ter a prudência elementar de te disfarçares, não me perguntes de quê, isso é lá contigo." (SARAMAGO, 2002, p.115)
O caos é uma ordem por decifrar
A sentença “O caos é uma ordem por decifrar”, como dissera no início intrigou-me e, como leitora que segue por prazer o prazer do escritor: “o que eu quero é que o leitor participe” (ARIAS, 2003, p.75), fui em busca das questões para as respostas que vinham à mente. Assim, indaguei, estaria José Saramago referindo-se à Teoria do Caos? Nesse sentido, reiniciei o que já lera sobre a Teoria do Caos do matemático Edward Norton Lorenz. Paralelo a essa busca reli Conversas inéditas, de Miguel Gonçalves Mendes e José Saramago: o amor possível, de Juan Arias. Em Conversas inéditas encontro a resposta que José Saramago apresenta a duas perguntas realizadas em sequência por Miguel Gonçalves Mendes: “José que imagem acha que o mundo tem de si? E que imagem é que o José tem do mundo?” O excerto abaixo evidencia, pelo menos, o “caos provocado por José Saramago com o seu êxito; afinal “de repente desarruma o panorama”4.
"Donde é que esse gajo saiu, não saiu da Universidade, não saiu de grupos intelectuais, não saiu de parte nenhuma, não se sabe de onde é que este gajo saiu, depois escreve um livro que se chama Levantado do Chão, escreve outro melhor ainda que se chama Memorial do Convento, outro melhor ainda que os outros dois que é O Ano da Morte de Ricardo Reis, e continua a escrever até hoje. Donde é que saiu este filho da puta? E quem é que vai digerir isso, pessoas que estavam instaladas na sua própria reputação, na sua própria fama, no seu próprio trabalho – digno evidentemente – e que de repente são surpreendidas pelo aparecimento de uma pessoa sem passado, ou cujo passado eles desconheciam completamente, e que de repente desarruma o panorama, e isso não se perdoa. Toda a gente está bem no seu sítio, com o seu próprio território, com os seus grupos de amigos, influência, e tudo o mais, e de repente aparece um gajo suspeito e que tem êxito, e que vende livros. Escreve os livros que quer, não escreve os livros que se supõe que os leitores quererão ler, escreve os livros que quer escrever. E para remate de tudo isto, ainda por cima, dão-lhe o Prémio Nobel. Você crê que isso se perdoa?" (MENDES, 2011, p.121-2, grifos meus).
Todavia, a explicação dada por José Saramago para um comentário de Juan Arias tornou-se conclusiva:
"Recordo que, quando foi publicado o romance [referência ao Levantado do chão] em que tudo isso aconteceu, as pessoas ficaram um tanto desconcertadas, e um amigo que eu presenteara com o romance telefonou-me dois ou três dias depois para dizer que não estava a perceber nada. Eu lhe disse que tentasse ler duas ou três páginas em voz alta, e no dia seguinte tornou a ligar-me dizendo: “Percebi e já sei o que queres”. O que eu quero é que o leitor participe. Todo texto é um texto por decifrar e, por mais claro que esteja, com todas as pistas dadas, todas as indicações, por mais que eu diga o que se deve entender o que ali está, ainda assim é preciso decifrá-lo. Talvez decifrar um texto meu seja um pouco mais complicado, mas a partir do momento em que o leitor sabe quais são as regras do jogo que estou a propor, pronto, não terá a menor dificuldade. E mais, a intervenção do leitor será muito mais intensa, muito maior, do que se o texto estivesse facilitado por todas as muletas da pontuação. Sempre se pode dizer que é uma coisa que nos ajuda, mas pode viver-se sem ela. Claro que, quando tenho de escrever um artigo, observo todas as regras ortodoxas da escrita. Já um texto de ficção, que é como um pequeno mundo onde as coisas se comportam de outra maneira, o leitor tem de entrar nesse mundo, penetrar nele, aceitar as suas regras e seguir adiante." (ARIAS, 2003, p.75-6)
Sigo adiante, considerando, sobretudo, o que José Saramago disse para Carlos Reis5, em 1997, porque procuro ser clara ao escrever a fim de que o leitor não especializado compreenda; essa maneira de escrever traz novos leitores para a obra que estou a analisar, isso vale muito.
"[...] eu considero a crítica literária necessária, desde que compreensível, quero dizer, desde que esteja ao alcance dos leitores comuns, de revistas e de jornais, que no fundo todos somos. [...] o crítico literário é um leitor que tem o privilégio de poder dizer o que é que lhe pareceu o livro que leu e que eu possa ler isso, entendendo o que está a ser dito. Isso sim, é útil para os leitores ou para aqueles que podem vir a ser leitores de um livro determinado e que gostam de ser informados”. (REIS, 2015, p. 64, grifos meus).
A ideia de CAOS está presente desde os tempos bíblicos: “A terra, entretanto, era sem forma e vazia. A escuridão cobria o mar que envolvia toda a terra, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gênesis 1 – AT); como também na Mitologia: “o vazio primordial”. Segundo Hesíodo (poeta da Grécia arcaica) a primeira de todas as divindades da Mitologia era o CAOS.
Todavia, com o tempo, a noção de CAOS foi tomando outros aspectos. Isso, aliás, é, em geral, o que acontece com as palavras, tanto na grafia quanto no significado; este, porém, de maior complexidade, pois pode alterar significativamente um enunciado. A palavra CAOS, segundo o Dicionário Aurélio, é oriunda do latim [chaos < gr. cháos.], sendo um substantivo masculino com o sentido de “confusão ou desordem”. Essa palavra atualmente sugere tanto o significado inicial quanto um outro que surgiu com a Teoria do Caos, ou seja, “a ausência de alguma forma de ordem que deveria estar presente” (LORENZ, 1996, p.15); ou ainda “sistemas desorganizados que podem organizar-se espontaneamente, tal como uma massa líquida informe pode, quando congelada, solidificar-se em um belo cristal” (LORENZ, 1996, p.15-6).
Imaginemos dezenas de laranjas empilhadas sobre uma mesa a formarem a figura de uma pirâmide. Haveria, pois, quem dissesse: “perfeito, todas estão no seu lugar”. Logo em seguida, alguém retira uma das laranjas do meio ou da base e todas instantaneamente acabam por esparramarem-se pelo chão. Nesse sentido, o que é verdadeiramente o CAOS: a ordem ou a desordem? Se avaliarmos que a ordem apresentada no exemplo é frágil, veremos que a consistência está na desordem, ela sim, neste caso, estável. Com as laranjas espalhadas ter-se-ia uma situação mais definida.
No romance O homem duplicado, Tertuliano Máximo Afonso ordena cronologicamente as cassetes a fim de assistir aos filmes, mas não estava nessa sequência a ORDEM, tanto assim que acaba por não segui-la.
"Quis porém o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso, que o arco de círculo descrito pelos olhos de Maria da Paz passasse, primeiro pelo televisor ligado, logo pelas cassetes que não tinham sido devolvidas aos seus lugares no chão, finalmente pela própria fileira delas, presença inexplicável, insólita, para qualquer pessoa que, como ela, íntima destes sítios, tivesse suficiente conhecimento dos gostos e hábitos do dono da casa, Que é isto, que fazem aqui todas estas cassetes, perguntou, É material para um trabalho que tenho andado ocupado [...]" (SARAMAGO, 2002, p.99, grifos meus)
Em poucas páginas adiante, Maria da Paz dirá: “O caos é uma ordem por decifrar”. Tertuliano Máximo Afonso surpreende-se com as palavras de Maria da Paz, duvida mesmo que tal sentença tenha nascido das reflexões dela. Todavia, as personagens femininas da obra saramaguiana são, essencialmente, incomuns.
"O caos é uma ordem por decifrar, Quê, que foi que disseste, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, que já tinha a lista do nomes a salvo, Que o caos é uma ordem por decifrar, Onde foi que leste isso, a quem o ouviste, Ocorreu-me neste momento, não creio que tivesse lido alguma vez, e, ouvi-lo, isso tenho a certeza de que não, Mas como foi que te saiu uma frase dessas, Que tem de especial a frase, Tem muito, Não sei, talvez fosse porque o meu trabalho no banco se faz com algarismos, e os algarismos, quando se apresentam misturados, confundidos, podem aparecer como elementos caóticos a quem não os conheça, no entanto existe neles, latente, uma ordem, na verdade creio que os algarismos não têm sentido fora de uma ordem que se lhes dê, o problema está em saber encontra-la, Aqui não há algarismos, Mas há um caos, foste tu mesmo que o disseste, Uns quantos vídeos desarrumados nada mais, E também as imagens que lá dentro estão, pegadas umas às outras de maneira a contarem uma história, isto é, uma ordem, e os caos sucessivos que elas formariam se as dispersássemos antes de tornar a pegá-las para organizar histórias diferentes, e as sucessivas ordens que assim iríamos obtendo, sempre deixando atrás um caos ordenado, sempre avançando para dentro de um caos por ordenar" [...] (SARAMAGO, 2002, p. 105, grifos meus)
Como se vê, a ideia de CAOS não implica necessariamente DESORDEM. O matemático, meteorologista e filósofo Edward Norton Lorenz, considerado o mentor da “Teoria do Caos”, avaliou que pequenas mudanças em sistemas organizados poderiam causar efeitos drásticos. É natural, pois, que as frutas caiam da árvore, mas quando Newton resolveu investigar o porquê disso ocorreu uma mudança radical no meio científico. Por outro lado, “muitos sistemas desorganizados podem organizar-se espontaneamente” (Lorenz faz menção ao livro Ordem fora do caos escrito pelo Prêmio Nobel Ilya Prigogine e sua colega Isabelle Stengers); na biologia há inúmeros exemplos, cito um: é o caso da bactéria que se reproduz aleatoriamente, ou seja, por si só. Na filosofia, a Teoria do Caos abre a possibilidade de questionarmos a respeito do Destino (e isso é muito relevante nos romances mencionados neste trabalho). Em tempos antigos primava-se pelo determinismo, o Destino era imutável. Agora, o determinismo deixa de ser sine qua non a partir do momento que se constata o “efeito borboleta” (termo dado por Lorenz aos efeitos que provocam mudanças presumíveis), qual seja: uma determinada interferência tem capacidade para alterar um percurso (ou percursos). É, pois, o que acontece com Tertuliano Máximo Afonso – professor de História – em O homem duplicado: “Não sabemos tudo do que nos espera para além de cada acção nossa, havia dito a mãe (...) pode, em algumas situações, afligir e assustar tanto como a pior das ameaças”. (SARAMAGO, 2002, p.212); como também com o Sr. José – funcionário da Conservatória do Registo Civil – em Todos os nomes: “Quis o acaso da nova busca que, antes de encontrar o gabinete do diretor, o Sr. José tivesse entrado na secretaria do colégio, uma sala com três janelas que davam para o lado da rua”. (SARAMAGO, 2010, p.113).
Lembro-me, aqui, e assim faço uma digressão que também fora o ACASO que possibilitou a novela A viagem do elefante. José Saramago, em breve texto, na primeira página, esclarece o leitor:
"Se Gilda Lopes Encarnação não fosse leitora de português na Universidade de Salzburgo, se eu não tivesse ido falar aos alunos, se Gilda não me tivesse convidado para jantar no Restaurante O Elefante, este livro não existiria. Foi preciso que os ignotos fados se conjugassem na cidade de Mozart para que eu pudesse ter perguntado: “Que figuras são aquelas”?" (SARAMAGO, 2008, p.5)
A ideia proposta por Tertuliano Máximo Afonso a respeito do ensino de História só aparentemente parece caótica: não apresentar cronologicamente ordenado os fatos não implica em desordem ou não-entendimento; implica, pois, em não-linearidade, complexidade e fractalização. Esta proposta, inclusive, é a essência do movimento trazido pelos historiadores da Nova História – que por sinal, José Saramago era profundo admirador. Não esqueçamos de que ele traduziu No Tempo das Catedrais de George Duby e, ainda, faz menção a outros historiadores dessa linha nos textos diarísticos como também em entrevistas.
A desordem pode ser exemplificada por meio da ordem física das mesas na Conservatória do Registo Civil: oito mesas dos auxiliares de escrita logo atrás do balcão, com maior distância, porém atrás dessas mesas outras quatro nas quais trabalhavam os oficiais, seguindo a lógica (hierárquica pode-se dizer) duas mesas, as dos dois subchefes, e, por último, uma mesa apenas: a do Conservador6. Temos, pois, se de geometria tratarmos, um triângulo que apresenta no seu interior uma progressão geométrica: 1, 2, 4, 8. Neste caso, a progressão geométrica tem razão 2, ou seja, o primeiro multiplicado por 2 resultará no segundo, o segundo multiplicado por 2 apresentará o terceiro e assim sucessivamente.
Essa disposição distancia as pessoas a fim de manter uma “ordem” ineficaz: na prática uma pessoa não vê o rosto da outra, mas a cabeça por trás; uma “ordem” que tem o propósito de evitar contato e aumentar a eficiência; embora o trabalho em tudo não seja mais eficiente por isso. Semelhante são as muitas salas de aula ainda existentes, especialmente no Brasil.
A posição das sepulturas da parte destinada aos suicidas é, em tudo, diferente do organograma da Conservatória. Quando o Sr. José encontrou o pastor de ovelhas, após ter dormido protegido por uma oliveira no Cemitério Geral, tem conhecimento de que a sepultura encontrada não seria da “mulher desconhecida”, pois o pastor de ovelhas permutava os números das sepulturas todos os dias. Assim, o Sr. José não encontrara a sepultura da mulher desconhecida como pensara. Tão logo, o pastor de ovelhas se afasta, o Sr. José
"Então foi retirar o número que correspondia à mulher desconhecida e colocou-o na sepultura nova. Depois o número desta foi ocupar o lugar do outro. A troca estava feita, a verdade tinha-se tornado mentira. Em todo caso, bem poderá vir a suceder que o pastor, amanhã, encontrando ali uma nova sepultura, leve, sem saber, o número falso que nela se vê para a sepultura da mulher desconhecida, hipótese irónica em que a mentira, parecendo estar a repetir-se a si mesmo, tornaria a
ser verdade. As obras do acaso são infinitas." (SARAMAGO, 2010, p. 291-2, grifos meus)
“As obras do acaso são infinitas”, sim. Aí está uma vez mais: “o caos é uma ordem por decifrar”.
O homem duplicado conversa com Todos os nomes de modo mais visível nos exemplos registados anteriormente (nas considerações iniciais). Todavia esse diálogo não para por aí. Se em Todos os nomes, o Sr. José está à procura da “mulher desconhecida”, pois o ACASO entregou-lhe um verbete (“o verbete intruso viera pegado ao que o precedia”, SARAMAGO, 2010, p.42; “foi o acaso que lhe trouxe a mulher desconhecida, só o acaso compete ter voto nesta matéria”, SARAMAGO, 2010, p.55) e, a partir de então, foi à procura da recuperação da história dessa mulher; transformando-se a si próprio ao longo da busca – conhecendo efetivamente a si mesmo. Em O homem duplicado, também o ACASO, provoca em Tertuliano Máximo Afonso a necessidade de encontrar um homem que aparecia como mero coadjuvante no filme “Quem Porfia Mata Caça” (indicado pelo professor de Matemática da mesma escola que trabalhava); isso porque esse ator em tudo é o duplo de Tertuliano Máximo Afonso.
Outro elo entre Todos os nomes e O homem duplicado está, provavelmente, na presença de um duplo do Sr. José, qual seja o próprio chefe da Conservatória Geral. O Conservador diz ao médico: “senhor doutor, trate-me aquele homem como se estivesse a tratar-me a mim, é importante” (SARAMAGO, 2010, p.161). Antes, todavia, o Sr. José dissera à mulher do rés-do-chão direito:
"Mas certamente nada de muito extraordinário terá acontecido, uma vez que me disse ser viúva, Tem boa memória, É uma condição fundamental se se quiser ser funcionário da Conservatória do Registo Civil, o meu chefe, por exemplo, (...) sabe de cor todos os nomes que existem e existiram, todos os nomes e todos os apelidos, E isso para que serve, O cérebro de um conservador é como um duplicado da Conservatória" (...) (SARAMAGO, 2010, p.71);
ao final do romance outra evidência se enuncia:
"Meteu a chave à porta, sabia quem ia ver, (...), o dono da chave é o dono da casa, digamos que ambos somos donos desta casa, tal como você parece ter-se considerado dono bastante da Conservatória para distrair documentos oficiais do arquivo, Posso explicar, Não é preciso, tenho seguido regularmente as suas atividades" (...) (SARAMAGO, 2010, p.332-3).
O ACASO se fez igualmente presente na trajetória deste trabalho. Se tivesse terminado a tempo de ser publicado em 2014, teria deixado de mencionar um texto fundamental presente em O Caderno 2: GEOMETRIA FRACTAL, escrito por José Saramago, para o blog, no dia 31 de março de 2009. Lera tal texto algumas vezes, mas por esses dias o acaso me fez abrir o livro e, com isso, lembrar-me dele. A transcrição do texto traz esclarecimentos para o que tem sido abordado até aqui.
"Dia 31
GEOMETRIA FRACTAL
"Tal como o Sr. Jourdain de Molière fazia prosa sem o saber, houve um momento na minha vida em que, sem me ter apercebido do fenómeno, me encontrei metido em algo tão misterioso como a geometria fractal, da qual, escusado seria dizê-lo, ignorava tudo. Foi isso pelo ano de 99, quando um geómetra espanhol, Juan Manuel García-Ruiz, me escreveu a pedir a minha atenção para um exemplo de geometria fractal presente no meu livro Todos os Nomes. Indicava-me a passagem em questão, a qual reza assim: “Observado desde o ar [...] parece uma árvore tombada, com um tronco curto e grosso, constituído pelo núcleo central de sepulturas, de onde arrancam quatro poderosas ramas, contíguas no seu nascimento, mas que depois, em bifurcações sucessivas, se estendem até perder-se de vista, formando [...] uma frondosa copa em que a vida e morte se confundem.” Não pensei em mudar de ofício, mas todos os meus amigos notaram que havia uma convicção nova no meu espírito, uma espécie de encontro na estrada de Damasco.
Durante aqueles dias ombreei com os melhores geómetras do mundo, nada mais, nada menos. Aquilo a que eles haviam chegado à custa de muito estudo, alcançara-o eu graças a um golpe de intuição científica, do qual, falando francamente, apesar do tempo que passou, ainda não me recompus. Dez anos depois, acabo de sentir a mesma emoção na figura de um livro intitulado Armonía Fractal – De Doñana a las marismas de que Juan Manuel é autor, juntamente com seu colega Héctor Garrido. As ilustrações são, em muitos casos, extraordinárias, os textos de uma precisão científica nada incompatível com a beleza das formas e dos conceitos. Comprem-no e regalem-se. É uma autoridade quem o recomenda..." (SARAMAGO, 2010, p.33-4)
Quando iniciei a composição deste trabalho – já com a intenção de chegar a abordar a “Teoria do Caos” de Lorenz – conhecia razoavelmente a geometria fractal, como também o passo seguinte que vai dar na Proporção Áurea.
Nesse sentido, a Teoria do Caos, segundo Lorenz, envolve: não-linearidade, complexidade e fractalização. Não-linearidade é tudo aquilo que, claro está, não é linear. Explico: o acaso não é linear. Segundo Lorenz, os processos lineares são, em maioria, aqueles que criamos: se entrarmos num mercado a fim de comprar alguns itens, sairemos de lá com menos dinheiro do que tínhamos ao entrar. Um exemplo não-linear é evidente numa competição esportiva: imaginemos a descida de esquiadores por uma rampa; as condições serão distintas para cada um. O caos implica não-linearidade, mas a não-linearidade não significa caos. Quanto à complexidade: “indicar a extensão de um conjunto de instruções que alguém teria que seguir para representar ou construir um sistema” (LORENZ, 1996, p.202). Nesse sentido, a complexidade será maior ou menor de acordo com o que se terá que representar ou construir.
Em meados do século XX, Benoît Mandelbroa, um matemático, convenceu a comunidade científica de que a geometria usada desde sempre não era capaz de ser utilizada para descrever a natureza; com isso apresentou a geometria fractal que era capaz de analisar as linhas da natureza. Juan Manuel García-Ortiz viu no excerto de Todos os nomes essa proposta da geometria fractal; pois tal geometria se estende para as artes igualmente. Antes de os muros do cemitério serem derrubados, digamos que seria algo inteiro (digamos um retângulo), mas a partir do momento que esse lugar cresce como os “tentáculos de um polvo” é reconhecida a fractalização; José Saramago, o autor de Todos os nomes, com aguçada percepção imagina aquela área vista do alto. A geometria fractal é “a linguagem da natureza”.
Fig. 2 . Fotografia aérea de Héctor Garrido
Na fotografia de Héctor Garrido visualizamos um curso d´água que se divide a formar inúmeras ilhas e, consequentemente, vários percursos. Mantendo a devida proporção temos aí uma imagem semelhante à do Cemitério Geral.
Muito tempo antes dos estudos da geometria fractal, temos a Proporção Áurea ou Número de Ouro. Leonardo Fibonacci (considerado por muitos o maior matemático da Europa ocidental), também conhecido como Leonardo de Pisa, nasceu em Pisa no ano 1170. Ele trouxe os algarismos arábicos para Europa, até então utilizavam os algarismos romanos.
“A Sequência de Fibonacci descreve como as coisas podem crescer através da geometria fractal. Exemplos de como essa disposição numérica ocorre podem ser vistos em diversos elementos naturais, como as escamas de um peixe, o centro de um girassol, os flocos de neve e até mesmo a forma como as cores se formam na natureza”7. Acrescento: apresentam ainda a Proporção Áurea a casca do abacaxi, o corpo da truta, o corpo humano entre outros tantos.
A definição da Proporção Áurea pode ser dada a partir da necessidade de dividir uma reta: de imediato imaginamos, a melhor divisão é ao meio, pois teríamos 2 partes iguais e a proporção seria 1:1; porém na natureza e nas artes não é assim o ideal. “No entanto, a melhor divisão se dá na proporção 1:1,618, ou seja, na Proporção Áurea. E assim temos o Fi (Φ) = 1,618; nome dado em homenagem a Fídias, o idealizador do Partenon – obra arquitetônica que apresenta sete retângulos áureos formados pelas colunas frontais e outros menores na parte superior do frontispício” (PINHEIRO, 2008, p.71).
Fig. 3 – O Partenon; sobre a edificação a Proporção Áurea.
A figura acima apresenta vários retângulos divididos na proporção 1:1,618. Nos dias de hoje, essa proporção é encontrada nos cartões de banco, na publicidade no que se refere à produção de flyers bem idealizados, nos bons projetos arquitetônicos.
Vejam a elipse que se forma nos traços sobre o Partenon. Vejo a literatura de José Saramago como um processo elíptico, ou seja, uma escrita que divide, mas não segrega, que amplia, pois “torna-se necessário recompor o todo” (MAUSS apud MORIN, 2003, p.70), que visa o real (a vida) – não o representa – e por isso mesmo mais próxima dele. “[...] ainda que seja aleatório e difícil, deve-se conhecer os problemas-chave do mundo [...] ainda mais porque todo o conhecimento político, econômico, antropológico, ecológico etc. é o próprio mundo” (MORIN, 2003, p.70).
Os textos de José Saramago são, pois, imprescindíveis. “Comprem e regalem-se. É uma autoridade quem o recomenda.”8
Notas
1 Outras informações estão disponíveis no site
2 “Em geral, retiro a mensagem logo que o pombo pousa e faço-o porque não quero que comece a dar trabalho por mal empregado, mas neste caso preferi esperar a sua chegada para lhe dar a si uma satisfação completa, Não sei como lho agradeça, senhor alcaide, creia que este é para mim um dia grande, Não duvido, comandante, nem tudo na vida são alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. (SARAMAGO, 2008, p.124)
3 Cadernos de Lanzarote, As pequenas memórias, O caderno e O caderno 2, Da Estátua à Pedra, Discursos de Estocolmo, Conferências, Artigos.
4 Aí está a essência da Teoria do Caos: uma desordem ordenada; e, ainda por cima, não planejada.
5 A primeira edição de Diálogos com Saramago teve publicação em 1998. A conheço desde então. Todavia, menciono aqui a nova edição pela Porto Editora, pois uma conversa tão preciosa necessitava de uma nova edição a fim de ser mais difundida.
6 A mesma disposição encontra-se no Cemitério Geral. A exceção está na presença do lado esquerdo e direito antes do balcão de dois guias de cada lado. “Aqui se encontra o mesmo balcão comprido, a toda a largura do enorme salão, as mesmas altíssimas estantes, a mesma disposição do pessoal, em triângulo, com os oito auxiliares da escrita na primeira linha, os quatro oficiais a seguir, depois os dois subcuradores, que assim é que se chamam aqui, e não subchefes, tal como o curador, no vértice, não é conservador, e sim curador. (...) Sentados em dois bancos corridos, de um lado e de outro da porta de entrada, de frente para o balcão, estão os guias.” (SARAMAGO, 2010, p.262)
7 Citação a partir de <http://portillodesign.com.br/design/o-numero-de-ouro-e-suaaplicacao-em-design.html> - Acesso em 23 de abril de 2015.
8 Parodiei o texto de José Saramago. Claro.
Referências
ARIAS, Juan. José Saramago: o amor possível. Trad. Rubia Prates Goldini. Rio de Janeiro: Manati, 2003.
LORENZ, Edward Norton. A essência do caos. Trad. Cláudia Bentes David. Brasília: UNB, 1996.
MENDES, Miguel Gonçalves. Conversas inéditas. “José e Pilar”. Prefácio de Valter Hugo Mãe. Lisboa: Quetzal Editores, 2011.
MORIN, Edgar. “A necessidade de um pensamento complexo”. In. MENDES, Candido (Org.);
LAREDA, Enrique. Representação e complexidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. ‘Saramago conseguiu a proeza de ser um grande romancista moderno”. In: Palavras para José Saramago. Lisboa: Fundação José Saramago – Caminho, 2011.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “A ficção como desafio ao Registo Civil”. In. Revista Colóquio/Letras. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, jan. 1999, n.151-152, p.429-439.
PINHEIRO, Eula Carvalho. “Escrever é preciso”. In. Revista Eletrônica Granbery. Curso de Sistemas de Informação, n.4, jan.-jun. 2008.
REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. “A Estátua e a Pedra ou a Magia das Ficções” (texto proferido em 7 de maio de 2013, na Fundação José Saramago). Porto: Porto Editora, 2015.
SARAMAGO, José. Todos os nomes. 11 ed. Lisboa: Caminho, 2010.
SARAMAGO, José. O homem duplicado. Lisboa: Caminho, 2002.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SARAMAGO, José. A viagem do elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SARAMAGO, José. O caderno 2. Lisboa: Fundação José Saramago; Caminho, 2010
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