Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 31 de março de 2015

Acordo de parceria entre a Fundação José Saramago e Casa Fernando Pessoa

A Cultura, a sua força, a sua vida.
A Cultura que se mexe e move.
Saramago e Pessoa, o desassossego que nos mantém inquietos...




Informação em detalhe, recolhido via página da Fundação José Saramago,

"Casa Fernando Pessoa e Fundação José Saramago assinam acordo"

"A partir de hoje, Fernando Pessoa e José Saramago cruzam-se de modo mais marcado e efectivo: as duas casas de autor, que trabalham para dar a conhecer o melhor da literatura, assinam um acordo de parceria no sentido de desenvolver acções comuns e conjuntas.
A Fundação José Saramago e a Casa Fernando Pessoa (equipamento municipal gerido pela EGEAC) associam-se de modo a trabalhar em conjunto na promoção do conhecimento sobre dois nomes maiores da cultura portuguesa e no sentido de estimular o gosto pelo livro e pela leitura.
No âmbito desta parceria, estão acções como o ciclo Sem casas não haveria ruas, já em curso e em articulação com a editora BOCA, que leva leituras e contos a cada uma das instituições em meses alternados. O arranque fez-se em Fevereiro, em torno de Nuno Bragança, na Casa Fernando Pessoa; continua hoje, 27 de março, na Fundação José Saramago, desta feita com o actor e contador Carlos Marques e O gosto das palavras.
No futuro e em crescendo as acções consideram um bilhete de desconto mútuo (ao entrar na segunda instituição o visitante da primeira apenas paga €1), o desenvolvimento da iniciativa Os dias do Desassossego em Novembro, roteiros que unam as duas Casas, entre outras acções concertadas junto dos diferentes públicos.
O acordo agora assinado tem vigência de um ano, prorrogável a mais dois.

A parceria com a Casa Fernando Pessoa, que agora se aprofunda, depois do arranque do passado mês de novembro com o(s) Dia(s) do Desassossego, cumpre um objectivo fundamental para a Fundação José Saramago, o de trabalhar em conjunto com outras entidades do meio cultural da cidade de Lisboa. E que melhor parceiro que a Casa Fernando Pessoa, a outra casa de autor da capital. Se Lisboa tem a felicidade de contar com estes dois equipamentos, só podia fazer sentido que o trabalho em conjunto passasse a ser uma realidade. O crescimento do turismo em Lisboa é hoje uma realidade, para o qual, na nossa opinião, deve contar em grande medida a oferta cultural, garantindo que muitos dos que nos visitam, nacionais e estrangeiros, possam ter contacto com a vida e obra de dois dos grandes escritores universais, fundamentais para um maior entendimento da realidade portuguesa e mundial.

Sérgio Machado Letria - Director

Colaborar de forma continuada e alargada com a Fundação José Saramago é para a Casa Fernando Pessoa o prolongamento natural e desejado das anteriores iniciativas conjuntas. As duas casas de autor de Lisboa passam a desenvolver uma programação articulada e dialogante, procurando desenvolver o eixo que se estende entre um espaço e o outro e actuando conjuntamente em circuitos que estimulem o interesse e o contacto dos leitores com dois grandes escritores que são de Lisboa e do mundo.

Clara Riso - Directora"



Autor vs Narrador em Saramago - Opinião de Manuel Frias Martins (A Espiritualidade Clandestina de José Saramago)

Sobre a temática e categorização do "agente" ou "criador" literário, neste caso, referindo-se ao paradigma diferenciador da existência de um autor e/ou narrador, Manuel Frias Martins na sua obra, "A Espiritualidade Clandestina de José Saramago", explana de forma directa e incontornável o posicionamento de José Saramago sobre esta matéria.
Este pequeno excerto (Capítulo I, "O lugar do autor" - "A escrita de si"), foca na primeira pessoa o pensamento inicial e que acompanhará toda a obra - o homem que cria, o gerador da ideia, assume total controle e estatuto de autor



(...) foi o próprio José Saramago quem acabou por confirmar aquilo que aqui chamo de narrativa de si quando se associou às personagens que ia construindo. Num texto de cordato desacordo com alguns académicos acerca das figuras de narrador e do autor, José Saramago afirmou sem quaisquer ambiguidades que o «autor está no livro todo, o autor é o livro todo, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor», acentuando a ideia de que ele, José Saramago, era Blimunda e Baltasar, Jesus e Maria Madalena, José e Maria, Deus e o Diabo, etc., e, suma, todas as personagens que ele havia criado em toda a sua obra. (...)

em "A Espiritualidade Clandestina de José Saramago"
Manuel Frias Martins
Fundação José Saramago, página 38

"Balanço" post do Blog/Livro "O Caderno" em 5 de Janeiro de 2009

Quando a tarefa termina ou o se esgota, dos seus propósitos originais, eis que urge o balanço.
Aqui, eu em balanço, testemunho.


Estátua de Miguel Ângelo, retratando Moisés 
(Igreja de San Pietro in Vincoli - Roma, Itália)

Pode ser lido e consultado, aqui

"Balanço"

"Valeu a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Isso esperava? Satisfeito com o trabalho? Responder “sim” a todas estas perguntas, ou a mesmo só a alguma delas, seria a demonstração clara de uma cegueira mental sem desculpa. E responder com um “não” sem excepções, que poderia ser? Excesso de modéstia? De resignação? Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana não passa de uma pálida sombra da obra antes sonhada. Conta-se que Miguel Ângelo, quando terminou o Moisés que se encontra em Roma, na igreja de San Pietro in Vincoli, deu uma martelada no joelho da estátua e gritou: “Fala!” Não será preciso dizer que Moisés não falou. Moisés nunca fala. Também o que neste lugar se escreveu ao longo dos últimos meses não contém mais palavras nem mais eloquentes que as que puderam ser escritas, precisamente essas a quem o autor gostaria de pedir, apenas murmurando, “Falem, por favor, digam-me o que são, para que serviram, se para algo foi”. Calam, não respondem. Que fazer, então? Interrogar as palavras é o destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois seja, já sabemos que Moisés não responderá."

em "O Caderno"
Caminho, 2.ª edição, publicado a 5 de Janeiro de 2009





segunda-feira, 30 de março de 2015

"A Espiritualidade Clandestina de José Saramago" de Manuel Frias Martins


"A Espiritualidade Clandestina de José Saramago", é uma obra profunda, nada imediatista, recomendando-se uma leitura atenta, reflexiva, compassada, com os necessários avanços e retrocessos que a explanação de um pensamento filosófico deverá obrigar no leitor atento.
De autoria do Professor Manuel Frias Martins, Doutorado em "Teoria da Leitura" pela Universidade de Lisboa, estamos perante alguém dotado de excepcional conhecimento e reconhecida experiência crítica e literária, para abordar tão sensível questão, ao ponto de conseguir colocar o leitor "Saramaguiano" atento a um outro vislumbre do feixe de luz que se pode observar do cerne da obra.
A intolerância e cegueira moral, não raras vezes atinge o novo leitor de Saramago, ou aquele que o conheça, tende a resistir à descoberta e leitura do seu legado literário, dando forma ao eterno preconceito que sempre girou à volta do único prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa, e que se baseia, a meu ver, em 3 desculpas, ou lugares comuns - o autor é "comunista", é "um ateu pecador" ou os livros são muito complicados de se ler!!!
Na minha modesta leitura, "A Espiritualidade Clandestina de José Saramago", serve também para desmistificar e desmontar alguns destes preconceitos, sempre dogmáticos, e introduzir ou acrescentar a luz e a dúvida. A tal dúvida que remete para o alternativo, o diferente, a outra visão, em suma, o questionar para desassossegar e manter viva a capacidade do ser humano ser intelectualmente independente.
A primeira leitura desta obra foi deveras apaixonante, e não querendo ousar, ou sequer demonstrar capacidade interpretativa das palavras e pensamento do Prof. Manuel Frias Martins, destaco levemente este excerto, transcrito do "prólogo", e também identificativas do objecto desta obra.

(...) "o que me interessa destacar nesta altura é o facto de que, para os admiradores de Saramago que referi atrás, o que importa é o sentido espiritual das suas palavras, tanto nas obras literárias como em discursos proferidos em diversas circunstâncias, e de onde muitos desses leitores fiéis, retiram frases soltas, mas profundas no seu alcance, as quais vão lançando nas redes sociais não só em homenagem a Saramago mas também numa atitude generosa de promoção da sageza e ética. tal é feito, mais uma vez, independentemente das diferenças ideológicas e políticas com o homem e o escritor. Esta realidade indesmentível demonstra por si só que as obras de Saramago se dirigem inequivocamente aos interesses e às necessidades práticas dos leitores, independentemente da geografia e da língua, apontando ao mesmo tempo para a espiritualidade como expressão intensa da verdade, não no sentido da verdade objectiva e positivista da ciência, mas no sentido da verdade como descoberta dinâmica do duplo princípio: o do conhecimento da vida e o da negação de uma existência agrilhoada." (...)
Páginas 16 e 17


(Imagem de artigo publicado no Expresso, 
pelo punho de José Tolentino Mendonça)

Sinopse
"Saramago pertence àquele grupo de escritores que parecem ter lido em toda a parte ou vivido em todo o lado, mapeando o humano por sinais identificáveis por todos ao mesmo tempo e decifrados por cada um à sua maneira. Tanto as suas construções ficcionais das atmosferas judaica e cristã como as observações subsidiárias que encontramos dispersas por entrevistas e artigos reflectem uma amplitude de referências culturais onde se abriga um extraordinário ecletismo filosófico e religioso ou, dito de outra maneira, um conhecimento amplo do fundo cultural e religioso da humanidade, o qual é não raras vezes encarado como desafio à razão e à imaginação do próprio escritor. Possuidor de um espírito inquieto quando à humana condição e de um coração ávido de justiça, o homem José Saramago é uma espécie de abrigo intelectual de um escritor que mistura criativamente os inúmeros conseguimentos do pensamento humano independentemente da sua proveniência histórica ou geográfica." - Manuel Frias Martins

(Imagem de artigo publicado no Expresso, 
pelo punho de José Tolentino Mendonça)

domingo, 29 de março de 2015

"As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz" de José Saramago e o concerto de Joseph Haydn (1786)


Pode ser visionado através do YouTube, 
em https://www.youtube.com/watch?t=165&v=vleffnjIoq4

Via Fundação José Saramago, 

"Colaboração de José Saramago, Jordi Savall e Raimon Panikkar a partir da música de Joseph Haydn.
Em 2007, a editora discográfica catalã AliaVox editou a gravação de “As Sete Últimas Palavras de Cristo” de Joseph Haydn pela Orquestra Le Concert des Nations, sob a direcção do maestro e compositor Jordi Savall e acompanhado pelos textos originais de José Saramago e Raimon Panikkar.
O desafio havia sido proposto por Savall a Saramago uns anos antes e, apesar de “ambos concordarem que as palavras [que expliquem a música de Haydn] não eram necessárias”, concordaram também que deveriam sê-lo, conforme relata Pilar del Río. Saramago dedicou-se a um árduo trabalho de pesquisa, já iniciado aquando de O Evangelho segundo Jesus Cristo. No final, “escreveu sobre cada uma delas [as palavras de Cristo na cruz], não para explicar a música mas para acrescentar ao seu Evangelho as páginas que faltavam”.
Passados mais de duzentos anos desde a sua criação, uma encomenda especial feita a Haydn nos começos de 1786, “pareceu-nos apropriado dar esta responsabilidade a dois grandes mestres do pensamento espiritual e humanístico contemporâneo: Raimon Panikkar e José Saramago complementam as breves citações do texto evangélico com uns textos e comentários que reflectem as suas profundas convicções espirituais e humanísticas”, justifica Jordi Savall no texto introdutório do CD."


As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de José Saramago


"Palavra Primeira

Deus, Pai, Senhor, aqui me tens. Aqui me tens, finalmente, neste monte escalvado a que chamam Gólgota e aonde, passo a passo, vieste encaminhando a minha vida a fim de que todas as profecias fossem cumpridas. Sou o da cruz alta, a que está ao centro, e os homens que me fazem companhia, um de cada lado, são dois ladrões vulgares, daqueles que se contentam com roubar pouco, que se fossem dos que roubam muito de certeza não viriam aqui crucificados. O que está à minha direita protesta que não quer morrer, grita como um doido furioso, dá arrancos com o corpo como se pretendesse arrancar a cruz do chão e fugir com ela às costas, ao outro já o vejo resignado, tem a cabeça descaída, apenas geme. Penso que terei de lhe dizer alguma coisa que o console antes que isto se acabe. O bom que tem este lugar para os condenados é ser Jerusalém a última imagem que levam da vida. Não estamos sós. Entre os soldados romanos, os doutores da lei, os chefes dos sacerdotes, os anciãos, e a gente comum que acudiu ao espectáculo, distingo, embora mal porque as dores me estão nublando os olhos, minha mãe com algumas mulheres, e também, sim, está também Maria Madalena. E está João, mas aos outros não os vejo, terão fugido. À morte deveria assistir-se em silêncio, não este clamor de insultos, esta gritaria, este ódio insensato, estas palavras de escárnio: “Salva-te a ti mesmo se és o rei dos judeus, lá está aquele que deitava abaixo o templo e tornava a reconstruí-lo em três dias, que desça agora da cruz para nós vermos e acreditarmos nele”. Deus, Pai, Senhor, era isto necessário? Não te bastava a simples morte? Já que terei de perder a vida, perdoa-lhes tu o alvoroto, porque não sabem o que fazem. E eu? Virei a saber o que fiz no mundo? E tu, Deus, Pai, Senhor, tens a certeza de que tudo o que fizeste foi bem feito?



Palavra Segunda

Deus, Pai, Senhor, não sei como o poderei confessar, tão confundido e humilhado sinto o meu espírito. Compadecido do sofrimento do ladrão manso, não encontrei nada melhor para o consolar que prometer-lhe o paraíso. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, foram as minhas formais palavras. Mas logo me perguntei se a soberba, ou o orgulho, ou a vaidade, foi o que me levou a prometer algo que não estava em meu poder dar. Antes, numa das suas fúrias, o ladrão bravo tinha-me invectivado: “Então não és o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós!” Mas o ladrão manso repreendeu-o com estas justas palavras, em verdade inesperadas em pessoa da sua condição: “Não tens temor a Deus, tu que estás a sofrer a mesma condenação? Nós estamos aqui a pagar o justo castigo pelos actos que temos praticado, mas este não fez nada de mal”. E foi aí, Deus, Pai, Senhor, que caí em tentação: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, disse. Como pude eu esquecer-me do Juízo Universal que, esse sim, há-de separar o trigo do joio, o bom do mau, o virtuoso do pecador? Como pude esquecer o que disse o profeta: “Eu, o Senhor, penetro no íntimo do homem, e examino o seu coração, e a cada um dou segundo o seu procedimento.”? De todo modo, sou escravo da minha promessa, este homem irá comigo, comigo se apresentará à tua porta, e tu, Deus, Pai, Senhor, se quiseres receber-me a mim, terás também de recebê-lo a ele, porque eu, sozinho, não entrarei. Honra a promessa que fiz, já que neste suplício me desonraste.

Palavra Terceira

Deus, Pai, Senhor, quando, para castigar a prosápia dos homens que estavam levantando aquela torre com a intenção de chegar ao céu, lhes desordenaste a linguagem, talvez não tenhas pensado em todas as consequências do acto a que foste movido por uma ira semelhante à do dono da vinha quando dá por que os meliantes se dispõem a assaltá-la. Talvez este pensamento, na aparência fora de lugar, seja fruto do delírio, da angústia e das terríveis dores que me trespassam, mas, nesta hora última da minha passagem pela terra, não estaria bem que entre pai e filho ficassem coisas caladas. Aquela mulher que além vês, entre João e Maria Madalena, é minha mãe, tu o saberás melhor que ninguém. Nunca vi que lhe tivesses dado atenção em todos estes anos, mas não é disso que quero falar. O meu pensamento é outro. Quando confundiste a linguagem dos homens, houve palavras que se perderam, outras que tomaram caminhos desviados, outras que deixaram de pertencer a quem, tempos atrás, havia sido seu legítimo proprietário. Houve uma época, talvez na idade de ouro, falando a língua que tu confundiste, em que as mulheres podiam ser tão justas e piedosas quanto os homens fossem capazes de o ser, mas já não o eram quando eu vim ao mundo, porque, em hebraico, por exemplo, para justo e piedoso não há formas femininas equivalentes. Tendo eu que nascer forçosamente de uma mulher, como foi possível, Deus, Pai, Senhor, não teres reparado que ela não podia ser digna de me gerar, uma vez que não era piedosa nem justa? Rogar-te-ei que mo expliques quando nos encontrarmos. Não vejo nenhum dos meus irmãos. E aquele João, já não sei eu bem se é o meu discípulo, se o filho de Zebedeu, que tem o mesmo nome. Como quer que seja, vou dizer a frase que de mim se espera: “Mulher, aí tens o teu filho. João, aí tens a tua mãe.” Oxalá se dêem bem.



Palavra Quarta

Deus, Pai, Senhor, as palavras atropelam-se na minha cabeça, a ponto de já não saber se serão realmente minhas ou se as terei lido ou ouvido em alguma parte, e agora não faça mais que repeti-las de maneira mecânica, como uma criancinha que a duras penas aprende a falar. Pelo menos, tenho a certeza de que as palavras que irei proferir me sairão da boca somente para que se possa anunciar amanhã que as escrituras foram cumpridas uma vez mais. Escuta-as e diz-me se não tenho razão: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Quem me ouvir pensará que esta é a primeira vez que tu abandonas alguém e que por isso é de justiça que a pergunta seja lançada aos quatro ventos do alto desta cruz, como um aviso às pessoas. Mas tu, Deus, Pai, Senhor, desde o princípio do mundo que criaste não tens feito outra coisa que abandonar-nos. Recorda aqueles a quem, por causa de uma maçã e uma serpente, expulsaste do paraíso terrenal, recorda o espírito vingativo com que puseste diante da porta os querubins e uma espada de fogo para que eles não pudessem regressar. Crês tu, Deus, Pai, Senhor, que ao menos uma vez na vida, e em muitos casos todos os dias e a todas as horas, a espécie humana não teve motivos para fazer esta mesma pergunta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”? Que estás longe, dirás, que não podes acudir a tudo, que o homem foi feito para que governasse a sua vida sem depender de deus ou deuses, mas em teu nome, quando não tu mesmo, há quem afirme que nascemos servos e servos seremos até ao fim da vida porque tu és a causa primeira e porque, ao mesmo tempo que nos vai abandonando um a um, nos manténs agarrados na tua mão. Eu próprio te fiz a pergunta e tu não respondeste. Razão tinha aquele que disse que Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Acabe-se o homem e tudo se acabará. Abandonados já estamos, eles, eu, talvez também tu, que nem a ti próprio te podes valer. Até para alegadamente salvar a humanidade tiveste que derramar o meu sangue.



Palavra Quinta

Deus, Pai, Senhor, ainda que possa parecer extraordinário, ou mesmo incrível, que alguém à beira da morte, tal eu estou, sinta sede e imagine ter tempo e forças para beber um vaso de água, foi isto o que acabou de suceder. Talvez, em realidade, eu não tivesse autêntica sede, talvez tivesse sido apenas a recordação súbita da frescura de uma água que para sempre iria perder, a sensação de senti-la a descer por uma garganta que em breve se cerraria, o que me fez soltar aquele grito: “Tenho sede!” Sem que eu o esperasse, quase imediatamente uma esponja molhada me tocou a boca e o sabor da água misturada com vinagre me restituiu por um instante o alento. Olhando para baixo vi um homem que segurava uma cana, esta a que veio atado o misericordioso socorro, porque bem sabemos, os que nunca tivemos gelo para refrescar a água nas canículas do verão, que juntar-lhe um pouco de vinagre é remédio infalível para as piores sedes. O homem baixou a cana, tornou a empapar a esponja, e outra vez ma fez chegar aos lábios. Depois, porque os soldados romanos se acercavam com as suas lanças e faziam gestos ameaçadores, o homem retirou-se, segurando a cana ao ombro e levando o balde da água e vinagre na outra mão. Foi isto o que se passou e não qualquer outra história que venha a contar-se no futuro, como se o sofrimento de quem foi condenado a morrer na cruz não fosse já bastante para encher o livro. Talvez a alguém se lhe ocorra escrever, e por todos os modos repetir, que quiseram dar-me vinho misturado com fel ou com mirra. Não é verdade. E agora, Deus, Pai, Senhor, peço-te um último favor. Que não faças esperar este homem até ao dia do Juízo Final, que o chames a ti no preciso momento em que morrer, e que tu mesmo o vás receber à porta do paraíso. Reconhecê-lo-ás facilmente. Leva uma cana ao ombro e um balde com água e vinagre na outra mão.

Palavra Sexta

Deus, Pai, Senhor, tudo está cumprido. A cruz em que me pregaram não tardará a ter um cadáver nos seus braços, tal como, desde o princípio do mundo, foi por ti decidido que haveria de suceder. Será, por ser a minha, suficiente esta morte para a salvação da humanidade? Para salvá-la de quê ou de quem? De si mesma? Do inferno que tu mesmo fabricaste, uma vez que não havia mais ninguém que o pudesse fazer? Sou eu o cordeiro que Abel te sacrificava, ao mesmo tempo que desprezavas o trigo e o centeio que Caim te oferecia? Porquê? Não terás sido tu, Deus, Pai, Senhor, quem armou a mão de Caim para que na primeira página da história dos homens se anunciasse já o futuro que lhes estava guardado, sangue, morte, destruição e tortura desde esse dia e para sempre? E porquê ficou o crime de Caim sem castigo? Porquê teve Abel de morrer? Conhecerás tu, Deus, Pai, Senhor, o sentimento do remorso? Porquê, contra a simples justiça, prosperou o assassino, ao ponto de fundar uma cidade e ter descendência como qualquer homem comum, com as mãos limpas de sangue alheio? Sem querer faltar ao respeito, foste e serás sempre um deus dúplice, com duas caras, dois pesos e duas medidas.

Não creio que a minha morte vá servir para que os homens se salvem nem que, sem ela, se perdessem mais do que já estão. Não imaginas, Deus, Pai, Senhor, como os seres humanos são complicados e difíceis de entender. Seja como for, fiz tudo o que tinhas ordenado. Por isso está morrendo um homem nesta cruz.



Palavra Sétima

Deus, Pai, Senhor, nas tuas mãos entrego o meu espírito, que a carne que o continha, essa, ficará agarrada a este madeiro enquanto o que de mim resta não for levado ao túmulo, donde ao terceiro dia ressuscitarei, se foram certas as palavras que puseste na minha boca para que as ouvissem os que me seguiam. Censurou-mas Pedro, que me chamou de parte e disse: “Deus te livre de tal. Uma coisa assim nunca te há-de suceder.” E eu respondi-lhe: “Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho, porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens.” Foi isto o que eu lhe disse, mas agora, Deus, Pai, Senhor, agora que o meu espírito já deve ter chegado às tuas mãos, permite-me que procure, também eu, entender as coisas à maneira dos homens. Poderá o meu corpo, sem um espírito que o anime, levantar-se e sair do sepulcro, arredando a pedra que lhe tapa a entrada? E outra pergunta mais. Que sucederá comigo durante esses três dias? Apodrecerei? Será já com os primeiros sinais de podridão na cara e nas mãos que me apresentarei diante de Maria Madalena? Vivi no mundo como homem durante trinta anos, primeiro criança, depois adolescente, depois adulto, até este dia. Se te digo coisas que estás farto de saber, é para que compreendas por que razão aparecerei a Maria Madalena antes que a qualquer outro."

"Acabámos. Representei o meu papel o melhor que podia. 
O futuro dirá se o espectáculo valeu a pena. 
E agora, Deus, Pai, Senhor, uma última pergunta: 
Quem sou eu? 
Em verdade, em verdade, quem sou eu?"

"I Encuentro de Lectores de José Saramago" via Aula José Saramago

(Fotografia do grupo em plena actividade e partilha)

Via "Aula José Saramago", é partilhada a imagem e a menção à realização deste encontro  https://aulajosesaramago.wordpress.com/2015/03/29/celebrado-el-i-encuentro-de-lectores-de-jose-saramago/

"Celebrado el I Encuentro de Lectores de José Saramago"

"En la mañana de ayer, sábado 28 de marzo, el Aula José Saramago organizó el I Encuentro de Lectores de José Saramago en la biblioteca pública “António Ramos Rosa” de Faro.

En torno a la obra La Balsa de Piedra y como pretexto para abordar el Iberismo en el pensamiento del autor, lectores del Algarve, del Alentejo, de Andalucía y de Extremadura compartieron el interés por la obra del Nobel portugués.

Finalizado el Encuentro los participantes disfrutaron de un agradable paseo por a Vila-a-Dentro que incluyó el interesante Museo de la Ciudad.

Desde aquí felicitamos a los participantes y damos las gracias publicamente a la Cámara de Faro por su colaboración y especialmente a las responsables de la biblioteca pública Sandra y Fátima."

Publicado el 29 marzo, 2015 de Diego Mesa

Recordamos a edição n.º 22 - Março de 2014 - "Blimunda" Revista digital

(Capa da edição n.º 22 - Março de 2014)

Pode ser consultada e lida, aqui
em http://www.josesaramago.org/blimunda-22-marco-2014/

Agora que Março percorre os seus últimos dias, recordamos a edição do ano passado. Porque as palavras trazem memórias, e as memórias são para manter vivas, aqui é e será sempre o espaço das palavras ditas e escritas

Sinopse da edição, na página da Fundação José Saramago

"A Blimunda de março chega carregada de boas leituras. Ricardo Viel conversou demoradamente com Valter Hugo Mãe, Prémio José Saramago de 2007, sobre literatura e sobre a vida. A entrevista vem acompanhada de fotografias do realizador Miguel Gonçalves Mendes, que retratou Hugo Mãe na Islândia, cenário do seu mais recente romance (A Desumanização).
Da Póvoa de Varzim, onde no mês passado decorreu a 15ª edição das Correntes d´Escritas, Sara Figueiredo Costa e Ricardo Viel publicam as suas notas sobre os bastidores do principal encontro literário português.
Na sua coluna sobre cinema, João Monteiro aborda o tema da censura durante o Estado Novo.
Na secção infantil e Juvenil, editada por Andreia Brites, destaque para Maurice Sendak, o “desfazedor de impossibilidades”, quando a Kalandraka nos traz mais uma das suas obras; há ainda uma entrevista à escritora e jornalista Carla Maia de Almeida, a “corajosa” tradutora de Sendak para português.
Como é habitual, a revista encerra com a Saramaguiana, que neste mês – em que se assinala o Dia da Mulher – é ocupada por um ensaio de Pedro Fernandes de Oliveira Neto sobre as personagens femininas em Claraboia.
Boas leituras e até abril!"

sexta-feira, 27 de março de 2015

Citador #36 ... Oh, Meu Amor... um Revisor que mudando a "história" acrescentou algo à sua estória

Citador #36
... Oh, Meu Amor...
"História do Cerco de Lisboa
Caminho, 2.ª edição
Página 295

Um Revisor que mudando a "história" acrescentou algo à sua estória.

(...) quando todas as comportas do dilúvio se abriram sobre a terra e as águas da terra, e depois a calma, o largo estuário do Tejo, dois corpos lado a lado vogando, de mãos dadas, um diz Oh, meu amor, o outro, Que nada no futuro seja menos do que isto, e de repente ambos tiveram medo do que disseram e abraçaram-se, o quarto estava escuro, Acende a luz, disse ela, quero sabes se isto é verdade. 

Bibliografia Dramaturgica de José Saramago - Dia Mundial do Teatro

No Dia Mundial do Teatro, recupera-se via página da Fundação José Saramago, a identificação das obras publicadas e catalogadas no âmbito da Dramaturgia e/ou Teatro. Porém, não se pode esquecer que a riqueza da obra legada por Saramago, permitiu que, obras enquadradas em outros géneros literários, de onde se destacam os romances, contos e poesia, tivessem uma perfeita adaptabilidade na arte da encenação teatral. Deste facto, o "Memorial do Convento", e mais recentemente, "A Viagem do Elefante", ficam profundamente registados como magníficas obras literárias adaptadas ao teatro, demonstrando a versatilidade da escrita do autor. 

Aqui ficam as sinopses relativas à Dramaturgia, e que podem ser consultadas




"A Noite" - 1979
«Depois de ter feito jornais, escreveu sobre eles. Foi em “A Noite”, a primeira obra dramática de Saramago que o escritor dedica a Luzia Maria Martins, a pessoa que o “achou capaz de escrever uma peça”. Seria mesmo. A noite de que se fala nesta peça ficou para a história: de 24 para 25 de Abril. A acção passa-se na redacção de um jornal em Lisboa e autor avisa: “Qualquer semelhança com personagens da vida real e seus ditos e feitos é pura coincidência. Evidentemente.” Nem outra coisa seria de esperar. A ironia passa também pela história desta noite em que administradores e redactores entram em conflito. Uns a gritar que a máquina “há-de parar” e outros a defender que ela “há-de andar”. Quando o escreveu, Saramago já sabia que, para o bem e para o mal, a máquina tinha continuado a andar. “A Noite” chegou aos palcos em Maio de 1979 pelo Grupo de Teatro de Campolide. Com encenação de Joaquim Benite e direcção musical de Carlos Paredes, a peça contava, entre outros, com a participação de António Assunção no papel do chefe de redacção Abílio Valadares.»

("A Noite", esteve em cena no palco do Teatro da Trindade)



"Que farei com Este Livro?" - 1980
«A pergunta é formulada por Camões, quase no final da obra, e o livro a que se refere não poderia ser outro se não “Os Lusíadas”. Que farei com este livro? Saramago decidiu fazer mais uma peça de teatro, uma obra cuja acção decorre em Almeirim e Lisboa, entre Abril de 1570 e Março de 1572, ou “com menor rigor cronológico, mas com maior exactidão, entre a chegada de Luís de Camões e Lisboa, vindo da índia e Moçambique, e a publicação da primeira edição de ‘Os Lusíadas'”. Entre personagens históricas também há lugar para os tais representantes do povo e para o escritor, todos a acompanhar a edição de “Os Lusíadas”. Ou de um outro livro qualquer. “Se eu fosse esmolar pelas ruas e praças talvez me dessem dinheiro para comer. Mas não mo dariam se seu dissesse que o destinava a pagar ao livreiro que me imprimisse o livro.” Foi Camões ou Saramago a dizê-lo?»

("Que farei com Este Livro?" encenado por Joaquim Benite, 
no Teatro Municipal Joaquim Benite em Almada)



"A Segunda Vida de Francisco de Assis" - 1987
«”Grande sala. Ambiente geral discreto e severo. Mesa comprida, cadeirões, cofre, telex, vários telefones, um terminal de computador. (…) Está reunido um conselho.” Assim se entra no mundo da “política”, segundo José Saramago. “A Segunda Vida de Francisco de Assis” é mais uma incursão no drama, desta vez à volta de um tema bem actual: o capitalismo, a qualidade, as chefias, a política, as eleições, a bolsa, as valorizações e desvalorizações dos produtos e das pessoas. E uma luta entre a razão e a força. Estamos em 1986, já há computadores, mas muita coisa mudou. “As coisas já não são o que eram”, diz a certa altura uma das personagens. “Houve muitas mudanças e nem todas estão à vista. Algumas nunca saem daquele cofre. São as que convém manter em segredo. “E Francisco? Também mudou, claro. Nesta segunda vida, aprendeu algumas lições e aparece a lutar contra a pobreza. “É a pobreza que deve ser eliminada do mundo”, diz. Mais uma vez Saramago usa a ironia para fazer as suas críticas. “A pobreza não é santa. Tantos séculos para compreender isto. Pobre Francisco.”»

(as famosas capas amarelas)



"In Nomine Dei" - 1993
«”Entre o homem, com a sua razão, e os animais, com o seu instinto, quem, afinal, estará mais bem dotado para o governo da vida?” Não faz sentido? “Se os cães tivessem inventado um Deus, brigariam por diferenças de opinião quanto ao nome a dar-lhe, Perdigueiro fosse, ou Lobo-d’Alsácia? E no caso de estarem de acordo quanto ao apelativo, andariam, gerações após gerações, a morder-se mutuamente por causa da forma das orelhas ou do tufado do seu canino Deus? “Estas considerações podiam ser tomadas como ofensivas, mas José Saramago trata de se defender: “Não é culpa minha nem do meu discreto ateísmo se em Münster, no século XVI, como em tantos outros tempos e lugares, católicos e protestantes andaram a trucidar-se uns aos outros em nome de Deus – “In Nomine Dei” – para virem a alcançar, na eternidade, o mesmo Paraíso.” “Os acontecimentos descritos nesta peça representam, tão só, um trágico capítulo da longa e, pelos vistos, irremediável história da intolerância humana”, explica o autor. “Que o leiam assim, e assim o entendam, crentes e não crentes, e farão, talvez, um favor a si próprios. Os animais, claro está, não precisam.”»

(encenação, Sevilha 2007)



"Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido" - 2005
«Partindo da ópera de Mozart Don Giovanni ou O Dissoluto Punido em que Don Giovanni é condenado aos infernos por ter seduzido 2065 mulheres, José Saramago, em Don Giovanni ou O dissoluto absolvido reanaliza o mito: será Don Giovanni culpado? E o Comendador, e Dona Ana, e Dona Elvira, e Don Octávio? Serão um modelo de virtudes? Onde está a culpa? Onde está a virtude? Onde está a hipocrisia?»

(capa edição brasileira, Companhia das Letras)


quinta-feira, 26 de março de 2015

"As Intermitências da Morte" sob a análise de Ian Caetano (Diário da Manhã - Brasil)

 “Que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer, Nunca mais é demasiado tempo, mesmo tratando-se da morte, senhor primeiro-ministro, Creio que não me respondeu, eminência, Devolvo-lhe a pergunta, que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer, O estado tentará sobreviver, ainda que eu muito duvide de que o venha a conseguir, mas e a igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras, Ainda que a realidade as contradiga […], Que irá dizer o papa, Se eu o fosse, perdoe-me deus a estulta vaidade de pensar-me tal, mandaria pôr imediatamente em circulação uma nova tese, a da morte adiada, Sem mais explicações, À igreja nunca se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra especialidade, além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso.” 

José Saramago – As Intermitências da Morte

Capa da edição brasileira, editora Companhia das Letras

Pode ser consultado e lido, aqui 
em http://www.dm.com.br/revista/2015/03/no-dia-seguinte-ninguem-morreu.html

Link da edição em http://www.dm.com.br/

Ian Caetano, Especial para Diário da Manhã

"O único Nobel de literatura da língua portuguesa, José Saramago, é um autor que se destaca em diversos aspectos: pelo ingresso tardio como escritor “profissional” (no sentido de viver desta atividade, já estava quase aos 50 quando começou a prospectar esta carreira; tendo trabalhado antes como mecânico de automóveis, desenhista, jornalista e arriscou-se também em algumas traduções); pela produtividade (publicara seu primeiro livro ainda jovem, entre este e o segundo houve um hiato de 20 anos e, a partir daí, dentre romances, livros de poesia, crônicas, teatro e diários, publicou praticamente um por ano até o fim da vida) e, dentre diversas outras coisas, é aclamado por seu estilo, bastante próprio, de escrita. Mas não deixemo-nos crer que isto faz deste um autor de livros mornos, de best-sellers pouco elaborados em termos de conteúdo.

José Saramago destaca-se principalmente por sua capacidade de criação alegórica, já tendo reescrito a história de Cristo (O evangelho segundo Jesus Cristo); relatado a vida em um mundo onde, de uma hora para a outra, tornamo-nos cegos (Ensaio sobre a cegueira); contado a história sobre um homem que descobre ter um idêntico de si (O homem duplicado); e até se arriscado nas distopias, contando a história de habitantes que moravam em uma organização urbana de novo tipo chamada “centro” (A caverna), além de diversas outras histórias.

Comunista e ateu convicto, teve inúmeros problemas com o governo de sua própria terra – o que culminou em seu auto-imposto exílio nas ilhas canárias, da Espanha – e também com a igreja católica e com os judeus e com mais um sem fim de gente; mas não podia ser chamado um provocador, tão somente um homem de opinião forte e de ativa participação política. Apesar da vida juvenil penosa, como já reiterara em várias entrevistas quando perguntado, não era dado ao miseribilismo. Mas não estamos cá para tratar da biografia do autor, mas de uma de suas obras, e com Saramago é até difícil falar de alguma mais destacada, é como se todas compusessem um grandioso ensaio sobre os problemas da humanidade.

As intermitências da morte começa com um fato espantoso, “efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos 40 volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante”, que é o de que, após a virada do ano, durante as 24 horas do dia primeiro, ninguém morreu (naquele país).

Nisto o livro se desenrola, com autoridades tentando entender e administrar o ocorrido; agentes funerários coléricos, cobrando das autoridades que se instituíssem novas leis à obrigatoriedade dos trâmites fúnebres aos animais de estimação, uma vez que a matéria-prima desta profissão, os mortos humanos, havia cessado de existir naquele lugar; o colapso do sistema de “abrigos do feliz ocaso” (asilos), uma vez que já não se abriam novas vagas, e os velhos apenas ficavam mais velhos e os jovens também; a igreja, que agora perdera a carta da morte, tentando rearticular sua forma de dominação dos corpos; o contrabando dos moribundos para os limites da fronteira, com vistas a conseguir o já ansiado último suspi… e inúmeras outras situações compostas de um certo humor negro misturado de crítica do status e dos costumes.

O livro vai até sua quase metade narrando o estado de caos em que fica o país com a greve da morte. E eis que surge esta, en persona.

A partir daí basta dizer que a morte que é dotada de vida pela pena de Saramago é sarcástica, enigmática, animada por certa curiosidade das coisas humanas e tem consigo a mais interessante das personagens desta história, que é sua gadanha, com a qual ceifava vidas, mas que hoje, com os modernos métodos de produzir morte gerados pelo homem, está praticamente aposentada. Dizer mais que isto não é em nada produtivo. Basta advogar que nada falta a esta obra: a típica assinatura de Saramago em termos de escrita, as simultaneamente pertinentes e contra-intuitivas digressões do narrador, permeadas de filosofia ensaística e uma espécie de humor ora irônico, ora cansado.

As consequências e as razões de uma intermitência da morte lê-se nesta obra-prima."

Nota: o presente texto é republicado na integra, respeitando a ortografia do autor

quarta-feira, 25 de março de 2015

O olhar, ver e reparar... uma constante na obra de José Saramago

“Se podes olhar, vê. 
Se podes ver, repara”

Epígrafe imortalizada na obra "Ensaio sobre a Cegueira"



A famosa epígrafe, que consta já imortalizada na obra "Ensaio sobre a Cegueira", em que José Saramago, com precisão cirúrgica, desmonta estas semelhantes formas de ver, onde o ver, enquanto objecto e veículo de recepção de imagens, é tão só, ou o muito que possa representar, um estágio de profunda interpretação e descodificação do conhecimento. Olhar, ver e reparar...  
Em a "História do Cerco de Lisboa", datada de 1989, este já antecipa e interpreta neste excerto, a futura epígrafe, inscrita, quase de forma metafórica, no "Ensaio sobre a Cegueira" de 1995. 
Aqui fica em detalhe.


"Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista, cada qual com a sua intensidade própria, até nas degenerações, por exemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se encontra ensimesmada, situação comum nos antigos romances, ou ver e não dar por isso, se os olhos por cansaço ou fastio se defendem de sobrecargas incómodas. Só o reparar pode chegar a ser visão plena, quando num ponto determinado ou sucessivamente a atenção se concentra, o que tanto sucederá por efeito duma deliberação da vontade quanto por uma espécie de estado sinestésico involuntário em que o visto solicita ser visto novamente, assim se passando de uma sensação a outra, retendo, arrastando o olhar, como se a imagem tivesse de produzir-se em dois lugares distintos do cérebro com diferença temporal de um centésimo de segundo, primeiro o sinal simplificado, depois o desenho rigoroso, a definição nítida, imperiosa de um grosso puxador de latão amarelo, brilhante, numa porta escura, envernizada, que subitamente se torna presença absoluta. Diante desta porta, muitas e muitas vezes, tem Raimundo Silva esperado que lha abram de dentro, o ruído de disparo que faz o trinco eléctrico, e nunca como hoje teve uma consciência tão aguda, assustadora quase, da materialidade das coisas, um puxador que não é a sua simples superfície luzidia, polida, mas um corpo de cuja densidade pode aperceber-se até ao encontro com essa outra densidade, a da madeira, e é como se tudo isto fosse sentido, experimentado, palpado dentro do cérebro, como se os seus sentidos, agora todos eles, e não só a visão, reparassem no mundo por terem finalmente reparado num puxador e numa porta. O trinco estalou, os dedos empurraram a porta, dentro a luz parece fortíssima, e não o é, mas Raimundo Silva sente-se como se vogasse num espaço sem referências, tal essas atmosferas saturadas de claridade agora em moda nos filmes de sobrenatural ou de aparições de extraterrestres, com dispêndio excessivo de vóltios, espera que a telefonista dê um grito de terror ou caia em transe extático se pelo lado de fora de si próprio se manifesta, numa proliferação de tentáculos sensitivos ou numa irradiação de beleza suprema, a vibração caleidoscópica em que, por um instante que já se extingue, se tornou a sua sensibilidade."

em a "História do Cerco de Lisboa"
Caminho, 2.ª edição
Páginas 166 e 167

segunda-feira, 23 de março de 2015

Luis Pastor e a ACERT - Canções do Espectáculo Teatral baseado na obra de José Saramago "A Viagem do Elefante"



"Lançamento do CD/Livro
Luís Pastor | A cor da língua ACERT

30 Abr 2015 - 21:00 
Pequeno Auditório - Duração 90’ - M/6

Trigo Limpo Teatro ACERT
A partir do conto de José Saramago

Depois de ouvidas pelos mais de 30.000 espetadores que nos dois últimos anos assistiram à representação de A Viagem do Elefante e de terem passado por Tondela, Coimbra e Madrid sob a forma de concerto, chega agora a vez de Lisboa poder ouvir as canções compostas por Luís Pastor para os poemas de José Saramago.

O Pequeno Auditório do CCB recebe o cantautor espanhol acompanhado pelos músicos do A Cor da Língua ACERT e convidados para um concerto que celebra as palavras de José Saramago, aqui acompanhadas pelos sons do fado, da morna, da chula ou do flamenco, dando-lhes novas identidades, como se um novo corpo ganhasse vida para palmilhar outra viagem. O concerto serve de apresentação ao CD/Livro editado no final de 2014 pela ACERT com o apoio da Fundação José Saramago.

A Viagem do Elefante é uma adaptação do texto homónimo de José Saramago, numa produção do Trigo Limpo Teatro ACERT, em parceria com a Fundação José Saramago e a Flor de Jara. Entre 2013 e 2014, o elefante Salomão visitou mais de 25 localidades portuguesas e espanholas, numa viagem que terá continuidade já em 2015, contando, como aconteceu até aqui, com a participação das comunidade locais.

Produção Fundação José Saramago | ACERT"

sexta-feira, 20 de março de 2015

Blimunda #34 - Março de 2015 - Revista Digital da Fundação José Saramago



Sinopse, via Fundação José Saramago

"Testemunha de guerras e da intolerância do homem, em meados dos anos 90 o fotógrafo Sebastião Salgado viu-se com a “alma doente”. Essa dor levou-o a criar, com a ajuda da esposa, o Instituto Terra, replantar uma floresta, e sair pelo mundo em busca da beleza. A Blimunda deste mês dedica várias das suas páginas a Génesis, o seu mais recente projeto, e ao documentário O Sal da Terra, de Wim Wenders e Juliano Ribeiro, autores de um retrato íntimo do artista brasileiro.
Da 16ª edição das Correntes d’Escritas a revista publica um extenso dossier: uma entrevista com o escritor cubano Leonardo Padura, uma conversa pouco convencional com o português Manuel Jorge Marmelo e o alemão Michael Kegler, e os textos da espanhola Clara Usón e do português Bruno Vieira Amaral.
Na secção infantil e juvenil, uma entrevista da escritora e pedagoga brasileira Ana Maria Machado, para além das habituais notas de rodapé e de duas novas entradas no Dicionário de Literatura Infantil e Juvenil.
Na secção bimestral dedicada ao Cinema, o alvo é o polémico American Sniper, de Clint Eastwood, obra polémica numa Hollywood liberal.
Por fim, a terminar, o escritor açoriano e ex-adido cultural de Portugal em Madrid, João de Melo, assina um texto sobre a relação de José Saramago com a Espanha na secção Saramaguiana.

Eis os principais temas da Blimunda # 34, de março, nas suas mais de cem páginas. Boas leituras, e até abril."


Ensaio "Arquitectura de uma Cruxificação" de José Joaquín Parra - Baseado em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"

Via Aula José Saramago

"Dejamos aquí el enlace de este artículo (en español) de José Joaquín Parra, autor de la obra “Pensamiento arquitectónico en la obra de José Saramago”, publicado en diciembre de 2000 en la revista de la Asociación de Germanistas de Andalucía."

Aqui o PDF, 


quinta-feira, 19 de março de 2015

Ópera "Death with Interruptions" de Kurt Rohde - Baseado em "As Intermitências da Morte" (Recuperação)




"San Francisco, Estados Unidos, 17 mar (Lusa) -- A ópera "As intermitências da morte" ("Death with interruptions"), de Kurt Rohde, baseada no romance homónimo de José Saramago, estreia-se na quinta-feira, em San Francisco, no Estado norte-americano da Califórnia.
A ópera, com libreto do historiador Thomas Laqueur, tem duas récitas, já esgotadas, no ODC Theater, é encenada por Majel Connery e dirigida pela maestrina Matilda Hofman.
Esta não é a primeira vez que uma obra de Saramago é adaptada ao palco lírico, mas "As intermitências da morte" é a primeira ópera produzida pelo Left Coast Chamber Ensemble."


domingo, 8 de março de 2015

"Como o mundo recebeu o evangelho de Saramago" por Vitor Reis (via homoliteratus.com)

Uma visão sobre a obra "O Evangelho segundo Jesus Cristo, via
http://homoliteratus.com/como-o-mundo-recebeu-o-evangelho-de-saramago/

"Ao lançar O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago faria inimigos e tornaria sua fama fora dos círculos literários ainda maior. Só não contava com uma censura."

José Saramago em sua casa em Lanzarote, 1994. (Foto por Micha Bar Am)

"Em 1991, o português José Saramago já era um escritor consolidado em seu país e no exterior. Havia publiado uma sequência de romances memoráveis – Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) – até que na última década do século XX lançou seu livro mais polêmico: O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

A ideia do livro surgiu em 1987. Enquanto andava pelas ruas de Sevilla, o escritor julgou ver numa banca de jornais o título: “O evangelho segundo Jesus Cristo”. A história que passou a fermentar na mente do autor partia daquela que seria uma das cenas centrais do romance, Deus revelando o futuro de Jesus, assim como a religião fundada a partir da sua morte. A história que se contaria era de um Jesus fugindo de seu destino, embora Deus se adiantasse e fizesses os milagres que seriam atribuídos ao filho, de forma que este não pudesse escapar da cruz.

Entre outros trechos polêmicos, o livro apresenta um o messias nascido de carne e osso, filho de Maria e José, que teria sido um criminoso. Traz também um Jesus que vivia maritalmente com Maria de Magdala (Maria Madalena). No entanto, talvez o que mais chame atenção no livro sejam duas personagens: 1) Deus, cuja descrição de Salma Ferraz  no Dicionário de personagens da obra de José Saramago merece ser citada, “um exigente diretor da trama que não permite que nada se altere e que exige o máximo do protagonista Jesus”; 2) e o Diabo, o qual também recorreremos à descrição de Salma Ferraz, “não é um enganador do homem, nem um fanático inimigo de Deus, mas, às vezes, um parceiro dele, embora extremamente moderado e menos sentimental.”

Como definiu João Marques Lopes , biógrafo de Saramago, o livro é “a negação de toda uma cultura judaico-cristão que se transmudara de contrapoder em instituição dominante, repressora e autorreferencial contra a própria humanidade.”


"De onde veio a censura ao livro?"

"Entre as declarações mais polêmicas após o lançamento do livro está a do Arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueiras, de maio de 1992:

“Um escritor português, ateu confesso e comunista impenitente, como ele mesmo se apresenta, resolveu elaborar uma delirante vida de Cristo, na perspectiva da sua ideologia político-religiosa e distorcida por aqueles parâmetros. (…) A apregoada beleza literária, a existir nesta obra, longe de atenuante e muito menos dirimente, constitui circunstância agravante da culpabilidade do réu, seu autor.”

Outra crítica recebida veio do jornal Trás-Os-Montes: “Por dever de ofício, tive de ler um livreco pestilento e blasfemo onde o enfunado autor se enterra até as orelhas nas ocorrências que destila como falsário, aleivoso e cínico”; o tipo de crítica que não poderia realmente atingir Saramago.

Contudo, a verdadeira censura partiu de um frente menos provável, afinal já se poderia esperar críticas assim dos religiosos ou da imprensa mediana, com sua necessidade diária de gerar polêmica. O evangelho segundo Jesus Cristo foi suprimido de uma lista de livros propostos por instituições culturais. O responsável foi o subsecretário Sousa Lara, que alegou ser uma obra “profundamente polêmica, pois ataca princípios que têm a ver com o patrimônio religioso dos cristãos e, portanto, longe de unir os portugueses, desunia-os naquilo que é seu patrimônio espiritual”.

Tal exclusão levou Jack Lang, ministro da cultura e da educação da França, a se pronunciar: “não hesitamos em considerar este gesto como um ato inaceitável que atinge um dos maiores escritores do nosso tempo.”

É evidente que havia o aspecto da perseguição pessoal, posto que Saramago sempre se declarou comunista, além do fato de o escritor ter mexido em temas intocáveis de uma sociedade mais religiosa do que demonstra. E tudo isso fez com que em 1993, Saramago partisse para Lanzarote, uma ilha do arquipélago das Canárias, em uma espécie de exílio voluntário, muito embora tenha mantido pelo resto da vida sua casa em Lisboa.

Nem a tradição, o preconceito ou a ignorância puderam calar este que é um dos melhores romances do século XX, O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago."

Coordenador Miguel Koleff "Catedra Libre José Saramago" Universidad Nacional de Córdoba - Argentina (Programa 2015)

É com muito orgulho que aqui publico, o Programa 2015 da "Catedra Libre José Saramago".
Mais informação em http://catedrasaramago.blogspot.pt/2015/03/programa-2015.html?m=1

"Programa 2015
UNIVERSIDAD NACIONAL DE CÓRDOBA - FACULTAD DE LENGUAS

CATEDRA  LIBRE JOSÉ SARAMAGO

Coordinador Académico:  MIGUEL ALBERTO KOLEFF
Año Académico: 2015

«Teatro Saramaguiano y Acción Política»

Nada resulta más higiénico para la conciencia personal y colectiva que fustigar el poder; interrogarse acerca de comportamientos y actuaciones arbitrarias que jamás han descansado en la más mínima racionalidad democrática. Es evidente que existe –y que, además, es exigible- una necesidad cada vez más imperiosa en el mundo de solicitar argumentos cuando la arbitrariedad del poder se pone de manifiesto. Si tuviéramos que elegir entre los elementos de combate que despliega Saramago ante dicho fenómeno, no nos quedaría más remedio que quedarnos con la maestría del lenguaje (Joan Morales Alcúdia, Saramago por José Saramago)."

CRONOGRAMA TENTATIVO  Y SELECCION DE LECTURAS

Aula 1 20-03
Presentación de José Saramago y de la propuesta 2015

Palabras de Apertura a cargo de la Sra. Decana: Dra. Elena Pérez
Exposición a cargo del Dr. Miguel Koleff – Biografía de José Saramago y Periodización.

Aula 2 17-04
Propedéutica – Clara Ryfenholz

Aula 3 15-05
A noite (1979) 
Ximena Rodríguez

Aula 4 12-06
A segunda vida de Francisco de Assis (1987) 
Miguel Koleff

Aula 5 10-07
Que farei com este livro? (1989) 
 Alejandra Britos

Aula 6 21-08
Análisis de In Nomine Dei (1993) 
Victoria Ferrara

Aula 7 18-09
Análisis de In Nomine Dei (1993) 
Matías Omar Ruz y Alejandro Mingo

Aula 8 16-10
Análisis de Don Giovanni ou o dissoluto absolvido (2005) 
Graciela Perrén.

Aula 9 20-11
Evaluación

Palavras de José Saramago sobre as mulheres



Dia Internacional da Mulher
Via página de Facebook da Fundação José Saramago

sábado, 7 de março de 2015

"A Ti regreso a Mar" - "Mi voz en tu palabra" - Esperanza Fernández Canta a José Saramago

"A Ti regreso a Mar" - "Mi voz en tu palabra" - Esperanza Fernández Canta a José Saramago

"Suele ocurrir que la poesía nazca para ser leída en silencio, tal vez con pausas no marcadas en el poema aunque exigidas por la sensibilidad del lector, impelido a cerrar los ojos o mirar al infinito de una pared o al paisaje que se abre bajo las pinceladas de un cuadro. La poesía es caprichosa, unas veces fortalece el alma, otras se empeña en medir la humana dimensión o la consistencia de los sueños. Alguna rara vez, y este es el caso, demanda una voz que la ponga en el aire. Esperanza Fernández recogió el reto que al escribir lanzó José Saramago y, junto a grandes creadores, grabó con la voz más honda del flamenco los poemas suaves del escritor portugués."



Pilar del Río escreveu sobre este trabalho de Esperanza Fernández:

"A voz mais honda para os poemas mais suaves"
"Habitualmente a poesia nasce para ser lida em silêncio, talvez com pausas não marcadas no poema mas exigidas pela sensibilidade do leitor, impelido a fechar os olhos ou olhar o infinito de uma parede ou a paisagem que se abre sob as pinceladas de um quadro. A poesia é caprichosa, umas vezes fortalece a alma, outras empenha-se em medir a dimensão humana ou a consistência dos sonhos. Raramente, e este é o caso, pede uma voz que a ponha no ar. Esperanza Fernández acolheu o desafio que José Saramago lançou ao escrever, e em conjunto com alguns criadores, gravou com a voz mais honda do flamenco os poemas suaves do escritor português.
A harmonia fez-se possível e agora sabemos que José Saramago soa em flamenco com tanto duende y compás como Esperanza Fernández se faz poeta ao cantar. Um disco feliz para ouvir como se lê poesia: fechando os olhos, olhando o infinito de uma parede ou a paisagem que se abre sob as pinceladas de um quadro.
Esperanza Fernández e José Saramago, um dueto inesperado que desterra sombras e põe beleza na terra de todos, a nossa terra íntima."

Aconteceu em Novembro de 2013 - Hoje continua urgente e actual "3 debates a partir de A Noite de Saramago"

"A Noite" e o Jornalismo Hoje: Histórias entre o 4.º e o 5.º poder
Saramago no Teatro
"Um dia todos faremos jornais" - Redes Sociais: Nova condições para a livre expressão

Este foi o ciclo de debates que a Fundação José Saramago e o Teatro da Trindade/Fundação Inatel, desenvolveram em Novembro de 2013, também aproveitado a encenação da obra "A Noite".

Hoje, continua urgente
Hoje, é importante debater




Luis Pastor na iniciativa "Visitantes da Casa dos Bicos lêem José Saramago" #51

(Luis Pastor lê "Nessa Esquina do Tempo" em espanhol)


"Nesta esquina do tempo"

"Nesta esquina do tempo é que te encontro,

Ó nocturna ribeira de águas vivas

Onde os lírios abertos adormecem

A mordência das horas corrosivas.



Entre as margens dos braços navegando,

Os olhos nas estrelas do meu peito,

Dobro a esquina do tempo que ressurge

Da corrente do corpo em que me deito



Na secreta matriz que te modela,

Um peixe de cristal solta delírios

E como um outro sol paira, brilhando

Sobre as águas , as margens e os lírios."


Os Poemas Possíveis, 2ª edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1982

sexta-feira, 6 de março de 2015

Texto "Indignado" - Feira do Livro de Bogotá (Colômbia) - Apresentação da obra "Ensaio sobre a Cegueira" Novembro de 2004

Recuperação do texto publicado na revista "Blimunda" #10, de Março de 2013

"Em novembro de 2004 José Saramago visitou a Biblioteca Luís Ángel Arango, de Bogotá, para uma conversa com Jorge Orlando Melo, director da Biblioteca, a propósito do livro Ensaio sobre a Lucidez. No mês que antecede o início da Feira do Livro de Bogotá, que terá Portugal como país convidado, parte dessa conversa é agora publicada na Blimunda."

(José Saramago durante a "Feria Internacional del Libro" em Bogotá, Colômbia)

"A conclusão é muito fácil: os políticos preferem a abstenção ao voto em branco. Com a abstenção viveram sempre e encontraram uma forma de a justificar: pela chuva, pelo sol, pela praia, pela gripe, pela doença, ou simplesmente porque à pessoa não lhe apeteceu votar. Não é o mesmo que 40% de eleitores tenham intenção de votar e, porque as propostas existentes não lhes interessam, decidem votar em branco. 
Penso que não se pode dizer, com toda a ligeireza do mundo, que vivemos em democracia quando essa democracia não dispõe de meios nem de qualquer instrumento para controlar ou para impedir os abusos do poder económico. 
Acima daquilo a que chamamos o poder político há outro poder não democrático, o económico, que a partir de cima determina a vida do outro poder que está por baixo. 
Ao FMI manobram-no representantes das cinco grandes potência do mundo. Por isso para os outros países não há nada a fazer: ou se submetem, aceitam as condições, ou então fecha-se-lhes a torneira.
Isto parece-me muito claro e dou-vos um exemplo. Houve um tempo em que toda a ambição, a ilusão de um governo que se prometia aos cidadãos era o que se chamava então de pleno emprego, o que significaria emprego para toda a gente e para toda a vida. Era um ideal inalcançável, mas pelo menos falava-se disso. Em 20 anos, ou até em menos tempo, passámos do pleno emprego para a realidade brutal do emprego precário, a que eufemisticamente chamo mobilidade social. Como é que isto aconteceu? 
No fundo, é como um exercício de prestidigitação assombrosa, pelo meio do qual o poder económico, muito respeitado, fez saber aos governos que precisamos de ter as mãos livres, que se temos de encerrar umas fábricas, pois que as cerremos e não peçamos contas, levamo-las para outro país onde os salários são mais baixos e onde os horários de trabalho não têm limite. Então, como uma ordem que cai do céu, pouco a pouco, sem nos darmos conta, passamos ao emprego precário. Isto fez-se de maneira tal que já ninguém recorda, ou comportamo-nos como se não nos recordássemos de que houve um tempo, não tão distante assim, em que se falava de emprego para toda a gente. 
Agora vivemos nisto. Empresas que contratam trabalhadores por uma hora, aquilo a que em Espanha se chama contrato-lixo. O pior de tudo é que é como se nos tivessem arrancado um dente com anestesia. Arrancaram o dente, não sofremos nada, mas agora sentimos que há um vazio que é a preocupação, o medo de perder o trabalho. Isso é o que chamamos de democracia. É uma fachada. Não quero dizer que por trás dessa fachada não exista nada, pois todos os dias se constrói, todos os dias se tenta e todos os dias algo se consegue, mas não no fundamental, que constitui o velho e permanente problema: o poder. Quem detém o poder, como chegou ao poder, para que fim o tem, e o que há que aceitar, porque é uma evidência que os governos se transformaram nos comissários políticos do poder económico, o concubinato entre o poder político e o poder económico existe desde sempre. Creio que a democracia é o menos mau de todos os sistemas políticos, mas poderíamos reinventá-la, e para isto apenas se requer que lhe demos os meios adequados, que são as convicções dos cidadãos, a capacidade de intervenção de cada um de nós para que a democracia, simplesmente, seja como deve ser, e a verdade é que não o é.
Neste livro há uma frase que, no fundo, resume o romance, condensa-o, concentra-o em pouquíssimas palavras: «Quando nascemos é como se assinássemos um pacto para toda a vida, mas pode chegar o momento em que nos perguntemos quem é que assinou isto por mim». Creio que isso nos acontece. A Saulo, que perseguia os cristãos, de repente aparece-lhe uma luz imensa, cai do cavalo e escuta uma voz que diz: «Por que me persegues, Saulo?». E aí converteu-se. Claro que não aspiro a tanto, não sou tão ingénuo a ponto de poder dizer que com esta frase mudei o mundo, mas vai chegar o dia em que perguntaremos quem é que assinou isto por mim e não se ouvirá uma voz que diga por que me persegues, mas talvez possamos dizer-nos uns aos outros «óptimo, andamos a pensar nisso». 
Há uns anos reuniram-se dez escritores e filósofos para debater algo tão interessante e ao mesmo tempo tão inútil como apresentar dez propostas para o milénio, como se o milénio estivesse preocupado com as propostas, e eu era um deles. Todos tomaram o tema proposto de forma séria e apresentaram propostas para o milénio, evidentes quase todas, e eu, que sou muito mais consciente das minhas próprias limitações, propus regressar a essa coisa tão simples, tão estupenda, tão magnífica, tão deslumbrante, que é o pensamento. Pensar, regressar à filosofia. 
Agora mesmo, em todo o mundo estão a realizar-se milhares de congressos, milhares de mesas redondas, milhares de simpósios, e posso assegurar, sem medo de me equivocar, que há uma única coisa que não se está a discutir: a democracia. É como se fosse um dado descoberto de uma vez por todas e para sempre, e portanto sobre ele não vale a pena falar e eu digo que, pelo contrário, sim, vale a pena, falar interminavelmente, pensar, reflectir, discutir com os nossos entes mais próximos, clarificar coisas. Nós vivemos no que se pode chamar hoje, sem nenhum exagero, um deserto de ideias; não há ideias, não há ideias novas, não há ideias que mobilizem, não há ideias que façam levantar as pessoas da sua resignação, parece que todos nos resignámos a uma espécie de fatalidade que não aceita mudanças. Mas as ideias tão-pouco nascem assim do nada, é a própria sociedade a que tem de gerá-las e, quando tal ocorrer, começaremos a ter alguma coisa. 
Se a vida privada acabou de alguma forma, a consciência privada, para usar o mesmo termo técnico, sofreu um atentado semelhante. A liberdade, e agora falo da liberdade de consciência, por vezes arrisca-se a converter-se em algo utópico, com muito pouco conteúdo. 
Tivemos liberdade para torturar, para matar, para assassinar, e tivemos liberdade para lutar, para ir em frente, para tentar manter a dignidade. É aterrador o uso que se pode fazer de uma palavra. O importante é que exista a presença de um sentido de responsabilidade cívica, de dignidade pessoal, de respeito colectivo; se se mantém, se se constrói, se não se aceita cair na resignação, na apatia, na indiferença, isto pode ser uma semente para que algo mude. 
O que vai provocar a palavra semente? Algo que amanhã dará flores e frutos. Acredito muito que, se houver debate, é possível mudar as coisas, mas não podemos limitar-nos a esse debate que por vezes aparece nos meios de comunicação, que é uma coisa entre uma determinada família de comunicadores, de jornalistas, de políticos também, que no fundo manipulam os conceitos, como temos visto, como é claro para todo o mundo. Enquanto não ser puder mudar o que está por cima (o poder económico), vai ser muito difícil. 
Hoje, quando passámos ao lado de um cemitério de Bogotá, falava com a minha mulher sobre o epitáfio que escreveria na lápide, supondo que os restos ficassem ali, e então disse que poria «Indignado». E realmente digo indignado por dois motivos: um pessoal e o outro egoísta. Indignado por estar morto, não há direito, realmente, e o outro, pior, indignado por ter passado pela vida e não ter podido mudá-la. Isto é terrível."