Recuperação do texto publicado na revista "Blimunda" #10, de Março de 2013
"Em novembro de 2004 José Saramago visitou a Biblioteca Luís Ángel Arango, de Bogotá, para uma conversa com Jorge Orlando Melo, director da Biblioteca, a propósito do livro Ensaio sobre a Lucidez. No mês que antecede o início da Feira do Livro de Bogotá, que terá Portugal como país convidado, parte dessa conversa é agora publicada na Blimunda."
(José Saramago durante a "Feria Internacional del Libro" em Bogotá, Colômbia)
"A conclusão é muito fácil: os políticos preferem a abstenção ao voto em branco. Com a abstenção viveram sempre e encontraram uma forma de a justificar: pela chuva, pelo sol, pela praia, pela gripe, pela doença, ou simplesmente porque à pessoa não lhe apeteceu votar. Não é o mesmo que 40% de eleitores tenham intenção de votar e, porque as propostas existentes não lhes interessam, decidem votar em branco.
Penso que não se pode dizer, com toda a ligeireza do mundo, que vivemos em democracia quando essa democracia não dispõe de meios nem de qualquer instrumento para controlar ou para impedir os abusos do poder económico.
Acima daquilo a que chamamos o poder político há outro poder não democrático, o económico, que a partir de cima determina a vida do outro poder que está por baixo.
Ao FMI manobram-no representantes das cinco grandes potência do mundo. Por isso para os outros países não há nada a fazer: ou se submetem, aceitam as condições, ou então fecha-se-lhes a torneira.
Isto parece-me muito claro e dou-vos um exemplo. Houve um tempo em que toda a ambição, a ilusão de um governo que se prometia aos cidadãos era o que se chamava então de pleno emprego, o que significaria emprego para toda a gente e para toda a vida. Era um ideal inalcançável, mas pelo menos falava-se disso. Em 20 anos, ou até em menos tempo, passámos do pleno emprego para a realidade brutal do emprego precário, a que eufemisticamente chamo mobilidade social. Como é que isto aconteceu?
No fundo, é como um exercício de prestidigitação assombrosa, pelo meio do qual o poder económico, muito respeitado, fez saber aos governos que precisamos de ter as mãos livres, que se temos de encerrar umas fábricas, pois que as cerremos e não peçamos contas, levamo-las para outro país onde os salários são mais baixos e onde os horários de trabalho não têm limite. Então, como uma ordem que cai do céu, pouco a pouco, sem nos darmos conta, passamos ao emprego precário. Isto fez-se de maneira tal que já ninguém recorda, ou comportamo-nos como se não nos recordássemos de que houve um tempo, não tão distante assim, em que se falava de emprego para toda a gente.
Agora vivemos nisto. Empresas que contratam trabalhadores por uma hora, aquilo a que em Espanha se chama contrato-lixo. O pior de tudo é que é como se nos tivessem arrancado um dente com anestesia. Arrancaram o dente, não sofremos nada, mas agora sentimos que há um vazio que é a preocupação, o medo de perder o trabalho. Isso é o que chamamos de democracia. É uma fachada. Não quero dizer que por trás dessa fachada não exista nada, pois todos os dias se constrói, todos os dias se tenta e todos os dias algo se consegue, mas não no fundamental, que constitui o velho e permanente problema: o poder. Quem detém o poder, como chegou ao poder, para que fim o tem, e o que há que aceitar, porque é uma evidência que os governos se transformaram nos comissários políticos do poder económico, o concubinato entre o poder político e o poder económico existe desde sempre. Creio que a democracia é o menos mau de todos os sistemas políticos, mas poderíamos reinventá-la, e para isto apenas se requer que lhe demos os meios adequados, que são as convicções dos cidadãos, a capacidade de intervenção de cada um de nós para que a democracia, simplesmente, seja como deve ser, e a verdade é que não o é.
Neste livro há uma frase que, no fundo, resume o romance, condensa-o, concentra-o em pouquíssimas palavras: «Quando nascemos é como se assinássemos um pacto para toda a vida, mas pode chegar o momento em que nos perguntemos quem é que assinou isto por mim». Creio que isso nos acontece. A Saulo, que perseguia os cristãos, de repente aparece-lhe uma luz imensa, cai do cavalo e escuta uma voz que diz: «Por que me persegues, Saulo?». E aí converteu-se. Claro que não aspiro a tanto, não sou tão ingénuo a ponto de poder dizer que com esta frase mudei o mundo, mas vai chegar o dia em que perguntaremos quem é que assinou isto por mim e não se ouvirá uma voz que diga por que me persegues, mas talvez possamos dizer-nos uns aos outros «óptimo, andamos a pensar nisso».
Há uns anos reuniram-se dez escritores e filósofos para debater algo tão interessante e ao mesmo tempo tão inútil como apresentar dez propostas para o milénio, como se o milénio estivesse preocupado com as propostas, e eu era um deles. Todos tomaram o tema proposto de forma séria e apresentaram propostas para o milénio, evidentes quase todas, e eu, que sou muito mais consciente das minhas próprias limitações, propus regressar a essa coisa tão simples, tão estupenda, tão magnífica, tão deslumbrante, que é o pensamento. Pensar, regressar à filosofia.
Agora mesmo, em todo o mundo estão a realizar-se milhares de congressos, milhares de mesas redondas, milhares de simpósios, e posso assegurar, sem medo de me equivocar, que há uma única coisa que não se está a discutir: a democracia. É como se fosse um dado descoberto de uma vez por todas e para sempre, e portanto sobre ele não vale a pena falar e eu digo que, pelo contrário, sim, vale a pena, falar interminavelmente, pensar, reflectir, discutir com os nossos entes mais próximos, clarificar coisas. Nós vivemos no que se pode chamar hoje, sem nenhum exagero, um deserto de ideias; não há ideias, não há ideias novas, não há ideias que mobilizem, não há ideias que façam levantar as pessoas da sua resignação, parece que todos nos resignámos a uma espécie de fatalidade que não aceita mudanças. Mas as ideias tão-pouco nascem assim do nada, é a própria sociedade a que tem de gerá-las e, quando tal ocorrer, começaremos a ter alguma coisa.
Se a vida privada acabou de alguma forma, a consciência privada, para usar o mesmo termo técnico, sofreu um atentado semelhante. A liberdade, e agora falo da liberdade de consciência, por vezes arrisca-se a converter-se em algo utópico, com muito pouco conteúdo.
Tivemos liberdade para torturar, para matar, para assassinar, e tivemos liberdade para lutar, para ir em frente, para tentar manter a dignidade. É aterrador o uso que se pode fazer de uma palavra. O importante é que exista a presença de um sentido de responsabilidade cívica, de dignidade pessoal, de respeito colectivo; se se mantém, se se constrói, se não se aceita cair na resignação, na apatia, na indiferença, isto pode ser uma semente para que algo mude.
O que vai provocar a palavra semente? Algo que amanhã dará flores e frutos. Acredito muito que, se houver debate, é possível mudar as coisas, mas não podemos limitar-nos a esse debate que por vezes aparece nos meios de comunicação, que é uma coisa entre uma determinada família de comunicadores, de jornalistas, de políticos também, que no fundo manipulam os conceitos, como temos visto, como é claro para todo o mundo. Enquanto não ser puder mudar o que está por cima (o poder económico), vai ser muito difícil.
Hoje, quando passámos ao lado de um cemitério de Bogotá, falava com a minha mulher sobre o epitáfio que escreveria na lápide, supondo que os restos ficassem ali, e então disse que poria «Indignado». E realmente digo indignado por dois motivos: um pessoal e o outro egoísta. Indignado por estar morto, não há direito, realmente, e o outro, pior, indignado por ter passado pela vida e não ter podido mudá-la. Isto é terrível."