Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Saramago e a força que sentia do seu público - "Sou uma pessoa amada"

Muitas vezes me questionei:
Qual seria a sensação que Saramago experimentava, ao receber do seu público, o reconhecimento. Como é que a mensagem era recepcionada e intuída?
Saramago, autor tardio dizem muitos, para mim, escritor que chegou até ao povo quando teria de ter chegado. Da entrevista dada à revista Visão (16/01/2003, com José Carlos de Vasconcelos), extrai-se este sentimento "Sou uma pessoa amada, tenho a certeza absoluta".
A atribuição do prémio Nobel, trouxe muitos leitores, mais internacionalização da obra, mas livros traduzidos em mais línguas, mais solicitações, mais exaustão pessoal, mais respostas às mesmas perguntas.
Lê-se na entrevista as recepções por este mundo fora, com centenas e milhares de pessoas para o ouvirem, verem, pedirem um autógrafo, o tal que seja especial - lembro-me de estar em longas filas nos idos tempos de noventas, na feira do livro de Lisboa, no Parque Eduardo VII... realmente o povo tinha por ele uma enorme gratidão pela obra e pelas palavras.
Hoje, nos fins de 2014, do vários cantos deste planeta chegam relatos e memórias, evocações e lembranças.
Os Saramaguianos e as Saramaguianas, encetaram em si um desígnio muito especial - o homem morreu mas a obra tem descententes.




Entrevista de José Carlos de Vasconcelos para a revista Visão em 16/01/2003
(…)
E andaste aí pelo mundo, quase de uma ponta a outra. Como é que resististe, até fisicamente?
Bom, não foi fácil. E continua. Ainda no ano passado, só nos Estados Unidos estivemos, eu e a Pilar, quase um mês, percorrendo-os de uma costa a outra. Em meados de Dezembro chegámos de uma volta de mais um mês, por Portugal, Espanha, Itália. E os convites não param.

Isso tudo, além de muito cansativo, não é, a partir de certa altura, muito chato? Ou os momentos gratificantes fazem com que valha a pena?
A atitude com que vou para essas coisas é muito parecida com a que te referi quanto às entrevistas. Vou contrariado, mas à terceira palavra já estou onde tenho de estar. E essas coisas dão-me muitas alegrias. A maior, perdoe-se-me a vaidade ou presunção, é saber que para centenas ou milhares de pessoas que estão ali, o que lhes vou dizer tem importância. Podem estar enganadas, ou iludidas, mas tem importância para elas. Quando vou a Bogotá e me encontro com um teatro repleto, com 1700 pessoas lá dentro para ouvir falar de livros, e cerca de mil pessoas cá fora a protestarem por não conseguirem entrar; quando na grande praça de Cidade do México apresento um livro (A Caverna) para dez mil pessoas; quando em La Antigua, na Guatemala, havia mais de mil pessoas; quando vou dar uma conferência e me encontro com uma fila de gente que dava a volta toda a um quarteirão para entrar numa sala que já estava cheia; quando em Buenos Aires, a autografar livros na Livraria Ateneo, havia cá fora, sob chuva intensa, dezenas de pessoas à espera de conseguirem entrar – então, sem nenhuma vaidade, tenho de concluir que sou uma pessoa amada. Não é estimada – é amada. Se há alguma coisa de que tenho a certeza absoluta é deste afecto especial que liga muito dos meus leitores, apetecia-me dizer quase todos, em relação ao escritor, mas sobretudo em relação à pessoa. E isso, que acontece também em Espanha, na Itália, no Brasil, em toda a parte, dá-me a maior alegria.

A que o atribuis, dado haver escritores também muito lidos e famosos com que isso não acontece? Ao próprio tema dos livros e às tais opiniões que neles também dás?
Julgo que sim. Essas pessoas não me conhecem, não vieram aqui a casa ver como eu era. Devem é ter encontrado nos livros uma voz e assuntos que lhes interessavam. E um certo tom, a minha tal presença nos romances que escrevo, a implicação constante em cada página, em cada linha, em cada palavra. Eu há muito digo que todos os livros, e já agora em particular os meus, deviam levar uma cinta com estas palavras: atenção, este livro leva uma pessoa dentro. É isto no fundo: os meus leitores encontram nos meus livros a pessoa que eu sou e gostam. Que queres que eu te faça (risos) e que queres te diga mais? Sou um homem de sorte, até nisso sou um homem de sorte.

Há algum caso, alguma história, que te tenha marcado mais?
É muito difícil. Tenho conversado com Pilar sobre isto: as Obras Completas estão incompletas porque lhes falta o outro lado, ou como agora se diz a recepção dos leitores. Gostaria, depois de já cá não estar, que a Pilar organizasse, para publicar, cartas absolutamente extraordinárias, muitas vezes de pessoas sem qualquer preparação académica, de uma emoção raras, que me chegam de toda a parte. E que juntasse aos 30 e tal volumes que eu deixe escritos um ou dois com essas cartas.

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