Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

"Carta aos meus Avós - A partir de Saramago" de André Raposo e Maria Alice Amaro Gois


"Uma homenagem às avós, aos avôs, aos avós. 
Uma carta que tem as palavras que não são as deles, mas que são para eles. 
A partir da brilhante crónica "Carta para Josefa, minha avó" escrita por José Saramago. 

Com: André Raposo & Maria Alice Amaro Gois

Realização: André Raposo & João Descalço
Assistente de Realização: Cristiana Morais
Cinematografia & Edição: João Descalço"

Link original, via Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=NkbAfHXZKRw#t=35

"No ano de 1968, José Saramago publicou no jornal A Capital, de Lisboa, a crónica Carta a Josefa, minha avó. Anos mais tarde, ela seria publicada no livro Deste Mundo e do Outro. Abaixo segue a reprodução da página do jornal A Capital em que foi originalmente publicado o texto."


"Carta para Josefa, minha avó"

"Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e de formadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com  isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»


É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua." 

José Saramago, jornal A Capital, 1968

Ana Sousa Dias entrevista José Saramago (Lanzarote, fim do Verão de 2006)

Blimunda #5 com destaque à entrevista de Ana Sousa Dias (Lanzarote, fim do Verão de 2006)


"Ao 5.º número da revista Blimunda abrimos espaço para um dos temas que mais está presente, muitas vezes como ferramenta de construção narrativa ou de descrição de espaços e ambientes na literatura universal, a comida. Dos primórdios aos tempos modernos, é esta viagem que aqui pretendemos trazer mostrando a importância que os alimentos, dos mais rudimentares aos mais sofisticados, tiveram na evolução social. Nunca esquecendo a crise alimentar que atravessamos, com consequências que em alguns casos ainda não conseguimos prever.

Este é também um número em que damos lugar às entrevistas. Na secção infantil e juvenil, com uma das mais importantes autoras portuguesas, Alice Vieira. Com mais de 40 anos de carreira e mais de 30 títulos publicados, é de literatura que se fala, sem preconceitos e olhando para o futuro.

No segundo caso, recuperando as palavras de José Saramago numa entrevista concedida a Ana Sousa Dias em Lanzarote, no ano de 2006, acompanhadas pelas belíssimas fotografias de João Francisco Vilhena que captam o espírito da terra que viu nascer obras maiores da literatura universal.


Esta entrevista funciona como preâmbulo para a próxima edição da Blimunda, a de novembro, mês em que comemoramos os 90 anos de José Saramago. Essa será uma edição especial, parte integrante da programação que a Fundação José Saramago anunciará nos próximos dias para celebrar o nascimento do Escritor, do Homem a quem nunca poderemos dizer adeus."

Aqui para ler e descarregar a Revista "Blimunda",
em http://www.josesaramago.org/blimunda-5-outubro-2012/


(Capa da revista, número 5)


Entrevista da jornalista Ana Sousa Dias
Publicada na revista Egoísta de Março de 2007
Aqui para consulta, em http://www.anasousadias.com/jose-saramago-2/

"A casa é sossegada, centrada na ampla cozinha, e está cheia de cavalos – pequenos objectos, delicadas esculturas, desenhos. Há cavalos sobre mesas, nas estantes, nas paredes. A explicação para este, digamos, problema está n’ “As Pequenas Memórias” livro que não estava ainda publicado quando a entrevista foi feita.

Antes de franquear a porta da casa de Pilar e Saramago, há que desembarcar em Lanzarote, a ilha mais oriental das Canárias, salva da aridez por uma perseverante operação de dessalinização da água do mar, salva da avidez da especulação por apertadas regras urbanísticas iniciadas por Cesar Manrique [1919-1992]. O artista moldou amorosamente o território e deixou uma herança de respeito pela ecologia do lugar, hoje considerado Reserva da Biosfera. A marca mais óbvia está na Fundação com o seu nome, na casa onde viveu, mas também no rigoroso funcionamento do turismo em Timanfaya ou no aproveitamento espetacular dos Jameos del Agua e de outros espaços esculpidos pela natureza.

Este é ainda um mês quente do fim do Verão de 2006 e todos os dias há notícias de homens e mulheres exaustos que chegam às ilhas Canárias em frágeis embarcações sobrelotadas, arriscando tudo para trocar a pobreza exangue de África por uma miragem europeia.

A ilha é negra e dura, feita de lava recente, e cada planta protegida dos ventos alísios por um muro de pedra parece um milagre. Dirá Saramago que para pintar a ilha de verde basta um pouco de água, e fará desta imagem uma parábola que caberia, inteira, nos livros que escreve.

No andar de cima da casa fica o lugar onde José Saramago escreve, em baixo o escritório de Pilar, com equipamento para os programas de rádio que faz regularmente em directo e um computador onde se sucedem os e-mails relacionados com ambos.

Do outro lado da rua, seis jovens catalogam os 20 mil livros do casal, finalmente arrumados, na novíssima biblioteca em cujo jardim foi plantada uma frágil haste de oliveira portuguesa. Todos sabem que em pouco tempo a haste se fará árvore, porque assim foi no jardim da casa, onde pequenos rebentos se tornaram romãzeiras, alfarrobeiras, palmeiras, uma altíssima araucária.

A entrevista é gravada na sala, sem interrupções, e começa com Saramago a explicar os cavalos. “Vou ler-te”, anuncia. Pega numa prova d’  “As Pequenas Memórias”: “O meu problema com os cavalos é mais pungente, daquelas coisas que ficam a doer para toda a vida na alma de uma pessoa. Uma irmã da minha mãe, Maria Elvira de seu nome, estava casada com um certo Francisco Dinis…”


Lanzarote é tão diferente da Azinhaga, onde nasceste, uma terra ribatejana fértil, com imensa água, e tão diferente de Lisboa. Os lugares onde vives reflectem-se na sua escrita?
Há um velho romance que publiquei em 1947, a “Terra do Pecado”, que devia chamar-se “A Viúva”, que nunca mais li mas recordo-me que passa muito pela Azinhaga. A classe social ali apresentada não é a minha, são grandes proprietários rurais, que conhecia e sabia como viviam. Algumas situações vividas por mim como criança aparecem no livro. Na minha poesia pode encontrar-se alusões, de forma indirecta, transposta, a ambientes campestres.

Muitos anos mais tarde, aparece o “Levantado do Chão”. O primeiro projeto foi instalar-me na Quinta da Cruz da Légua, na aldeia entre a Azinhaga e Santarém, por onde eu tinha passado. Era um microcosmos, interessava-me saber como eram as relações de trabalho e de dependência, a presença da Igreja. Conhecia demasiado bem a Azinhaga e não queria correr o risco de fazer retratos de pessoas próximas. É nesta altura que se me apresenta o Alentejo, o Lavre. Estávamos em 75, com toda a confusão, perdi o meu trabalho no Diário de Notícias e pensei ir para o Lavre. Escrevi uma carta a perguntar se havia maneira de me acomodar lá e responderam-me: “venha imediatamente, tem todas as condições para estar aqui tranquilo”. Fiquei num quarto de um prédio de um antigo proprietário – aquilo tinha sido ocupado – e foi aí que eu recolhi material, falei com muita gente. O livro está aí.

Estás a falar sobretudo das pessoas, a pergunta era sobre os lugares.
Sim, são pessoas e também o lado físico da questão: o sítio, o lugar, as casas, a paisagem. A primeira ideia a seguir ao “Levantado do Chão” – ficou atrás o “Manual de Pintura e Caligrafia”, mas deixemo-lo – foi para “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Assustou-me a ideia de meter-me no sarilho de falar de Fernando Pessoa e de Ricardo Reis, com os pessoanos todos de Portugal de olho posto no livro à procura dos disparates. Tinha-me entretanto aparecido a ideia do “Memorial”, que nasceu simplesmente de uma frase dita diante do Convento a três ou quatro pessoas que estavam comigo. Disse, olhando para o Palácio (aquilo que a gente vê de fora é o palácio, não é o convento): “Gostava de meter isto um dia dentro de um romance”. E disse isto em voz alta. Se eu tivesse pensado apenas, talvez o romance não existisse. Mas tinha assumido publicamente um compromisso. Então deixei o Ricardo Reis em paz e atirei-me ao “Memorial do Convento” e do balanço adquirido veio “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Os dois estão aí.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” passa-se em Lisboa.
É Lisboa mas não a Lisboa da ocasião, é um pouco da minha própria memória. Nasci em 1922, aquilo é 1935 ou 36, portanto andava pelos meus 13 anos a caminho dos 14. Algumas coisas são autênticas recordações de ambientes, não de factos.

Numa conversa com uma jornalista brasileira em Lisboa, estávamos a dizer que os portugueses têm sempre um pé cá e outro lá. E eu de repente disse: “É assim como se a península se tivesse ido embora”. Uma frase solta, desta maneira. Continuei a pensar nela, e nasce “A Jangada de Pedra”. Aparece na altura da integração dos dois países ibéricos na Europa e o livro foi tomado como um ataque porque aparentemente assim é: se a península se vai embora é porque não quer estar na Europa. Um crítico catalão escreveu um artigo em que diz “o que o José Saramago quer é levar a Europa para o sul, a Península Ibérica puxando a Europa para o sul”. E de facto…

É aí que a Espanha se junta a Portugal na tua obra?
Sim, mas repara que isso tem uma relação forte com algo que eu andava a dizer já há tempos: em primeiro lugar sou português, depois sou ibérico, e em terceiro lugar, se me apetecer, sou europeu.

E apetece-te?
Ninguém sabe o que é a Europa. O Eduardo Lourenço disse uma vez que a Europa não existe. O problema sempre foi este: quem manda? Um manda e os outros vão atrás, a contragosto ou não, não têm outro remédio. Agora é menos fácil identificar quem manda mas a cabeça não está em Paris nem em Londres, está em Berlim. O Umberto Eco disse que dentro de 50 anos a Europa será islâmica. Pode acontecer, outras coisas se viram no passado.

A ideia da Península Ibérica disparada para o sul era um bocado ingénua, evidentemente, mas a gente também vive da ingenuidade. Falamos tanto do sul, o sul vítima da exploração, o sul como ideal, o sul como lugar do paraíso, para onde correm os turistas sempre… era como se a Península Ibérica, colocando-se ali, fosse o embrião de um desenvolvimento cultural que reunisse a Europa, a América e a África e fosse, de uma certa maneira, uma ponte. Ilusões de adolescente, mesmo se eu já tinha muita idade na altura. Mas o livro está aí. E gostei de que esse homem tivesse dito que eu queria levar a Europa para o Sul. Tornou-se-me claro algo que eu apenas intuía confusamente.

Lanzarote é a tua jangada de pedra?

Tudo são jangadas e isto não é exactamente a minha, vim parar aqui por acaso, como sabes, e conheces a história. Não escolhi. É curioso como são as coisas: o primeiro-ministro do governo que censurou “O Evangelho segundo Jesus Cristo” é hoje Presidente da República e não tem vergonha de o ser.

Depois vem um livro estranho que é a “História do Cerco de Lisboa”. A primeira ideia era na linha de “O Deserto dos Tártaros” do [Dino] Buzzati. Um cerco em que não se percebia muito bem quem cercava nem quem era cercado. Usemos a palavra: um pouco kafkiano. Isso andou na minha cabeça durante uma quantidade de anos até que me dispus a escrever o livro já com um objetivo completamente diferente. Em princípio, toda a gente parte do cerco de 1385, mas não, os cercados são os mouros. E entre as figuras simpáticas do livro algumas delas são mouros.

Estavas a islamizar a história…
Não tarda muito chamam-me infiltrado do Islão… Não era um Islão pacífico mas era um Islão sem terrorismo, vamos pôr a questão assim. Também se pode pensar nas actividades terroristas dos exércitos quando matavam crianças e mulheres à espadeirada e queimavam as casas. Isto não mudou muito. Continuamos a ser aquilo que éramos e vamos continuar, se Deus quiser. E como Deus não parece querer outra coisa…

Achas que não mudou muito?
O ser humano? Não, o ser humano é uma besta. E pior que isso: não temos solução. Sinceramente, e não o digo para me fazer interessante. Olho para trás, olho para o agora e imagino o que vem. Não vejo nada que me diga que o Homem tenha solução. Não resolvemos nada de essencial. Criámos riqueza material, muitas vezes à custa de reduzir à pobreza, à humilhação e à fome massas humanas enormes.

E a ciência?
A ciência é como todas as coisas que saem da nossa cabeça, tem um lado bom, tem um lado mau, confirme as utilizes. Evidentemente que sim, criámos a ciência, e criámos até uma coisa que parecia que não estava na tabela: criámos o amor, inventámo-lo.

Não estava previsto?
Como é que poderia estar? Uns quantos animais que andavam por aí, meio macacos, meio humanos, governados praticamente pelo instinto e que se desenvolveram ao longo de uma quantidade de anos. Foi preciso inventá-lo.

E isso não mudou tudo?
Mudou tudo mas não mudou tudo. Mudou a vida, ou pode mudar a vida, ou influir na vida das pessoas que experimentam esse tipo de sentimentos, mas no fundo não muda. Não muda, não muda.

Há sempre nos teus romances alguma coisa que é redentora, e é sempre o amor.
Mas durante quanto tempo? Podemos falar do amor no “Memorial”, embora não haja aí palavras de amor.

Um dos acontecimentos mais extraordinários da minha vida de escritor é ter escrito um romance com uma grande história de amor – não tenho pejo nenhum de dizê-lo – sem que nenhum dos dois tenha tido necessidade alguma vez de dizer Gosto de ti, Amo-te, Os teus olhos são como as estrelas, não sei o quê. Não há nada disso e não foi intencional. Só no fim é que me dei conta de que não havia uma palavra de amor, uma só, em todo o livro. Pode parecer deliberado ao leitor, ao crítico, ao estudioso, mas foi involuntário.

E quando digo que não temos solução…

Realmente as pessoas recuperam a vista, de acordo. Realmente há essa figura admirável da mulher do médico – não porque eu a tenha feito assim mas porque ela é assim. Mas no fim, quando toda a gente está celebrando o regresso da visão, ela vê o céu todo branco e julga que chegou a sua vez, que vai perdê-la. Não é assim, e ela baixa os olhos e diz: “A cidade ainda estava ali”. A possibilidade de viver juntos é negada ao longo do livro, a não ser esse grupo solidário que se espera que não tenha sido o único, que tenha havido nessa mesma cidade outros que não entraram na história.

A frase “A cidade ainda estava ali” é um aviso, como quem diz: “Vocês aprenderam a lição ou não aprenderam? Eu ainda aqui estou” Não é tão otimista quanto se crê, porque eu não sou. Somos uma espécie que fez o que fez, no bom, no mau, no maravilhoso, no sublime, no horrendo, fizemos o que fizemos. Aqui não se trata de pôr numa balança o que fizemos de bom e o que fizemos de mau, aqui tínhamos de pôr a Capela Sistina, ou um quadro do Rembrandt, ou uma sinfonia de Beethoven, e do outro lado tínhamos de pôr Auschwitz, Buchenwald, todos os horrores, os genocídios. Eu não sei o que pesa mais, mas o lado negro da História da Humanidade é de tal modo horrendo que é difícil que a 9ª. Sinfonia sirva para equilibrar.

Estou pasmada com este sítio, sobressai o poder da natureza, ao mesmo tempo destruidor e incrivelmente fértil – tu disseste que basta cair uma chuvada para isto ficar tudo verde. É isto que me parece marcante.
Sim, mas se é marcante já o era antes de eu estar aqui. Há aqui uma série de contradições.

Disseste que não escolheste este sítio, mas na verdade também não o recusaste.
Quando cheguei aqui senti-me bem. Venho de outro lugar, da lezíria, todo o contrário de uma terra como esta. Aqui joga o temperamento de cada um. Havendo em mim, como há, uma tendência tão forte para… não diria o ensimesmamento, a contemplação… para a solidão. Vivo rodeado de pessoas e no fundo sou muito solitário. Chegar a esta ilha e subir estes vulcões – agora não, porque já não posso…

Este grande aqui atrás, chamado Montanha Branca, subi-o em maio de 1993, quando tinha 70 anos. Fui até lá acima, vê-se dali a ilha toda, de um lado e do outro, a outra costa e esta costa daqui, e o vale de La Geria, até ao vulcão do norte chamado La Corona. Foi realmente um dia de glória para mim. Não tinha o propósito de subir a montanha, fui naquela direção, depois olhei para aquilo, subi um bocado, 50 metros, “e se eu fosse até lá acima?”, e fui. Não é alpinismo de primeira qualidade, evidentemente, mas não é fácil porque se resvala, porque não tens onde agarrar-te, aquilo não é uma montanha no sentido habitual, com rochas, no fundo aquilo é um cone liso. Desci por outro lado, por um barranco, e descer é muito pior do que subir, escorreguei, feri-me numa mão. Entre subir e voltar a casa foram pelo menos quatro horas.



Nunca mais voltei a subir mas tenho a imagem de estar num ponto alto numa ilha e poder vê-la praticamente toda. Tive a sorte – não fui com certeza a única pessoa que o fez – de, por um capricho de adolescente, ter dito: tenho de chegar lá acima. E cheguei.

Há uns campos de lava, fora do parque [de Timanfaya], relativamente perto daqui. Uma pessoa entra por esses campos… É essa coisa da solidão, de estar só, e o vento que sopra. Senti que nesta ilha havia qualquer coisa que tinha que ver comigo. Mas tinha que ver comigo como pessoa. Não creio que tenha passado para a escrita, e disso é que estamos falando. Ou então na escrita já estava.

Não será este o sítio certo para esta fase da tua vida?
Aí podemos estar de acordo. O que se pode dizer é que este sítio estava à minha espera. Andei quilómetros pela ilha e realmente estou bem aqui. Estou bem em Lisboa, também.

Tenho um problema com as Finanças espanholas, querem à viva força que pague impostos aqui. Apesar de ser um tipo suspeito em alguns aspectos, sou um bom contribuinte, um bom patriota e pago os meus impostos em Portugal. Andamos há quatro anos num conflito sério que já teve que meter instâncias superiores governamentais de um lado e do outro, não sei como isto vai acabar. Portanto, também há lados incómodos e vamos ver como é que esta questão se resolve.

Viajas muito mas é aqui que as pessoas vêm visitar-te. Percebi que muita gente vem aqui, sentam-se naquela cozinha.
Esteve cá o Mário Soares, quando viemos para aqui, em 1993. Foi um gesto muito simpático que lhe agradeço, embora ao longo da vida ele e eu tenhamos tido as nossas turras. Nessa altura era Presidente da República, fui despedir-me dele, expliquei-lhe por que vinha para aqui. Ele veio dar conferências em Tenerife, aproveitou e veio visitar-me. Vinham com ele o Manuel Alegre, a Maria de Jesus Barroso, o José Manuel dos Santos. Tem vindo aqui muita gente. Estiveram cá não há muito tempo o Bertolucci, o Pedro Almodóvar, o Rodriguez Zapatero.

Esta é a tua casa, o lugar onde tens os teus livros?
Os livros estão aqui. Em Lisboa tenho uma centena, aqui tenho 20 mil ou coisa que o valha. Pode dizer-se que a casa do escritor é o lugar onde estão os seus livros. Tinha de ser aqui. A minha primeira ideia era passar uma temporada em cada sítio, mas pouco a pouco, pela lógica do emprego do tempo e das deslocações, foi tomando mais evidência que o lugar para estar é aqui. O que não significa que não me sinta bem em Lisboa.

Disseste que o homem não tem solução mas não há sempre uma espécie de parábola nos teus romances?
O risco que os meus romances correm, e que assumem, é o de parecer que têm lições morais, se se quiser malevolamente olhá-los assim. Sou o primeiro a dizer que correm esse risco. Mas não é disso que se trata.

Não tens a intenção de mudar o mundo?
A minha única intenção é dizer como o mundo é, não venho dizer como transformá-lo. O estranho é que só volto a publicar em 1966, com “Os Poemas Possíveis” que tem duas fontes: um episódio sentimental que vivi nessa época e a leitura de “O Filho do Homem” de José Régio. Esse livro, não sei porquê, sacudiu-me. Como se estivesse a dizer a mim mesmo: eu também sou capaz. Em 1970 aparece o “Provavelmente Alegria” [poemas], depois publico crónicas que vinha publicando no Jornal do Fundão e n’A Capital [“Deste Mundo e do Outro”, 1971]. E aqui estamos à borda da Revolução.

Em 75, quando publico “O Ano de 1993”, tenho 53 anos. O que teria acontecido se tivesse continuado a escrever depois do primeiro livro? Apesar de tudo, escrevi outro romance, “Claraboia”.

Não conheço esse livro.
Ninguém conhece, nunca publiquei. Tem uma história com muita piada, é a vida dentro de um prédio que tem uma clarabóia na escada. É um pouco a história do “Diabo Coxo” do Vélez de Guevara [Écija,1579 - Madrid, 1644] que levantava os telhados das casas para ver o que estava dentro. Tem um antecedente literário e se calhar não é o único. Acabei o livro e não o levei a nenhum editor, não sei porquê. Um amigo meu, o desenhador Figueiredo Sobral, que fez desenhos para contos meus nessa época, trabalhava na Editorial Notícias, da Empresa Nacional de Publicidade. Disse-me um dia: “Dá cá o livro que eu vou levá-lo, pode ser que eles publiquem”. Como tantas vezes acontece, a vida separou-nos, não voltei a vê-lo.

Só havia um exemplar?
Só um exemplar, escrito à máquina. Isto deve ter sido no princípio dos anos 1950. Para mim, o livro estava perdido. Em 1987 ou 88, recebo uma carta da Empresa Nacional de Publicidade onde diziam que, reorganizando os arquivos, tinham encontrado um original com o meu nome, informavam-me disso e manifestavam interesse em publicá-lo. Fui lá, sou fulano, sim senhor, está aqui o livro, se quiser nós podemos publicá-lo. Não, não quero. Um livro desaparecido durante quase 40 anos reaparece!

Portanto, se tivesses continuado a escrever…
Se escrevi dois romances, por que não escreveria um terceiro? Pois não, a coisa ficou assim. Não sei o que teria acontecido. Perguntam-me: ficou todo esse tempo a ganhar experiência? Não, simplesmente não tinha nada para dizer. Mas há aqui três tempos. Um é o tempo de silêncio até 1966, depois o tempo intermédio que começa com “Os Poemas Possíveis” e que vai terminar em 1975 com “O Ano de 1993”. Em 1977 começa um período de tenteio, com o “Manual de Pintura e Caligrafia”, o livro de contos – “Objecto Quase”, e o “Levantado do Chão” em 1980.

O “Manual de Pintura e Caligrafia” sai nessa época mas eu já vinha a escrevê-lo há tempos. Alguma crítica considera o mais interessante que eu fiz porque é, supostamente, mais moderno na construção, mas tínhamos de saber de que é que estamos a falar porque o moderno de 1987 não é o moderno de 20 anos depois. São coisas que eles dizem.

E depois aparece o “Levantado do Chão” e aí começa realmente outra coisa, quando eu tenho 58 anos. No “Memorial do Convento” tenho 60"

(Fotografia de Alfredo Cunha)


"Começas outra vida?
Boa idade para ter juízo. Não parece ser uma idade em que se deva começar uma carreira de escritor que será, parece que está demonstrado, comparado com o que foi feito antes, a parte séria de um trabalho.

De um trabalho que também tem dois tempos, um que acaba com “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e outro que começa com o “Ensaio sobre a Cegueira”. Disseste que são parábolas, eu prefiro dizer alegorias.

Numa conferência que dei em Turim, a que chamei “A Estátua e a Pedra”, tentava explicar a diferença destes tempos: até ao “Evangelho segundo Jesus Cristo”, andei a descrever uma estátua, o lado de fora da pedra, a superfície. É como se a partir do “Ensaio sobre a Cegueira” eu tivesse passado para o interior da pedra, lá onde a pedra não sabe que é estátua. Porque a pedra de dentro não sabe que é estátua.

Nessa altura já vivias em Lanzarote?
O “Ensaio sobre a Cegueira” começou a ser escrito em Lisboa, dez páginas, nada mais. E talvez não seja uma casualidade, aqui podíamos discutir, examinar isto até à saciedade: se o tivesse escrito em Lisboa, seria a mesma coisa que o “Ensaio sobre a Cegueira” escrito em Lanzarote? Enfim, fica a pergunta no ar, que não tem resposta.

É um facto que não poderias ter escrito o “Ensaio sobre a Cegueira” aos 30 anos. É um livro de maturidade.
Aos 30 anos não, claro que não. É um livro de maturidade e é um livro de assombro. Como se eu me perguntasse constantemente: como é que não conseguimos ser outra coisa?

Ainda tens essa pergunta?
Ainda tenho, e cada vez mais. Não somos boa gente.

Por que é que escreveste sobre a infância? É uma tendência natural quando se chega a certa altura de vida?
Não creio que seja, nem toda a gente o faz. A ideia deste livro [“As Memórias Pequenas”, 2006] tem mais de 20 anos mas apareciam outras ideias, para mim mais interessantes ou mais importantes nesse momento. Até que chegou a hora. Pensei: agora é que tem de ser, vou acabar o livro.

E foi rápido?
Não foi muito rápido porque tive uns problemas, essa história do soluço que não desejo nem ao meu pior inimigo. Um mês e meio de soluços contínuos, de três em três segundos, dia e noite. Três ou quatro quilos foram-se embora e ainda não os recuperei. Preocupante, porque se tu tens soluços não dormes. Se apesar de tudo tens a sorte de entrar no sono, enquanto dormes não soluças. Mas abres os olhos e imediatamente recomeçam. Isto arrasou-me. Também me arrasou a medicação, causou-me perdas de equilíbrio. Foi funesto, realmente.

Estavas ainda doente quando acabaste o livro?
Em maio do ano passado tive um descolamento de retina, fui operado em Barcelona. No fim de maio, ainda com o olho tapado da intervenção cirúrgica, acabo “As Intermitências da Morte” e depois aparece-me o soluço. Foi já este ano. O soluço durou um mês e meio, as consequências arrastaram-se, posso dizer, praticamente até ao dia de hoje. Mas já estou outra coisa, já estou ressuscitado.

A notícia de que tinhas escrito as “Pequenas Memórias” aparece na mesma altura em que aparece o livro de Günter Grass [“Descascando a Cebola”, 2006], toda a gente os relacionou.
Por favor, não tem nada que ver.

O que têm em comum é só olharem para trás e coincidirem na publicação?
Sim, claro. Eu quis, de alguma forma, recuperar o miúdo que fui. O livro não segue uma cronologia, são fragmentos que podem ter uma página, duas, três, ou meia página. É como se o livro tivesse sido escrito de acordo com a sequência das recordações tal como elas se me apresentavam. Eu chamava-lhe “O Livro das Tentações”, recordas-te disso? Mas depois achei que não, embora o mundo para uma criança seja uma tentação contínua. Mas era preciso explicar isso para que o leitor não tivesse dúvidas sobre a lógica do título.

Isso tinha nascido no tempo em que eu andava com o “Memorial do Convento”, de uma ideia que estava fora do meu alcance, e que era que a santidade perturba a natureza. Uma ideia inspirada nas “Tentações de Santo Antão” do Bosch, em que aquilo que a gente vê é uma espécie de rebelião da natureza, representada num caso pela beleza, na maior parte dos casos pelo horror, pelo grotesco, pelo disforme e tudo isso. A natureza é provocada pela santidade e manifesta-se.

Mas não tardei muito tempo a perceber que não tinha unhas para tocar esta viola. Isto tinha de ser um Eduardo Lourenço ou alguma pessoa mais por aí. Deixei ficar o título até ao momento em que realmente decidi acabar o livro, porque já tinha muita coisa escrita, e percebi que não fazia qualquer sentido, tinha de assumir que de facto não, vamos arranjar outro título. E saiu este, as “Pequenas Memórias”. São as pequenas memórias de um tempo em que eu era pequeno. Não tem nada que ver com o Günter Grass, é outro projeto, a intenção é outra. Eu só quis pegar na criança, e a criança não tem idade para se matricular nas SS.

E não vais escrever mais memórias?
A continuação? Não. O livro acaba com um episódio na aldeia, teria ou ia a caminho dos 16 anos. O resto não me interessa. Eu nunca escreveria uma autobiografia da minha idade adulta, dos triunfos ou do Prémio Nobel.

Mas publicaste os “Cadernos de Lanzarote”.
Sim, que curiosamente acabaram em 1997. E eu embora tenha material para 1998, decidi não escrever.

Mantens um diário?
Não. Os “Cadernos de Lanzarote” são um diário, durante esses cinco anos. Se não é o caso do Nobel, é possível que eu tivesse continuado. Agora, escrever o ano de 1998 e os seguintes para ter de falar todos os dias do Nobel, ou das consequências do Nobel, não. Acabou aqui. Acabou.

Disse-se que o livro do Günter Grass era uma operação comercial. Estás de acordo?
Nisso não acredito. O Vasco Graça Moura também disse que ainda bem que o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi proibido, porque assim vendi mais livros. Em declarações à imprensa, defendi o Grass. Ele cometeu um erro aos 17 anos. E a vida depois não conta? Vamos ficar a martelar o homem? Ele já tinha dito que tinha entrado no exército. Enfim, não podia negar-se, e toda a gente aceitou isso, tinha sido ferido, tinha 17 anos, parece que não disparou um tiro sequer. Mas de facto quando ele disse que tinha estado no exército, sabia que tinha estado nas SS. E calou.

E depois há outra circunstância que é o facto de o Günter Grass se ter apresentado como uma consciência moral da Alemanha, tendo ele próprio essa mancha. Além disso, está claríssimo que ele se apresentou voluntariamente nas SS.

Como é que ele viveu com esse segredo? Não é uma situação literariamente fascinante?
É fascinante. A gente faz algumas coisas mal na vida e vivemos com elas. Ele deve ter tido dias maus, mas viveu a sua vida com essa sombra no passado. Podia ter deixado ficar mas provavelmente um dia a verdade sairia ao de cima e ele quis, suponho que foi assim, que essa verdade saísse da sua boca. Demasiado tarde? Quem é que agora julga? Realmente saiu tarde. E sobretudo porque escondeu. Porque ao dizer “estive no exército” estava a esconder, estava a dizer meia verdade.

A verdade é que nós não vivemos aquele momento na Alemanha. Todos os juízos morais esbarram nisso. O que é que nós teríamos feito?
O problema aqui não é o que nós teríamos feito. Eu também fui para a Mocidade [Portuguesa], a inscrição era obrigatória, isso é outra coisa, e a Mocidade Portuguesa, por muito má que fosse, não era as SS. A questão central não é essa, é o papel que o Günter Grass assumiu ao longo da vida. E estava lá aquilo. Podia ter dito: com que direito estou eu a dar lições de moral à comunidade se tenho essa nódoa lá atrás? Deve ter feito essa reflexão agora.

Na tua vida há um facto marcante, tens o antes do Nobel e o depois do Nobel. Mas há também a Pilar.
É o que eu ia a dizer, há outra coisa marcante. Ia interromper-te. Há um antes do Nobel e um depois do Nobel, e há um antes da Pilar e um depois da Pilar.

O que é que mudou na tua vida?
Tudo. Essa é a grande mudança. Ganhar o Prémio Nobel… se escreves, e não escreves mal, e os outros dão por isso, pode acontecer. Mas é muito difícil acontecer o que aconteceu com a Pilar, porque eu estava em Lisboa, ela estava em Sevilha. Como é que estes dois iam encontrar-se alguma vez? É ela que viaja de Sevilha a Lisboa porque me tinha lido – “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e o “Memorial do Convento” – e queria conhecer-me. Não veio à procura de uma aventura.

Ela tinha ido a Lisboa com uns amigos e telefonou para minha casa: “Gosto muito dos seus livros, chamo-me Pilar del Rio, sou de Sevilha. Tem um minuto?” Ela estava no [Hotel] Mundial, combinámos encontrar-nos às quatro horas da tarde de um sábado. Lá fui, não sabia quem ela era, não estava muito habituado a que acontecessem coisas assim mas enfim… Aparece-me e quando olho para ela não acredito porque era uma mulher bonita, elegante. Levantei-me, apresentámo-nos, conversámos. Ela não tinha muito tempo, conversámos sobre o Fernando Pessoa, o Ricardo Reis, o “Memorial”. Fomos ao Cemitério dos Prazeres para mostrar-lhe o jazigo do Pessoa, curiosamente estava partida a cruz que estava em cima do jazigo. Alguém tinha partido a cruz e a tinha levado, algum admirador, algum necrófilo de alguma seita iniciática. Comentei isso mas ninguém fez caso. Depois fomos aos Jerónimos.

Em que dia? Claro que sabes a data.
Catorze de junho de 1986. Levei-a ao hotel, trocámos direções e assim acabou. Alguns relógios aqui de casa estão parados às quatro horas da tarde, os que não funcionam. Há sempre relógios que não funcionam. Ela foi-se embora, mantivemos contacto telefónico, não muito frequente em todo o caso. Ela mandou-me uma ou duas vezes um artigo que tinham sido escritos lá sobre os meus livros. Eu tinha de dar uma conferência em Barcelona e em Granada, em Outubro de 1986. Então aí escrevo a carta mais inteligente de toda a minha vida. Porque eu não sabia nada dela, não sabia se estava casada, se estava divorciada, se era solteira. “Vou aí, tenho uma conferência em Barcelona e em Granada”, e acrescentei: “Se as circunstâncias da tua vida o permitem, gostaria de que nos encontrássemos” e tal e tal. Elegantíssimo.

E ela percebeu o que queria dizer?
Ela respondeu que as circunstâncias da sua vida o permitiam, entendeu o que eu queria dizer. Aí começou a nossa relação, depois ela foi viver para Lisboa, deixou tudo, Sevilha, amigos, família, casámos em 1988. A Pilar é uma pessoa fora do comum em tudo, de uma exigência consigo mesma quase doentia. Ela considera que está neste mundo para servir, coisa que lhe vem da adolescência – ela foi monja teresiana entre os 13 anos e os 20. De certa maneira, continua a ser monja. Já não tem nada que ver com a Igreja, ficou-lhe lá por essa educação mas também porque ela era um campo fértil para isso.

Eu tinha 63 anos, ela tinha 36, alguns dos meus amigos diziam “o que é que vais fazer, é uma loucura”.

Foi o melhor que podia ter acontecido na minha vida. Não quero falar agora do meu passado sentimental, cada um teve e tem o seu, mas não esperava encontrar uma pessoa como a Pilar. Não estava escrito. Ou então estava escrito numa página qualquer do livro do destino a que eu nunca tinha chegado, nunca lá tinha ido ver. Ainda bem para mim. E também quero pensar que ainda bem para ela.

Assim parece.
Creio que sim. Chateia um bocado agora, tenho 84 anos quase e estes 20 anos com ela foram bem vividos, foram anos bons, foram anos felizes, e chateia-me, chateia-me, chateia-me profundamente pensar que viverei mais três ou quatro anos, numa hipótese bastante favorável, chateia-me que seja tão pouco. Percebes? Por várias razões, uma é que uma pessoa não está interessada em morrer, salvo alguma exceção. E a outra é como eu às vezes digo: viver é estar, morrer é já não estar. E isso é que chateia, é que já não estás. Eu posso imaginar esta casa com todo o trabalho que a Pilar vai continuar a ter com a biblioteca, a gestão dos meus livros, neste mesmo salão, ou na cozinha onde sempre vamos parar, ou no jardim que é aqui ao lado. Mas a filhadaputice é que eu já não estou.

E agora pensas muito nisso?
Penso mais do que pensava antes. Não é uma expressão do medo da morte, eu não tenho medo. Não sei o que acontecerá no momento. Tive medo da morte aí pelos meus 16 ou 17 anos, tive a consciência claríssima de que queria morrer. Foi a minha descoberta pessoal da morte. Já tinha assistido a funerais mas aquilo não tinha nada que ver comigo. E houve um momento, que durou duas semanas ou talvez mais, em que eu ia na rua e parava como que fulminado com esta ideia: terás de morrer. Depois, ao longo do tempo, mesmo em situações complicadas, nunca pensei que me pudesse acontecer qualquer coisa definitivamente grave. E é esta coisa, estavas e já não estás. Isso é que é realmente a morte.

É verdade que a Pilar te apareceu numa idade em que muitas pessoas já não estão à espera de nada.
O melhor da minha vida chegou fora do tempo habitual. Acho que foi melhor assim, porque a velhice pode ser uma coisa muito chata. A decadência física, a perda da curiosidade, a perda da memória, todas essas coisas que vêm com a idade, eu felizmente pelo menos até agora ainda não fui alcançado por isso, e então posso dizer que é uma sorte dos diabos. Ter ao mesmo tempo – porque é praticamente ao mesmo tempo – uma obra literária que tem algum mérito, o que é reconhecido pelos leitores, que foi reconhecido pelo Prémio, num tempo em que sentimentalmente encontro uma pessoa como a Pilar, não só pelo facto de conhecê-la mas também porque era a melhor companheira que podia desejar para viver este tempo, em todos os aspectos. O Eduardo Lourenço no outro dia dizia-me: “Eh pá, a tua vida é um milagre!”.

E achas que é?
Talvez seja. Porque nada podia ser previsto, nada. A partir da adolescência podes começar a fazer uma ideia do que será o futuro, ou pelo menos o futuro que tu queres, ou o futuro que tu desejarias, a ver se alguém me ajuda a chegar lá. Nasci onde nasci, vivi como vivi, trabalhei como serralheiro mecânico, durante um tempo que não foi muito, mas fui operário – nem me vanglorio nem me desprezo a mim mesmo por esse facto. Uma vida que não tem um objectivo, percebes? Se tu entrares na Faculdade de Medicina é porque queres ser médico, na Faculdade de Direito vais ser advogado ou juiz. E eu não. Andei de emprego em emprego: Caixa de Previdência da Cerâmica, depois a Companhia Previdente que embora aquilo que alguns escrevedores dizem não e uma companhia de seguros, era uma companhia metalomecânica; vou para os Estúdios Cor, conheço gente.

Não é nos Estúdios Cor que começas um novo caminho?
É um momento importante da minha vida. O diretor literário dos Estúdios Cor era o Nataniel Costa, uma pessoa interessantíssima, casado com a Celeste Andrade, que era sobrinha do João Pedro de Andrade, crítico literário e autor teatral. O Nataniel entrou na carreira diplomática, o que o obrigou a sair para um posto em França.

A gente reunia-se no café Chiado. E um dia em torno do café, o Fernando Piteira Santos, malta assim mais ou menos conspirativa e conspiradora, o Nataniel saiu e disse-me “queria falar consigo, não se importa de me acompanhar?” E saímos.

“Como sabe eu vou para fora, tenho de deixar os Estúdios Cor, claro que continuarei a acompanhar de longe mas tenho de deixar, e gostaria, se você quisesse, que tomasse o meu lugar na editora.” Tínhamos uma boa relação, mas não de amigos-amigos, era uma boa relação, sem mais. Disse-lhe: “É um caso a pensar. Mas por que é que você pensou em mim para isso?” E ele teve uma resposta: “Claro que não faltariam pessoas a quem eu convidar, mas pelo menos algumas delas a primeira coisa que fariam seria esfaquear-me pelas costas, e eu sei que você não é desses”. Bom, de acordo, eu efetivamente não era desses.

Nunca foste desses de esfaquear pelas costas?
Nunca fui desses. Há um episódio anterior. Eu encontrava-me com alguns amigos que não tinham nada que ver com as letras no Café Chiado. Um dia, estava sozinho, pára um táxi em frente da porta, e sai o Humberto d’Ávila, olhando para um lado para o outro e de repente põe os olhos em mim. Nunca tínhamos falado. Eu conhecia-o, sabia quem ele era, ele conhecia-me a mim. “Tenho aqui dois bilhetes para um concerto no São Carlos. Quer vir comigo?”

Era de um violoncelista, salvo erro o Pierre Fournier [Paris, 1906-1986]. E lá fui eu, que conhecia o São Carlos dos tempos da ópera, quando ia com 18 ou 19 anos para o galinheiro porque o meu pai, que era polícia, conhecia os porteiros e eles deixavam-me entrar. Mas estar sentado na plateia do São Carlos nunca tinha acontecido. Se o Humberto d’Ávila tivesse visto outra pessoa que lhe fosse mais próxima… mas quis o acaso, ou o destino, que fosse comigo. E isso também mudou a minha vida, porque a partir daí, embora continuasse com os mesmos amigos passei também a estar com outras mesas onde estavam, por exemplo, o Abelaira, o Zé Gomes, o Piteira, e isso foi uma entrada num mundo que não era o meu, e onde está o Nataniel com quem depois aparece esta conversa.

Os milagres acontecem, mas as pessoas têm de estar a jeito.
A gente tem de estar lá no sítio. Depois, comecei uma carreira literária sem grandes objectivos, com “Os Poemas Possíveis”, o “Provavelmente Alegria”. Aonde é que isto me leva? Eu próprio não sabia. Aquilo que me faz perceber que há um lugar onde tenho de chegar é o “Levantado do Chão”. As coisas iam acontecendo, após um livro tinha a ideia de outro e escrevia. Não vou agora pensar em forças superiores, não tem nada que ver com isso. Há um poema meu n’ “Os Poemas Possíveis” que foi escrito aos 20 ou 21 anos, qualquer coisa assim, que acaba desta maneira:

“Que quem se cala quando me calei/Não poderá morrer sem dizer tudo.” [Poema à boca fechada, “Os Poemas Possíveis”, 1966]

A gente já sabe que não diz tudo nem poderá dizer tudo, mas é como se houvesse algo que tinha de crescer e que crescia de uma forma diferente daquilo que é habitual, crescia mais devagar e eu tinha de ter a paciência de esperar que isso acontecesse, e não forçar, não escrever depois de “Clarabóia”. O que é que eu escreveria mais? Em que direção é que eu iria? Foi preciso vivê-lo para saber. Agora sabemos.

O que estás a escrever agora?
Tenho uma ideia para um livro mas é muito difícil, muito difícil.

Já tens título?
Teria, mas o problema é que lhe falta o miolo. Tenho de deixar que a coisa ande por cá, não mexer muito nela, não pensar muito e um dia pode ser que as coisas se me apresentem mais claras. Estou centrado nisso mas não tenho a certeza do que possa dar. [Este livro virá a ser “A Viagem do Elefante”, publicado em 2008].

Hoje em dia lês muito? O que procuras na leitura?
Ainda leio, leio. Não vou dizer que agora, sobretudo, releio, embora isso aconteça. Mas cansa-me ler um romance, o que não está bem. Então sou autor de romances e isto quer dizer que os meus romances sim e os outros não? Não é isso, evidentemente, sou capaz de reconhecer um bom livro quando o encontro. Parece que tenho um certo instinto para ir a um livro que, por isto ou por aquilo, sinto que aquele, sim, vale a pena. Leio muita coisa que não tem que ver com literatura, tem que ver com filosofia, com história, com astrofísica.

Imagino que leste muita ficção e daí a minha pergunta. Agora é diferente?
Sim, agora é diferente. Recordo-me muitas vezes de uma frase do Alexandre O’Neill a propósito da escrita. Ele dizia: “Não contes a vidinha”. E a impressão que me dá a maior parte do que se escreve hoje em Portugal é que se conta a vidinha. Francamente, não creio que valha a pena."

No site da jornalista, estão diversas entrevistas com "personagens", muitas delas fazem parte do nosso imaginário. São entrevistas riquíssimas, quer pelos temas abordados, mas também pelas experiências que da sua leitura são absorvidos.
Estão presentes, para além de José Saramago, Pacheco Pereira, Vasco Graça Moura, Maria Teresa Horta, Eduardo Lourenço, João Lobo Antunes, Valter Hugo Mãe, e dois textos "O Avô" e "De alma e coração".
Brilhante, aqui, para leitura obrigatória, em http://www.anasousadias.com/

José Saramago: exposição "A Consistência dos Sonhos" - Vídeo de apresentação


Vídeo de apresentação
Exposição "A Consistência dos Sonhos"
 sobre a vida e obra de José Saramago, no Palácio Nacional da Ajuda.

Revista Digital "Blimunda" #7 - Dezembro de 2012

Capa da "Blimunda" #7 - Dezembro de 2012

Destaque para uma compilação de fotografias, devidamente comentadas.
Não é segredo! Nem são as tradicionais selfies dos modernos tempos dos smartphones.
São memórias que muito orgulha a vasta e universal família Saramaguiana. Reviver é recordar, imaginar os momentos, como que, deles tivéssemos feito parte fisicamente, estar lá ao mesmo tempo que estávamos no mundo todo.
Não é segredo! Há que visitar o n.º 7 da nossa "Blimunda":


Link para descarregar, gratuitamente,

Sinopse que pode ser lida e recordada na página da Fundação José Saramago

"Somos a memória que temos,
sem memória não saberíamos quem somos.
José Saramago

A Blimunda 7, segundo número com concepção gráfica de Jorge Silva/Silva Designers, chega com o seu tema de capa dedicado à Memória, a memória de que necessitamos para sabermos quem somos. E, com as palavras de Sara Figueiredo Costa, a memória na Blimunda revisita Istambul e o Museu da Inocência, casa dos objectos elencados na obra homónima de Orhan Pamuk. Mas a memória faz-se também daqueles que desapareceram. Visitámos um cemitério de Lisboa e através das imagens de Sílvia Moldes traçamos um roteiro pelas memórias daqueles que todos os anos, a 1 de novembro, aí se dirigem para homenagear os que, mesmo que apenas fisicamente, já não estão entre nós. E se por ordem do Governo da República Portuguesa o dia 1 de novembro deixará, em 2013, de ser feriado nacional, esta é, também, uma afirmação política.

No infantil e juvenil, Andreia Brites revisita a tradição através de dois livros recentemente publicados que fazem pontes com a tradição ancestral das histórias que todos conhecemos.

A Blimunda despede-se de 2012, desejando a todos os seus leitores um Bom 2013."