Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

"Gaza" - Revisitar "Outros Cadernos de Saramago" (22/12/2008)

Revisitar "Outros Cadernos de Saramago"
http://caderno.josesaramago.org/17762.html

Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2008

"Gaza"
"A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registadas como refugiados. Nem pão têm já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho. Desde o dia 9 de Dezembro os camiões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende. Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado."

"A Jangada de Pedra" por António Sáez Delgado (Revista Blimunda #54 11/2016)

Sobre os 30 anos da publicação de "A Jangada de Pedra"


O presente texto de Antonio Sáez Delgado está publicado na edição #54 (Novembro de 2016) na revista digital "Blimunda" e pode ser consultada através da página da Fundação José Saramago aqui, em http://www.josesaramago.org/blimunda-54-novembro-2016/

Páginas 100 a 107

A primeira vez que li José Saramago fi -lo em espanhol. Convém dizê-lo já, na primeira linha. Começava os meus estudos universitários e Saramago desembarcara em força nas mesas das novidades com O Ano da Morte de Ricardo Reis, o primeiro livro seu que me caiu nas mãos. Acerquei-me dele, como tantos outros leitores, atraído pelo eco de Pessoa, que havido lido muito pouco tempo antes e também em espanhol. Comprei o exemplar de Pessoa numa feira da que era então a minha cidade, Cáceres, e a leitura de Álvaro de Campos foi como um tiro. Assim, quando vi a capa do livro de Saramago numa pequena livraria dessa mesma cidade, não hesitei.
Se bem me lembro A Jangada de Pedra foi o segundo livro de Saramago que adquiri. Li-o, como ao primeiro, através das palavras de Basilio Losada, do mesmo modo que li depois muitos outros graças
às de Pilar del Río. Também aquele primeiro Fernando Pessoa me chegou filtrado por um tradutor, José Luis García Martín. Disse Saramago: os autores fazem as literaturas nacionais, os tradutores a universal. Passaram três décadas desde então, montanhas de livros e bastantes de Saramago, já na sua língua de origem. Mas hoje gosto de recordar, impelido precisamente pel'A Jangada de Pedra, que tomei contacto pela primeira vez com Saramago e Pessoa em espanhol, na língua dos meus pais.
Li A Jangada em três ocasiões: a primeira, enquanto universitário, em fi nais dos anos oitenta, por prazer; a segunda, já em português, em meados dos anos noventa, recém-chegado à Universidade de Évora como Leitor de Espanhol, por obrigação moral (eu também sentia que algo na minha vida se havia fendido e que começava a viver num território que jamais me seria alheio); a terceira, curiosamente, o verão passado, no meio de uma planície da Extremadura contígua à fronteira portuguesa, sem saber muito bem porquê, desfrutando como nunca cada palavra.
Da leitura do livro nos anos oitenta recordo vivamente o fascínio que o tema me provocou, a estória daquela península separada do continente e à deriva pelo oceano. Da leitura do livro nos anos noventa recordo uma sintonia complacentemente biográfica, deixando-me levar e sentindo-me como mais um dos personagens que protagonizavam a aventura narrada (não por acaso, soube-o depois, eu começava a construir em Évora a minha própria jangada de pedra, a que me levaria, mais à força de remos do que à mercê do vento, a construir o meu próprio espaço vital). Da leitura do livro no verão passado lembro, sobretudo, o desfrutar da brisa da tarde nas azinheiras e o pôr do sol por detrás das páginas na serra de São Mamede, ao longe. E também a perplexidade de pensar que em 1986, faz agora trinta anos, coincidindo com a publicação do livro, Portugal e Espanha entravam lado a lado na União Europeia, apenas uns meses antes – a 14 de junho desse mesmo ano, às quatro da tarde em ponto – de Saramago conhecer Pilar, o seu pilar (a sua pedra), com quem começou a navegar uma nova vida que os levaria, num caminho eterno de ida e volta através do mundo, a Lanzarote, outra jangada de pedra. 
Hoje já não consigo ler o livro sem que estes elementos se aglutinem na minha cabeça. Trinta anos depois, é um facto, A Jangada de Pedra eiva-se de uma atualidade especial do ponto de vista europeísta. É impossível lê-lo e não pronunciar em voz baixa palavras como fronteira, jangada, humano, não nos lembrarmos dessas outras jangadas que chegam do sul carregadas de seres humanos que sonham com o paraíso europeu. Poderia falar da ironia inteligente da obra, dos referentes literários de que transborda, da importância da paisagem, do sólido (o pétreo) e do líquido... mas não estaria de modo algum a ser fi el à leitura que faço hoje em dia. Os livros mudam-nos com o passar dos anos. Acontece-me algo semelhante, ressalvando as devidas distâncias, com O Ano da Morte de Ricardo Reis, a que também voltei este verão, também à sombra da mesma azinheira. A primeira vez que o li, foi Pessoa o protagonista; nesta última leitura, ganhou nas páginas desse mesmo livro um protagonismo extraordinário o ambiente pré-bélico e bélico da Guerra Civil espanhola. Novamente as mesmas palavras (fronteira, humano) ressoando-me na cabeça.
Poucos escritores portugueses do século XX oferecem tantas referências a Espanha e à sua cultura (ou se preferirmos à Ibéria e à sua cultura) como Saramago. Poucos souberam como ele, a partir desse ceticismo irónico que se entranha até à medula no leitor, aproximar-se de alguns dos tópicos mais profundos da cultura vizinha. Confesso que a última vez que li A Jangada de Pedra, este verão, fi-lo sob a influência de uma procura, como quem tenta encontrar respostas para uma pergunta que não se consegue formular corretamente. Conhecia algumas das palavras fundamentais dessa pesquisa, estava seguro de que o conceito essencial era o de distância. Não seria complicado, mas sim quixotescamente triste e divertido ao mesmo tempo, fazer uma pequena antologia de textos de escritores ibéricos do século XX que se referem à distância entre Portugal e Espanha, entre Espanha e Portugal. Vou reunindo pouco a pouco esses fragmentos e vou-os guardando numa pasta do meu computador. É uma pasta, digamo-lo assim, sem adjetivos , onde se acumulam queixas de escritores que cruzam o século XX resmungando por não conseguirem percorrer os quilómetros simbólicos e míticos que separaram os dois países.
Aligeirei a perplexidade dessas leituras com A Jangada de Pedra, já o disse, como quem procura uma resposta. Embrenhei-me de novo nas suas páginas sem me deixar cegar pelo brilho da ideia genial que serve de ponto de partida e sem me permitir ser mais um no grupo que percorre a península para encontrar as suas respostas particulares. Intuía, isso sim, que a distância que me interessava, e que penetrou o mais profundamente possível no imaginário cultural das relações entre os dois países, estaria presente de uma forma ou de outra no livro. E não me enganei. 
Porque muitas vezes pensamos nessa distância olhando só dentro de nós, e é necessário fazê-lo de fora, por fora. Essa distância a que me refiro é a que fez, por exemplo, com que os dois poetas portugueses mais conhecidos e divulgados em Espanha durante o século XX, o hoje esquecido Eugénio de Castro (na primeira parte) e Fernando Pessoa (na segunda), tivessem que recorrer a uma imensa viagem atlântica para atravessar a tão próxima fronteira luso-espanhola. Castro, que viveu em Coimbra, chegou ao país de Cervantes através do magistério do nicaraguense Rubén Darío, que chamou a atenção para a poesia simbolista do português; Pessoa, nos princípios dos anos sessenta, alcançou um lugar privilegiado entre as referências dos escritores espanhóis graças ao trabalho do mexicano Octavio Paz, que soube conceder à poesia do autor dos heterónimos o lugar que merecia. Ambos, Castro e Pessoa, compatibilizaram essa distância espetral que separava Portugal e Espanha através de uma imensa viagem pelo oceano Atlântico.
E que tem isto que ver com A Jangada de Pedra, com a estória de uns personagens que veem separar-se a península de uma Europa que em 1986 era ainda um sonho? Tem que ver porque talvez o importante da obra não seja (ou não seja só) que a península se separe da Europa, mas que tome, no percurso fi nal, um rumo que a conduza até à América do Sul, até esse continente imprescindível, desdobramento natural da Península em matéria cultural, que ajudou os espanhóis a lerem Castro e Pessoa e que Saramago nos pede, num piscar cúmplice de olho, que não esqueçamos.
Por isso, creio que A Jangada de Pedra está plenamente atual e mais viva do que nunca trinta anos depois, recordando-nos que o mundo é vasto e amplo e que o Iberismo de que tantas vezes falamos ao referirmo-nos a Saramago deve de facto ser, nos nossos dias, Transiberismo, pois conta como elemento fundamental, muito para lá dos referentes europeus, com o diálogo cultural com os países iberoamericanos. Um diálogo que parece uma resposta visionária do autor no contexto daquele 1986 em que os dois países integraram a União Europeia, e que, passados trinta anos, se torna mais necessário do que nunca recordar."

Breve informação sobre o autor do texto, aqui
"Antonio Sáez Delgado. Concluiu Filologia Hispânica - Universidad de Extremadura em 1999. É da Universidade de Évora. Publicou 22 artigos em revistas especializadas e 5 trabalhos em actas de eventos, possui 16 capítulos de livros e 20 livros publicados. Recebeu 1 prémio e/ou homenagem. Actua na área de Humanidades com ênfase em Línguas e Literaturas. Nas suas actividades profissionais interagiu com 32 colaboradores em co-autorias de trabalhos científicos. No seu curriculum DeGóis os termos mais frequentes na contextualização da produção científica, tecnológica e artístico-cultural são: Literatura, Literatura comparada, Portugal, Modernismo, Espanha, Traducción, España, Fernando Pessoa, Literatura portuguesa e Literatura espanhola."