Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 26 de março de 2015

"As Intermitências da Morte" sob a análise de Ian Caetano (Diário da Manhã - Brasil)

 “Que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer, Nunca mais é demasiado tempo, mesmo tratando-se da morte, senhor primeiro-ministro, Creio que não me respondeu, eminência, Devolvo-lhe a pergunta, que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer, O estado tentará sobreviver, ainda que eu muito duvide de que o venha a conseguir, mas e a igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras, Ainda que a realidade as contradiga […], Que irá dizer o papa, Se eu o fosse, perdoe-me deus a estulta vaidade de pensar-me tal, mandaria pôr imediatamente em circulação uma nova tese, a da morte adiada, Sem mais explicações, À igreja nunca se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra especialidade, além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito curioso.” 

José Saramago – As Intermitências da Morte

Capa da edição brasileira, editora Companhia das Letras

Pode ser consultado e lido, aqui 
em http://www.dm.com.br/revista/2015/03/no-dia-seguinte-ninguem-morreu.html

Link da edição em http://www.dm.com.br/

Ian Caetano, Especial para Diário da Manhã

"O único Nobel de literatura da língua portuguesa, José Saramago, é um autor que se destaca em diversos aspectos: pelo ingresso tardio como escritor “profissional” (no sentido de viver desta atividade, já estava quase aos 50 quando começou a prospectar esta carreira; tendo trabalhado antes como mecânico de automóveis, desenhista, jornalista e arriscou-se também em algumas traduções); pela produtividade (publicara seu primeiro livro ainda jovem, entre este e o segundo houve um hiato de 20 anos e, a partir daí, dentre romances, livros de poesia, crônicas, teatro e diários, publicou praticamente um por ano até o fim da vida) e, dentre diversas outras coisas, é aclamado por seu estilo, bastante próprio, de escrita. Mas não deixemo-nos crer que isto faz deste um autor de livros mornos, de best-sellers pouco elaborados em termos de conteúdo.

José Saramago destaca-se principalmente por sua capacidade de criação alegórica, já tendo reescrito a história de Cristo (O evangelho segundo Jesus Cristo); relatado a vida em um mundo onde, de uma hora para a outra, tornamo-nos cegos (Ensaio sobre a cegueira); contado a história sobre um homem que descobre ter um idêntico de si (O homem duplicado); e até se arriscado nas distopias, contando a história de habitantes que moravam em uma organização urbana de novo tipo chamada “centro” (A caverna), além de diversas outras histórias.

Comunista e ateu convicto, teve inúmeros problemas com o governo de sua própria terra – o que culminou em seu auto-imposto exílio nas ilhas canárias, da Espanha – e também com a igreja católica e com os judeus e com mais um sem fim de gente; mas não podia ser chamado um provocador, tão somente um homem de opinião forte e de ativa participação política. Apesar da vida juvenil penosa, como já reiterara em várias entrevistas quando perguntado, não era dado ao miseribilismo. Mas não estamos cá para tratar da biografia do autor, mas de uma de suas obras, e com Saramago é até difícil falar de alguma mais destacada, é como se todas compusessem um grandioso ensaio sobre os problemas da humanidade.

As intermitências da morte começa com um fato espantoso, “efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos 40 volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenômeno semelhante”, que é o de que, após a virada do ano, durante as 24 horas do dia primeiro, ninguém morreu (naquele país).

Nisto o livro se desenrola, com autoridades tentando entender e administrar o ocorrido; agentes funerários coléricos, cobrando das autoridades que se instituíssem novas leis à obrigatoriedade dos trâmites fúnebres aos animais de estimação, uma vez que a matéria-prima desta profissão, os mortos humanos, havia cessado de existir naquele lugar; o colapso do sistema de “abrigos do feliz ocaso” (asilos), uma vez que já não se abriam novas vagas, e os velhos apenas ficavam mais velhos e os jovens também; a igreja, que agora perdera a carta da morte, tentando rearticular sua forma de dominação dos corpos; o contrabando dos moribundos para os limites da fronteira, com vistas a conseguir o já ansiado último suspi… e inúmeras outras situações compostas de um certo humor negro misturado de crítica do status e dos costumes.

O livro vai até sua quase metade narrando o estado de caos em que fica o país com a greve da morte. E eis que surge esta, en persona.

A partir daí basta dizer que a morte que é dotada de vida pela pena de Saramago é sarcástica, enigmática, animada por certa curiosidade das coisas humanas e tem consigo a mais interessante das personagens desta história, que é sua gadanha, com a qual ceifava vidas, mas que hoje, com os modernos métodos de produzir morte gerados pelo homem, está praticamente aposentada. Dizer mais que isto não é em nada produtivo. Basta advogar que nada falta a esta obra: a típica assinatura de Saramago em termos de escrita, as simultaneamente pertinentes e contra-intuitivas digressões do narrador, permeadas de filosofia ensaística e uma espécie de humor ora irônico, ora cansado.

As consequências e as razões de uma intermitência da morte lê-se nesta obra-prima."

Nota: o presente texto é republicado na integra, respeitando a ortografia do autor