Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 28 de julho de 2017

'Precisamos de ideias dos intelectuais para a sociedade', diz Pilar del Río na Flip (via Estadão 27/07/2017)

A notícia foi publicada por Guilherme Sobota - "O Estado de S. Paulo" em 27 Julho 2017 e pode ser recuperada aqui

"Pilar del Río em Paraty, nesta quinta-feira, 27 
Foto: Guilherme Sobota/Estadão"

"Jornalista espanhola e presidente da Fundação José Saramago ainda ironizou que os pensadores capazes não podem ficar especulando sobre o 'gerúndio'"

"PARATY - Conhecida também por sua postura firma na defesa dos direitos humanos frente à Fundação José Saramago, a jornalista espanhola Pilar del Río cobrou, em coletiva de imprensa na Flip, de pensadores e intelectuais ideias para que a sociedade global consiga sair das crises em que se meteu. “De quem virão as ideias? Dos partidos políticos? Não, precisamos das universidades, dos pensadores, criadores, intelectuais, dos aristocratas da sociedade, que não são os que têm dinheiro, mas o que têm ideias”, comentou. "Os intelectuais capazes disso não podem ficar pensando no 'gerúndio'", ironizou.

Pilar falou a jornalistas na manhã desta quinta-feira, 27. Ela participa de uma mesa na programação oficial nesta sexta-feira, 28, às 17h15, com mediação do escritor Alexandre Vidal Porto.

Ela falou também sobre o trabalho da Fundação José Saramago. “Há milhões de seres humanos que são excluídos do presente e do futuro, e talvez tenha sido nós (pensadores e intelectuais) que permitimos que isso tenha acontecido. Talvez não tenhamos cumprido com nossa obrigação quanto ao futuro.” A Fundação tem um trabalho permanente de resgate da Declaração Universal de Deveres Humanos, proposta formulada por Saramago para o discurso do Prêmio Nobel, em 1998.

Pilar está em Paraty também por conta da parceria com a Fundação Casa de Jorge Amado. Um livro, Jorge Amado e José Saramago - Com o Mar Por Meio, com a troca de cartas entre os dois foi lançado e uma Casa em Paraty foi montada para receber programação e celebrar a obra de ambos. “Fico muito feliz que esses dois autores, conhecidos por seu respeito à diversidade e às mulheres, tenham sido incluídos na programação institucional dessa Flip que relembra Lima Barreto”, comentou."


sábado, 22 de julho de 2017

"José Saramago e suas personagens" de Adelto Gonçalves (Mundo Lusíada, 22/07/2017)

Recuperação da obra de Salma Ferraz - "Dicionário de personagens da obra de José Saramago"

Texto de Adelto Gonçalves (Mundo Lusíada, 20 julho 2017), pode ser recuperado aqui
em http://www.mundolusiada.com.br/artigos/jose-saramago-e-suas-personagens-por-adelto-goncalves/

"I
Um levantamento de 354 protagonistas e figurantes – praticamente, todos – que perpassam os romances e peças teatrais do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 é o que o leitor vai encontrar em Dicionário de Personagens da Obra de José Saramago (Blumenau-SC: Editora da Fundação Universidade Regional de Blumenau – EdiFurb, 2012), da professora Salma Ferraz, resultado de uma pesquisa que durou mais de 15 anos e contou com a colaboração de mais de oito dezenas de seus alunos.

Obra aberta, sem a pretensão de se tornar definitiva ou completa, o livro, além de homenagear Saramago, segundo a autora, tem o objetivo de não só catalogar a imensa galeria de personagens saramaguianos como abrir um debate e até mesmo aceitar novos verbetes para uma futura segunda edição. Mas, desde já, constitui, sem dúvida, leitura indispensável aos amantes da boa literatura de Saramago.

Da pesquisa, ficaram de fora os contos e crônicas da primeira fase de Saramago, ainda que o romance Terra do Pecado (1947), também da época inicial da trajetória do autor, tenha sido igualmente analisado. Exceção foi aberta para O Conto da Ilha desconhecida (1997), que faz parte da fase madura do escritor. Já o romance Claraboia, embora escrito em 1953, e, portanto, da primeira fase, mas publicado em 2011 pela editora Companhia das Letras, de São Paulo, não foi incluído na pesquisa por se tratar de publicação post mortem.

Como esclarece na apresentação que escreveu para sua própria obra, a autora incluiu ainda determinados lugares que aparecem em alguns dos romances, já que “transcendem o papel de mero local em que os fatos acontecem e chegam a comportar-se como personagens importantes para o desenvolvimento do enredo”. A título de exemplo, pode-se citar o “Centro” (shopping) de A Caverna (2000), a “Conservatória Geral” e “Cemitério Geral” de Todos os Nomes (1997), o “quarto da morte” de As Intermitências da Morte (2005) e o “deserto” de Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Personificações como “morte” e “gadanha” de As Intermitências da Morte e instituições como “máphia” e “governo” do mesmo romance também ganharam verbetes.

Até mesmo personagens que fogem à condição humana foram contemplados, como os cães “Achado”, “Ardent”, “Tomarctus” e “Cão das Lágrimas”, que na obra de Saramago tantas vezes apresentam sentimentos e reações que nem sempre são encontrados com facilidade em homens e mulheres. Sem contar o “Elefante”, que seria a personagem principal do conto A Viagem do Elefante (2008).

II
Uma das personagens mais fascinantes dessa extensa galeria, na verdade, não saiu da cabeça de Saramago, mas do poeta Fernando Pessoa (1888-1935). Trata-se de Ricardo Reis, protagonista de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), heterônimo pessoano, cuja “morte” foi deixada em aberto por seu idealizador. No romance de Saramago, porém, Reis tem 48 anos de idade, é solteiro, natural do Porto, graduado em medicina, vive no Rio de Janeiro auto-exilado e recebe de seu segundo criador, como diz Salma, “uma segunda vida fictícia, uma vida em trânsito, uma vida em suspenso”. Ou seja, o romancista recria um Ricardo Reis “que nunca existiu”, que acaba por se tornar, isso sim, um heterônimo saramaguiano.

“O romancista brinca com essa personagem, pois através dela transgride os limites entre realidade e ficção”, diz a dicionarista. E acrescenta: “Saramago faz com que Ricardo Reis perca características heteronímicas básicas, sendo esse o motivo pelo qual Pessoa aparece na obra para cobrá-lo. Isso o perturba, pois seu heterônimo não se envolvia com nada, vivia uma ataraxia. Reis se mantém contemplativo até a última página do livro e como um morto-vivo, ou vivo-morto, não consegue se libertar do seu criador”. Para quem não sabe, ataraxia quer dizer apatia ou ausência de paixão ou ainda ausência de inquietude.

Outra personagem fascinante – e memorável – da obra saramaguiana é Raimundo Benvindo Silva, protagonista de História do Cerco de Lisboa (1989), revisor de textos de uma editora, homem sóbrio e tímido, cinquentão, de vida sedentária, solteiro e distante de seus parentes, que, um dia, acha de transgredir as normas de seu ofício, ao colocar um não que adultera uma obra séria que trata da tomada de Lisboa no ano de 1147, na qual os portugueses teriam contado com a ajuda dos cruzados para expulsar os mouros. O livro é impresso com o erro e, quando descoberta a fraude, a editora é obrigada a anexar uma errata a cada exemplar. Com isso, o olho da rua começa a piscar para o pacato e sério revisor, responsável pelo mal-estar c riado entre os donos da editora e o autor da obra.

O episódio serve para Raimundo Silva aproximar-se de Maria Sara, sua nova supervisora na editora, também objeto de verbete nesta obra. A partir daí, sua vida começa a ganhar novas cores, como diz Salma Ferraz: “Ter colocado este não no texto que revisava foi o feito mais importante de sua vida, pois a partir desse momento delineiam-se dois fatos importantes que mudarão completamente sua vida: passa a reescrever, agora como autor, a nova História do Cerco de Lisboa, e passa a viver um cerco amoroso, envolvendo-se com Maria Sara”.

III
Obviamente, os verbetes repetem, em boa parte, o que o autor deixou em sua extensa obra, mas há um que se sobressai não só por sua extensão (de seis páginas) como pela erudição da dicionarista e o seu profundo conhecimento de Teologia, o que pode ser comprovado em seu robusto currículo. É quando trata da personagem Jesus, de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, homem, porque filho de José, e divino, por ser também filho de Deus.

Salma Ferraz recorda que, “na concepção de Jesus, o divino fecunda a carne humana, como na antiga Grécia, onde os deuses desciam do Olimpo para se relacionar com os humanos, fazendo nascer os heróis, estes semideuses que nada mais eram que humanos virtuosos sob determinados aspectos”.

Para a dicionarista, Saramago, que sempre se disse materialista e ateu, escreveu um “evangelho profano, espécie de desevangelho”, procurando mostrar Jesus Cristo como um homem comum, que carregaria a culpa herdada do pai José que, para que ele vivesse, teria deixado que “outras 25 crianças inocentes fossem assassinadas”. E que se revolta contra Deus que o teria escolhido como o seu cordeiro. Ou que não se daria bem com a mãe, Maria, nem com os seus irmãos, que o teriam tomado por louco por afirmar que vira Deus. Ou ainda que teria tido um caso passional com Maria de Magdala.

Obviamente, tudo isto é questionável. Tanto que, para a dicionarista, o romancista criou um Jesus que reflete as suas próprias dúvidas. Mas, seja como for, não se pode deixar de reconhecer que, para escrever o seu Evangelho, Saramago teve de se aprofundar como poucos teólogos no conhecimento das Escrituras. Até mesmo para contestá-las ou interpretá-las ao seu modo.

IV
Salma Ferraz é graduada em Letras pelas Faculdades Integradas Hebraico Brasileira Renascença de Letras de São Paulo (1987), com mestrado em 1995 e doutorado em 2002 pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. Concluiu o pós-doutoramento em Teologia e Literatura em 2008 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi bolsista da Fundación Carolina na Universidad Autónoma de Madrid (2009). Atualmente, é professora associada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e atua na pós- graduação, orientando projetos de pesquisa na área de Teopoética, estudos comparados entre Teologia e Literatura.

Tem experiência na área de Teologia, com ênfase no diálogo com a literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: José Saramago, Teologia, Bíblia e Literatura, Madalena, Judas, o demoníaco na Literatura, o vampiro na Literatura, contos e criação literária. Dirige o Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura (Nutel), sediado na UFSC, em Florianópolis-SC. É graduanda de Teologia na Faculdade de Teologia de Santa Catarina. Realizou pós-doutoramento na UFMG em 2013. Além de ensaísta, é contista com diversos prêmios recebidos e livros publicados.

Publicou 15 livros de crítica literária, entre os quais: Sois Deuses (Edufgd, 2012), As Malasartes de Lúcifer (Eduel, 2012), O Pólen do Divino (EdiFurb, 2011), Maria Madalena: a Mulher que Amou o Amor (Eduem, 2011), Deuses em Poética (João Pessoa, UFPB, 2009), No Princípio era Deus e Ele se fez Poesia (Rio Branco: Edufac, 2007) e As faces de Deus na Obra de um Ateu: José Saramago (Juiz de Fora, Eufjf, 2004), entre outros. Na área de ficção, publicou Em Nome do Homem (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999); O Ateu Ambulante (Blumenau, Furb, 2001), A Ceia dos Mortos (Florianópolis, edição de autor, 2007), Nem Sempre Amar é Tudo (EdiFurb, 2012). É autora ainda de Dicionário Machista: três mil anos de frases cretinas contra as mulheres (São Paulo, Jardim dos Livros, 2013)."

"Dicionário de personagens da obra de José Saramago, de Salma Ferraz. 
Blumenau-SC: EdiFurb, 360 págs., 2012. Internet: www.furb.br/editora"

"Por Adelto Gonçalves
Mestre em Língua e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entr e outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br" 

Quando as artes plásticas recuperam, recordam e perpetuam a essência do escritor José Saramago

Alguns links de referência dos autores indicados

Quadro baseado em "A Maior Flor do Mundo" 
pintura em aguarela de João Amaral (2017)


Quadro "A Existência da Memória" pintura acrílica de Minela Reis (2015)
Quadro baseado em "A Viagem do Elefante" pintura em aguarela de João Amaral (2016)
Quadro "Saramago" pintura acrílica de Isa Silva (réplica n.º 6, de 2013 - Projecto Square Faces)
10 fotografias de João Francisco Vilhena "Lanzarote A Janela de Saramago"


Quadro "A Existência da Memória" pintura acrílica de Minela Reis (2015)
Quadro baseado em "A Maior Flor do Mundo" pintura em aguarela de João Amaral (2017)


Quadro "Saramago" pintura acrílica de Isa Silva 
(réplica n.º 6, de 2013 - Projecto Square Faces)


Quadro baseado em "A Viagem do Elefante" 
pintura em aguarela de João Amaral (2016)

"Com o mar por meio" A amizade de Jorge Amado e José Saramago em cartas - José Saramago e Jorge Amado (Companhia das Letras)


Apresentação do livro de correspondência trocada entre José Saramago e Jorge Amado
Fotografias e texto de apresentação via "Companhia das Letras" (Brasil)


"O livro, que será lançado na casa que homenageia os escritores durante a Flip 2017, apresenta a correspondência inédita entre os dois gigantes da literatura de língua portuguesa."


"Apresentação
A amizade entre Jorge Amado e José Saramago teve início quando os dois já tinham idade mais avançada e consolidada carreira literária, porém o vínculo tardio não impediu que os escritores formassem um laço forte, estendido as suas companheiras, Zélia e Pilar. Este livro reúne a correspondência entre os dois mestres - e os dois casais, muitas vezes -, entre os anos de 1992 e 1998. São cartas, bilhetes, cartões e faxes com uma rica troca de ideias sobre questões tanto da vida íntima como da conjuntura contemporânea, sobretudo a cena literária. Eles debatem com humor sobre prêmios e associações de escritores, com especulações divertidas sobre quem seria, por exemplo, o próximo a ser contemplado com o Nobel ou o Camões. Com um projeto gráfico especial, ilustrado com facsímiles das missivas e belíssimas fotos do acervo pessoal dos autores, Com o mar por meio aproxima os leitores do universo particular dos dois amigos."



"Ficha Técnica
Título original: COM O MAR POR MEIO
Capa: Kiko Farkas / Máquina Estúdio 
Páginas: 120
Formato: 18.00 x 23.00 cm
Acabamento: Brochura
Lançamento: 24/07/2017
ISBN: 9788535929492
Selo: Companhia das Letras"


domingo, 16 de julho de 2017

"A importância de dizer não, segundo José Saramago" de Maria João Caetano (DN 05/07/2017)

Recuperação da notícia da estreia da peça de teatro baseada na obra de José Saramago, via DN por Maria João Caetano (05/07/2017) aqui
em http://www.dn.pt/artes/interior/a-importancia-de-dizer-nao-segundo-jose-saramago-8612698.html

"Quatro companhias portuguesas juntaram-se para adaptar "História do Cerco de Lisboa", do Nobel. Espetáculo estreia hoje no Teatro Municipal Joaquim Benite, no Festival de Almada.

Raimundo Silva, revisor numa editora, solteiro, de 50 anos, é um homem apagado, daqueles funcionários que cumpre as suas tarefas sem dar muito nas vistas. Porém, ao ler uma obra intitulada História do Cerco de Lisboa, ele tem vontade de fazer uma alteração: introduzir um "não". Essa simples palavra iria implicar uma enorme mudança na história pois significaria que os Cruzados não teriam ajudado Afonso Henriques a conquistar Lisboa aos mouros, em 1147. Descoberto, Silva mete-se em apuros na editora. No processo, o revisor apaixona-se pela sua supervisora, Maria Sara, ao mesmo tempo que pensa como há de recontar a história do cerco num novo livro. A conquista amorosa desenrola-se a par da conquista dos portugueses aos mouros."

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

"Esta é, em traços largos, a História do Cerco de Lisboa, contada por José Saramago no livro de 1989, e que a dupla espanhola José Gabriel Antuñano (dramaturgia) e Ignacio García (encenação) transformou em espetáculo numa megaprodução de quatro companhias de teatro: ACTA - A Companhia de Teatro do Algarve, Companhia de Teatro de Almada, Companhia de Teatro de Braga e Teatro dos Aloés.

No palco, além das personagens da história, está também o próprio José Saramago, o narrador que no romance se revela em alguns momentos mas que aqui tem protagonismo: não só lhe ouvimos a voz inconfundível (são excertos de entrevistas) como ganha um corpo e uma presença constante com o ator Jorge Silva. "Interessou-me muito a sobreposição de planos - e esta é uma característica de muitos dos romances de Saramago", explica Ignacio García. "É como um conjuntos de matrioskas, as bonecas russas: Saramago escreve um romance sobre duas personagens, das quais uma é um romancista que está a escrever um livro e que tem as suas próprias personagens, Há um jogo de reflexos, histórias que se desenrolam em paralelo, em diferentes níveis, e que tanto no livro como no espetáculo vão lutando para captar a atenção do leitor/ espectador."

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

 Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

"José Saramago é uma personagem que fala com todas as personagens, de todos os planos, e também fala com o público", explica José Gabriel Antuñano, responsável pela adaptação da obra do escritor português. E vai mais longe na interpretação: "As personagens não pertencem a um único mundo, pois estão todas na cabeça dos escritores (Saramago e Silva). Por um lado, são criadas pelo escritor, por outro, também influenciam o autor, esse jogo acontece aqui permanentemente."

Quem está na plateia tem oportunidade ver todos os planos. No cenário povoado por livros, imaginado por José Pedro Castanheira, o palco fica aberto, mostrando a teia de iluminação e os chariots, nas laterais, onde estão pendurados os figurinos, vemos os atores entrar e sair de cena, trocar de roupa, fazer a maquilhagem, beber água quando precisam de beber água e até comentarem as cenas. "Todas as decisões do espetáculo tentam ser fiéis a Saramago", justifica o encenador. "Ele incluiu-se a si mesmo no romance e nós incluímo-lo no espetáculo. Saramago brinca com o que significa escrever um romance e nós, aqui, fazemos piadas sobre o teatro e a representação. O público vê os atores a fazerem personagens, vê o truque, a mentira." E explica: "Há uma frase de Saramago de que gosto muito: 'o passado é o reino dos fragmentos'. Isto inspirou-me muito. Numa mentira muito grande vemos fragmentos de verdade, é o que se passa neste espetáculo."

Que todo este jogo meta literário não nos desvie daquilo que Saramago queria dizer com o seu livro, sublinha o encenador: "Há que ler de uma maneira crítica e dialética, não se pode acreditar em tudo o que se lê. Num momento como este em que vivemos em que estamos todos acostumados a acreditar em tudo o que vemos - na televisão, no twitter... - Saramago propõe uma atitude crítica, ler sim mas ter uma opinião e ser capaz de dizer que não àquilo que não está certo ou que não é aceitável." A importância de dizer não - às injustiças, às ditaduras, às mentiras - é reforçada à medida que nos aproximamos do final do espetáculo. José Gabriel Antuñano sublinha essa ideia "de que um simples não pode mudar tudo".

E faz mais uma interpretação: "Este é também um livro sobre a condição do ser humano; como uma pessoa triste, como é o revisor (e como era Saramago) quando decide ter um ato de rebeldia transforma-se numa pessoa criativa e feliz, que sai de si mesmo e que encontra o amor, essa é a história de Silva mas também é a história de saramago com Pilar." José Saramago e Pilar casaram-se em 1988, na altura em que ele estaria a escrever História do Cerco de Lisboa.

O espetáculo estreia no Festival de Almada mas regressará, em setembro, com uma carreira longa que irá passar pelos vários teatros envolvidos, num esforço que Rodrigo Francisco, diretor do festival, vê como "um verdadeiro serviço público". No palco, juntam-se Elsa Valentim, Jorge Silva e José Peixoto (Aloés), Rui Madeira (Braga), Luís Vicente e Tânia Silva (ACTA), João Farraia, Pedro Walter (Almada) e ainda Ana Bustorff."

"O ignorado aniversário da morte de Saramago" de Marco Aurélio Abrão Conte (Jornal Metrópole, Carapicuíba Brasil)

"O ignorado aniversário da morte de Saramago" de Marco Aurélio Abrão Conte[1]

O trabalho que se publica pode ser consultado aqui 
em http://www.jornalmetropole.com.br/o-ignorado-aniversario-da-morte-de-saramago/

“Medo da morte não consigo ter
Mas outros, mais humanos e banais
Medos que a gente tem, mesmo sem crer
Como o medo que eu tenho de morrer
Só por querer viver um pouco mais.”
Manuela de Freitas, a partir de declarações de José Saramago

“Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.”
Álvaro de Campos

"Que Fernando Pessoa profetizasse, através de seu heterônimo engenheiro, a escassa e intermitente memória a que são reduzidos os mortos, não é de  espantar, dada sua aguda percepção da alma e do comportamento humanos. Também não é espantoso, conquanto a intertextualidade seja genial, que José Saramago (1922-2010), propondo-se a revisitar o mito pessoano, em 1984, com o romance O ano da morte de Ricardo Reis, fizesse com que seu protagonista ouvisse do autor de Mensagem, recém-falecido na diegese  ambientada em 1936, que, imediatamente após a morte, o homem outra vez atravessaria emblemáticos nove meses, nos quais deveria habituar-se a “ter estado e já não estar” – definição de morte dada pelo Nobel de literatura.
No dia 18 de junho passado, o aniversário de morte de José de Sousa Saramago, talvez sufocado pelos caóticos acontecimentos na esfera política, foi simplesmente ignorado pelos veículos midiáticos brasileiros. Mesmo em Portugal, país onde o escritor passou setenta anos de sua vida antes de se mudar para a ilha canária de Lanzarote, poucos foram os jornais que relembraram o autor falecido há sete anos. Ao que parece, apenas a Porto Editora, que publica a obra do escritor em seu país de origem, e a fundação que leva seu nome, presidida por sua viúva, a jornalista espanhola Pilar del Río, promoveram eventos em homenagem ao romancista: na Casa dos Bicos, em Lisboa, sede da Fundação José Saramago, foi apresentado o concerto-teatral Levantei-me do Chão, Lado B, inspirado no primeiro sucesso do escritor; e, na Feira do Livro de Lisboa, no espaço da editora – que, na mesma semana, lançou Claraboia, romance escrito em 1953 que permaneceu inédito até a morte do escritor –, o autor e sua obra foram homenageados.
Segundo Harold Bloom, Saramago foi um dos mais importantes escritores da literatura universal do século XX. Conquanto tenha sido um escritor tardio, publicou, aos 25 anos de idade, o romance Terra do Pecado – assim chamado por razões comerciais, haja vista que o título por ele escolhido era A viúva –, o qual rejeitou até os últimos anos de sua vida, quando foi convencido por Zeferino Coelho, da Editorial Caminho, então responsável pela publicação de sua obra, a relançar o livro. Neste, que nem de longe lembra a marcante prosa saramaguiana a que fomos apresentados na década de 1980, já estavam presentes, mesmo que de forma embrionária, alguns dos maiores temas de sua posterior produção: a incoerência das religiões e a força da mulher, retratados pelo Dr. Viegas e pela empregada doméstica Benedita. “Felizmente”, como escreveu, o jovem não obteve sucesso e passou quase vinte anos sem nada publicar, dedicando-se às mais diversas profissões, como a de serralheiro mecânico e a de funcionário público numa agência de seguros, até tornar-se conhecido na sociedade lisboeta por sua atuação na Editorial Estúdios Cor e nos vários jornais para os quais  escreveu. No prefácio da reedição da obra, o autor diz que não sentia ter algo relevante para escrever e, portanto, resistiu à vaidade de publicar apenas pelo prazer da publicação.
A partir de 1966, o autor publica os livros que seriam responsáveis por sedimentar seu estilo literário, mesmo que a literatura fosse então um trabalho secundário em sua vida: poemas, crônicas, traduções e artigos jornalísticos. Em 1975, no entanto, ao ver-se desempregado – consequência da contrarrevolução de novembro – e desamparado pelo Partido Comunista Português, para o qual sempre militou, decide dedicar-se exclusivamente à escrita e publica, dois anos depois, Manual de pintura e caligrafia, chamado em seu subtítulo de ensaio de romance, no qual o protagonista H., pintor insatisfeito com os rumos de sua produção e de sua vida, decide investir na carreira de escritor. Talvez o mais autobiográfico dos livros do autor – ressalte-se que é nesta obra que Saramago afirma que “tudo é autobiografia” –, o romance evidencia uma escrita madura, decidida, irônica e sensível, revelando que, sim, José teria algo a dizer a partir de então.
E disse! Das mais diversas e criativas formas. Em 1980, auxiliado pelas vozes alentejanas, o escritor vaza Levantado do Chão no revolucionário estilo que o tornaria célebre. Subvertendo a pontuação, transpondo traços da oralidade à prosa romanesca e impondo ao leitor uma simbiose entre o discurso direto e indireto, o livro fora imediatamente aclamado em seu país, criando uma expectativa em torno do que seria  daquele escritor, que iniciava uma carreira num momento da vida em que, como disse Gabriel Garcia Márquez, seu dileto amigo, “a maioria dos escritores já estão a deixar de escrever”. Dois anos mais tarde, com Memorial do Convento, o autor consolida seu estilo e influência na literatura, traçando um retrato do reinado de D. João V corroído por sua ácida ironia, dando voz aos que, historicamente, não a tiveram, tentando evitar que a grandeza do feito, o Palácio Nacional de Mafra, ofuscasse a vital importância dos que o construíram .
José Saramago, veemente crítico da União Europeia, usa de sua Jangada de Pedra para estimular a reflexão acerca do que representariam os dois ibéricos países no conjunto de uma Europa historicamente conduzida por interesses econômicos das nações mais potentes. Ao propor que Portugal e Espanha descolem-se geograficamente do velho continente e estacionem entre o Brasil e a África – não coincidentemente, dois territórios já conhecidos e explorados pelos portugueses – o autor evidencia a necessidade de comunicação entre a Península Ibérica e os países de que mais se aproxima culturalmente, como os da América Latina.
O polêmico escritor, propõe, ainda, a revisitação histórica de mitos portugueses – como os de Dom Sebastião e Camões, na peça Que farei com este livro?, e o de Fernando Pessoa no romance de 1984 –, de episódios históricos responsáveis pela formação da contemporaneidade portuguesa – como a própria formação do país, em História do Cerco de Lisboa, em que, narrando a retomada da cidade das mãos mouras, reflete acerca da importância da Igreja Católica e de seus Cruzados na sociedade portuguesa; a Revolução dos Cravos – tão presente no chamado por Horácio Costa de período formativo de sua obra – em A Noite, peça de 1979 – e de pilares culturais da sociedade ocidental – como o controverso OEvangelho segundo Jesus Cristo, cuja retirada do Prêmio Literário Europeu, vinda do então subsecretário de cultura Sousa Lara, leva José e Pilar a mudarem-se para as Ilhas Canárias; e o incendiário Caim, último romance publicado em vida pelo escritor, no qual chega a afirmar violentamente, abdicando das sutilezas de sua conhecida ironia, que “deus é um filho da puta”.
A genialidade de Saramago evidenciou em sua literatura a total fragilidade da condição humana no mundo: a civilização desmantelada, na qual o homem usa da razão para prejudicar seus semelhantes, em Ensaio sobre a Cegueira, poderosa e insólita alegoria da vida contemporânea; o eminente fracasso da democracia – segundo o autor, apenas formal e não substancial – da qual as nações ocidentais se orgulham, em Ensaio sobre a lucidez; a naturalidade da morte, em As intermitências de morte, romance de 2008 em que o autor trata, com invejável bom humor, do fim da vida; a inutilidade da existência, revelada pelo destino do histórico Salomão, morto para que suas patas servissem de porta-guarda-chuvas, em A viagem do elefante; a identidade perdida, alegorizada em O homem duplicado… É imensurável a contribuição do escritor português para a literatura e a reflexão humana.
Desde sua morte, há sete anos, a responsável pela divulgação de sua obra e suas bandeiras sociais – em especial a defesa da Declaração dos Direitos Humanos, foco de seu discurso em Estocolmo quando da recepção do Prêmio Nobel – é Pilar del Río, com quem o escritor dividiu os últimos vinte e três anos de sua vida e por quem nutria – basta que olhemos as dedicatórias de seus livros – verdadeira devoção, tanto é que, ateu convicto e descrente de toda e qualquer metafísica, no documentário José e Pilar, do realizador português Miguel Gonçalves Mendes, ao falar de sua morte, Saramago diz que suas cinzas ficariam sob uma pedra no jardim de sua casa em Lanzarote e diz ter pedido à esposa que, sempre que sentisse sua falta, lhe levasse uma pequena flor, “para que eu saiba que não me esqueceram”. Pilar, “que não deixou que eu morresse”, “minha casa”, “meu pilar”, é o catalisador de um raríssimo momento em que o escritor admite para si uma continuidade pós-morte: saber de algo, mesmo depois de “já não estar”. No mesmo filme, quando da filmagem da inauguração de sua fundação, José Saramago diz ter respondido, ao ser perguntado a respeito das ações que esperava por parte dela, Pilar, após sua morte: “continuar-me”, ao que a jornalista vem cumprindo – passou a publicar a obra do autor pela Porto Editora para que, segundo disse, tivesse mais alcance e melhor tratamento; discursou em diversas e importantes ocasiões a respeito dos temas por ele tratados em seus romances; e dedica-se exclusivamente à fundação da qual é presidenta – termo que ambos defenderam.
Saramago, mesmo depois de morto, permanece atual num ocidente cada vez mais desumanizado. Sua obra, pungente e vigorosa, pode/deve ser lida como um preciso retrato de uma sociedade guiada por escusos interesses de devassas instituições políticas, religiosas e, sobretudo, econômicas – faz-se possível, por exemplo, analisar a postura da imprensa no impedimento de Dilma Rousseff à luz da peça A Noite, a atual condição política brasileira sob as reflexões de Ensaio sobre a lucidez, ou o drama dos refugiados sírios a partir do Ensaio sobre a cegueira. Pena é que, culturalmente, as mídias, e consequentemente seus consumidores, habituaram-se a relembrar célebres mortos apenas quando de suas datas mais esteticamente agradáveis: como se dará em 2020, ano em que sua morte completará os redondos 10 anos, ou em 2022, centenário de seu nascimento. Álvaro de Campos tinha razão. Os homens, em sua maioria, perderam-na. José Saramago foi um grito de alerta em relação a esta perda, mesmo que hoje seja ouvido apenas aniversariamente pelas grandes multidões. Serve de consolo, no entanto, que a produção saramaguiana, esta sim, siga imortal e aja como uma tentativa de resgate das consciências humanas num momento em que elas são cada vez mais necessárias.

“Um dia desaparece o Sol… e acabou. E o Universo nem sequer se dará conta de que nós existimos. O Universo não saberá que o Homero escreveu a Ilíada”.

[1] Graduando em Letras na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara.

sábado, 15 de julho de 2017

Barbara Jursic "As personagens femininas em O Ano da Morte de Ricardo Reis" (Revista Triplo V - Nova Série | 2011 | Número 14)

"As personagens femininas em O Ano da Morte de Ricardo Reis" de Barbara Jursic

"Revista Triplo V" de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 14
Pode ser consultada aqui
em http://triplov.com/novaserie.revista/numero_14/barbara_jursic/index.html


"O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago oferece imensas possibilidade de estudo porque muito rico no nível literário, da intertextualidade, da realidade social e política.

A história parece simples à primeira leitura. Fernando Pessoa morto aparece várias vezes a Ricardo Reis, vindo do Brasil, depois da sua chegada a Portugal. Sem sabermos quem era Ricardo Reis ou, melhor dito, que era (só) um produto da imaginação de Fernando Pessoa, uma personagem que vem pintada segundo a imagem de uma pessoa verdadeira, que realmente existiu, ele parece um homem normal e não apresenta dúvidas sobre a sua veracidade. Quando olharmos para o que está por detrás da história, os elementos dos quais Saramago se serviu para inventar ou reinventar à sua maneira as personagens, percebemos que é tudo muito mais complexo do que parece à primeira vista.

Fernando Pessoa, que realmente existiu, aparece no romance como um fantasma, um homem já morto que aparece a Ricardo Reis que, por sua vez, tenta ser ou tornar-se personagem verdadeira e não ficar só na qualidade de heterónimo de Fernando Pessoa. Os seus esforços são bastante vãos e, em vez de o levarem para uma vida nova, para uma existência só dele, para a individualidade, o protagonista acaba por seguir Fernando Pessoa ao cemitério dos Prazeres, finaliza o seu percurso na terra dos mortos, mortos fisicamente.

No romance há duas personagens femininas diametralmente opostas que são muito importantes na vida de Ricardo Reis e têm também um forte valor simbólico.

Marcenda anuncia a morte, a impossibilidade de agir de Ricardo Reis, mas é ao mesmo tempo uma personagem muito poética e excepcional, e a outra, Lídia, é a única personagem inteiramente verdadeira, ela é vida e não tem nada de fantástico, tem uma voz e um corpo e é o laço de Ricardo Reis com o mundo (real).

 
Marcenda – ilusão ou espelho de Ricardo Reis?

 
Marcenda, já pelo nome, como lemos no romance, “este nome de Marcenda não o usam mulheres, são palavras doutro mundo, doutro lugar, femininos mas de raça gerúndia”[1], parece um fantasma também, como se tentasse existir sem inteiramente conseguir. Esta personagem surge na vida de Ricardo Reis como uma aparição, com a sua mão paralítica que atrai a atenção, porém, apesar de morta, a mão parece a parte mais viva de todo o seu corpo. Marcenda parece ausente deste mundo, menos presente do que um fantasma.  

Essa musa etérea que poderia à primeira vista alinhar-se com as de Cloe, Neera e Lídia que o engenho pessoano criara, é uma espécie de traição romanesca tragicamente instaurada desde o nome.[2] 

O nome da protagonista anuncia que ela deve murchar, ela é marcenda, não é imarcescível. A protagonista é musa, mas não eterna e incorruptível, porque “marcenda é aquela que deve murchar, aquela a quem falta a eternidade e que está fadada a ser mortal”[3]. A personagem, durante a leitura, nem nos parece mortal, parece menos do que um fantasma, quase inexistente. Ricardo Reis, que é de certo modo um fantasma e, por isso, quase inexistente, envolve-se com ela emocionalmente, porque se sente atraído pela sua rarefacção, em tudo semelhante a ele.

Marcenda, estranho nome, nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco, uma arcada de violoncelo, les sanglots longs de l’automne, os alabastros, os balaústres, esta poesia de sol-posto e doente irrita-o, as coisas de que um nome é capaz, Marcenda.[4]

O seu nome perturba Ricardo Reis como se de um velho segredo, um mistério, quase de um esconjuro se tratasse; como se fosse irreal, só um murmúrio, um eco, algo que toca levemente a nossa consciência e passa, que não é mais do que fruto da nossa imaginação ou sensibilidade excessiva, alguma coisa leve, mas ao mesmo tempo fria e petrificada, que passa, embora permaneça qual pequena memória que irrita. Marcenda irrita Ricardo Reis, porque estabelece com ele uma relação diferente de todas as suas anteriores. Às vezes, temos a sensação de que não se trata de um ser vivo, antes as vibrações de um nome, Marcenda.

Todavia, a personagem parecendo tão angelical, com a sua mão paralítica, anuncia a morte, a impossibilidade de agir de Ricardo Reis. Marcenda reforça o falhanço de Reis em se autonomizar. No horizonte deste romance onde pululam os fantasmas, esta mulher é mais um ou apenas uma sombra deles.

A somar a isto, Marcenda lembra também as musas antigas das Odes do heterónimo Ricardo Reis. Reis, personagem, tenta construir a sua história depois de voltar do Brasil como a jovem tenta construir a sua própria, mas tanto um como o outro não conseguem fazê-lo. A personagem não tem forças para agir, para fazer o que quer, é incapaz de resistir às imposições externas, como se pode verificar na seguinte citação: “Meu pai continua a dizer que devo ir a Fátima e eu vou, só para lhe dar gosto”[5]. Marcenda vem a Lisboa para agradar ao pai, que vai ver a amante sob o pretexto de levar a filha ao médico. “Obedece, não luta, cede, agrada, mente até, se necessário, não assume”[6]. Marcenda parece-se muito com Ricardo Reis, personagem, sobretudo na segunda parte da sua estadia em Portugal, quando já não luta mais e é incapaz de conquistar a sua identidade. Ela não está no tempo, como também Ricardo Reis não se encontra no tempo em que vive ou tenta viver independentemente de Fernando Pessoa, escapando ao heterónimo. Não está viva, porque nada lhe pertence, nem mesmo a mão inerte. Reis, ao deixar no fim da narrativa o chapéu que o caracteriza, expressa a sua desistência. “Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe que não se usa lá.”[7] Os dois estão presos no labirinto da sua própria incapacidade.  

Não é Ricardo Reis quem pensa estes pensamentos nem um daqueles inúmeros que dentro de si moram, é talvez o próprio pensamento que se vai pensando, ou apenas pensando, enquanto ele assiste, surpreendido, ao desenrolar de um fio que o leva por caminhos e corredores ignotos, ao fim dos quais está uma rapariga vestida de branco que nem pode segurar o ramo das flores, pois o braço direito dela estará no seu braço, quando do altar tornarem, caminhando sobre a passadeira solene, ao som da marcha nupcial.[8] 

Num tom bastante irónico o narrador expõe que Ricardo Reis não é capaz de controlar nem dirigir os seus próprios pensamentos, assim como Marcenda não consegue mexer a sua mão paralisada. Reis, sem querer, sente-se próximo desta personagem feminina menina, vê-se casado com ela, o que não é de estranhar, pois partilham a mesma incapacidade de se imporem ao mundo.  

Marcenda é a aventura do livro que foi sem ter sido, da musa nova que relembra a musa antiga e revela a sua própria falência, que é semelhante à falência do heterónimo no tempo novo de 1936. Se, para continuar a viver 1936 na Europa, o heterónimo teria que assumir-se personagem na História, também a musa nova de molde antigo não pode sobreviver, é marcenda, marcescível.[9] 

O destino deles é feito pelos outros, moldado pela incapacidade dos dois agirem, da sua fragilidade.  

Ricardo Reis fez uma pausa, parecia reflectir, depois, debruçando-se, estendeu as mãos para Marcenda, perguntou, Posso, ela inclinou-se também um pouco para a frente e, continuando a segurar a mão esquerda com a mão direita, colocou-a entre as mãos dele, como uma ave doente, asa quebrada, chumbo cravado no peito. Devagar, aplicando uma pressão suave mas firme, ele percorreu com os dedos toda a mão dela, até ao pulso, sentindo pela primeira vez na vida o que é abandono total, a ausência duma reacção voluntária ou instintiva, uma entrega sem defesa, pior ainda, um corpo estranho que não pertencesse a este mundo.[10]

    Marcenda é a mão inerte, a asa quebrada, o pássaro que não pode voar, a pessoa que não consegue viver. Será que não pertence a este mundo? O que provocou a paralisia foi, contudo, uma dor completamente humana, a perda da mãe, facto que simboliza a possibilidade de doença física causada por distúrbios emocionais. Ricardo Reis diz a Marcenda: “se está doente do coração, também está doente de si mesma”[11]. Ela não consegue livrar-se daquela dor e Ricardo Reis não consegue escapar à presença de Fernando Pessoa, realidades que os unem simbolicamente. Quando programam um encontro, o narrador anuncia-o com um dos seus famosos comentários.  

Uma donzela de Coimbra marca, em furtivo bilhete, encontro com o médico de meia-idade que veio do Brasil, talvez fugido, pelo menos suspeito, que quinta das lágrimas se estará preparando aqui.[12] 

Esta passagem lembra a conhecida narrativa histórica de Inês de Castro. O comentário saramaguiano é irónico e anuncia os eventos seguintes. Claro que a história não é tão cruel como a do século XIV, mas deixa perceber uma impossibilidade, uma incapacidade parecida. Tal como Pedro e Inês, Marcenda e Ricardo Reis não ficarão juntos, contudo, enquanto o primeiro par foi afastado por forças externas, o segundo falhou por incapacidade emocional de ambos. Apesar de Reis e Marcenda se beijarem, quando ela o vem ver a casa e depois ao consultório dele, nada mais acontece, porque, quer um quer o outro, não têm forças para mais. Marcenda recusa o pedido de casamento de Ricardo Reis, “Marcenda, case comigo”[13]. Não pode, porque não é somente a sua mão que está morta, é toda ela. Ricardo Reis escreve-lhe cartas, como se estivesse muito longe, num outro mundo.  

Ricardo Reis tem a impressão de estar a escrever a alguém a quem nunca tivesse visto, alguém que vivesse, se existe, em lugar desconhecido. (...) E se é verdade que beijou essa pessoa que hoje não lhe parece ter alguma vez visto, a memória que ainda conserva do beijo vai-se apagando por trás da espessura dos dias.[14] 

Marcenda é pintada como um fantasma, como uma aparição e não como uma pessoa de carne e osso. Como já foi dito, temos a impressão de que Ricardo Reis nunca encontrou verdadeiramente a rapariga doente. “Marcenda não é nada”.[15] A jovem não mora nem neste tempo nem neste espaço. Se mora em algum lugar, isso não pode estar senão além e acaba por chegar uma carta do “além”. Nela lemos: “a cidade, donde esta carta verdadeiramente vem, chama-se Marcenda”[16]. Ela é um mundo à parte e a sua “cidade” é ligeiramente parecida com Lisboa na obra estudada, onde “os pombos se recolhiam aos altos ramos dos olmos, em silêncio, como fantasmas”[17]. Não somente as pessoas, melhor dito, as personagens do livro, mas também o resto da natureza, tudo parece fantasmagórico. Para a criação desta atmosfera etérea contribui a cor das cartas de Marcenda que é “a conhecida cor de violeta exangue”[18]. Exangue quer dizer sem forças, débil, sem sangue, o que pode referir-se a Marcenda, e violeta simbolicamente significa a passagem da vida para a morte, a involução. Tudo isso ajuda a compor a sua imagem. Na viagem a Fátima, Ricardo Reis, quando adormece, imagina Marcenda como sendo, não uma mulher terrestre, mas com características semelhantes à Virgem, embora seja ele, na sua imaginação, que consegue curá-la, que faz um milagre.  

(...) passou a imagem da Virgem Nossa Senhora e não se deu o milagre, nem admira, mulher de pouca fé, então Ricardo Reis aproxima-se, Marcenda levantara-se, resignada, é então que ele lhe toca no seio com os dedos médio e indicador, juntos, do lado do coração, não foi preciso mais, Milagre, milagre (...), e Marcenda, (...), acena com os dois braços levantados e desaparece (...)[19] 

Há aqui um paralelismo imaginário entre Reis e a Virgem, ambos seres de índole transcendente.                                                

Marcenda parece-se com as musas das Odes do heterónimo Ricardo Reis, das Neera, Cloe e Lídia. Ricardo Reis personagem reflecte sobre elas desta maneira: “não são mulheres verdadeiras, mas abstracções líricas”[20]. Marcenda também podia ser abstracção lírica de Ricardo Reis, a personagem que é de igual modo sombra/fantasma de uma abstracção literária de Fernando Pessoa.

Marcenda 

encerra-se num livro modelar de odes arcádicas sem que nunca dele tivesse feito parte, ao lado das Cloe e das Neera, ocupando, talvez, o espaço de uma certa Lídia que dessas teias escapou.[21] 

Nesta constatação Teresa Cristina Cerdeira afirma que Marcenda ocupou o espaço da Lídia das odes, e, se continuarmos neste sentido, podemos dizer que a Lídia deste romance escapou das Odes, dum contexto irreal, para a vida real, banal talvez mas palpável e verdadeira.  

 
Lídia – ligação com o mundo e a vida

 
 “Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor”[22], foi assim o primeiro encontro de Lídia – criada e pessoa verdadeira, de carne e osso, e Ricardo Reis, que se alojou no hotel Bragança em Lisboa. “Ele poeta, ela por acaso Lídia (...)”.[23] 

Lídia, diz, e sorri. Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanhados no passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira, como estando, Tal seja, Lídia, o quadro, Não desejemos, Lídia, nesta hora, Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio, Lídia, a vida mais vil antes que a morte (...)[24]

O que acabamos de ler refere-se a Lídia, a musa etérea das odes. A Lídia que Ricardo Reis encontra não se parece em nada com aquela que vem cantada ao lado de Neera e Cloe. Lídia é uma mulher do povo que vive a vida como pode e como sente. A criada de hotel está viva, mesmo que pareça em momentos banal, o que a torna ainda mais autêntica, real e verdadeira, diferenciando-se assim das restantes personagens do romance. A personagem é a única que não tem nada de fantasma. 

Reentraria no livro, não fosse o desacordo evidente entre a musa das odes e a mulher do povo que o olha e que em breve se deitaria com ele, fugindo por completo ao arquetípo que ele próprio inventara.[25] 

Lídia foge da poesia, do etéreo, do irreal, e vai em direcção ao quotidiano, ao palpável, ao real, à vida.

Fernando Pessoa, num dos seus encontros com Ricardo Reis, troça dele comparando a Lídia real com a das odes.  

Ah, ah, afinal a tão falada justiça poética sempre existe, tem graça a situação, tanto você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve mais sorte que o Camões, esse, para ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não passou, Veio o nome de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato, você sabe lá que mulher seria a Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenómeno, essa impossível soma de passividade, silêncio sábio e puro espírito.[26]

Fica-lhe somente o nome, Lídia, e esse nome, como no caso de Marcenda, leva-o a um lugar ainda desconhecido. Lídia “frustra todas as suas expectativas”[27], a personagem não tem nada a ver com a homónima que Reis cantava e imaginava nos seus poemas. A personagem é “só” uma arrumadeira de quartos de hotel, de outra classe social, não “pode” ser amada por alguém como ele, ele nem admite a possibilidade de poder apaixonar-se por ela ou amá-la porque é só uma criada. Não é aquilo que ele esperava. Não é passiva, não guarda o silêncio sábio, antes pergunta e quer conversar sobre diferentes temas, sobretudo os da actualidade; é conhecedora daquilo que se está a passar. Ao contrário da figura poética, a criada de hotel não crê no amor platónico e vive o amor que sente por Reis, oferecendo-se ao deleite corporal. Lídia é a vida, a ligação de Reis à vida, é por ela e através dela que ele se vê unido ao mundo, ela abre-lhe o caminho para a sua independência. 

Com ela, tal como Teseu pelas mãos de Ariadne, poderia passar da alienação à participação, de heterónimo a personagem, de persona a pessoa, da ode ao romance, da morte à vida. [28] 

Lídia é o fio que fixa Ricardo Reis à vida quotidiana. Esta personagem, ao longo do romance, torna-se cada vez mais independente e substantiva. Lídia, como muito bem sabe Ricardo Reis, tem uma voz e um corpo, ao contrário de Marcenda. 

(...) colocou uma das mãos sobre a mão de Lídia, fechou os olhos, se não for mais que estas duas lágrimas poderei retê-las assim, como retinha aquela mão castigada de trabalhos, áspera, quase bruta, tão diferente das mãos de Cloe, Neera e a outra Lídia, dos afuselados dedos, das cuidadas unhas, das macias palmas de Marcenda (...)[29] 

Lídia tem de percorrer o caminho da musa de papel de Ricardo Reis para uma pessoa real, quando o poeta quer o contrário, ou seja, trazê-la da realidade para a poesia. Ela é vida.  

Deita-se com Reis e protege-o, é materna e submissa; no hotel e na casa nova serve, criada que é, mas é servida também no gozo e na paixão, na liberdade que se dá de amar, de ter ciúmes da musa Marcenda que entre os dois se interpõe, mas sobretudo de ter um filho e de assumi-lo sozinha como consequência de um acto só seu. Não sonha com igualdade, casamento ou família porque são outros os seus valores. Contenta-se com o prazer conquistado dia a dia, misturado ao serviço que desempenha de criada/mulher.[30] 

Lídia é feliz com aquilo que tem, contenta-se com aquilo que exige da vida. Não pretende conquistar o amor de Ricardo Reis, nem casar com ele, e chega a dizer-lhe que não deve perfilhar o filho de ambos se não quer. Lídia limita-se ao que pensa ter direito e é, ainda assim, uma mulher muito corajosa dentro dos limites sociais de então. 

Lídia sente-se feliz, mulher que com tanto gosto se deita não tem ouvidos, que as vozes maldigam sobre os saguões e quintais, a ela não lhe podem tocar, nem os maus-olhados, quando na escada encontra as vizinhas virtuosas e hipócritas.[31] 

Lídia despreza as más-línguas e aceita o que lhe é dado, não se deixando tolher pelas opiniões dos outros. “São os acasos da vida, É o destino, Acreditas no destino, Não há nada mais certo que o destino, A morte ainda é mais certa, A morte também faz parte do destino”[32], eis um dialogo bem intrigante entre Lídia e Ricardo Reis.

“Lídia tem essa lucidez benfazeja que diz sempre mais do que se espera dela, que está sempre um passo além do limite comum da sua classe, da sua instrução.”[33] A personagem, nas suas conversas com Ricardo Reis, passa de um tema corriqueiro para um assunto profundo com facilidade.   

(...) singular rapariga esta Lídia, diz as coisas mais simples e parece que as diz como se apenas mostrasse a pele doutras palavras profundas que não pode ou não quer pronunciar (...)[34] 

É isto que pensa Ricardo Reis depois de uma das conversas com Lídia que o surpreende, porque não presta muita atenção às suas palavras e actos. O protagonista vive noutro mundo, um mundo, como já foi dito, que é mais parecido com o mundo de Marcenda. Lídia é uma pessoa muito mais equilibrada e humana do que os outros dois. Ela sabe enfrentar o mundo e a vida e não tem medo disso. “Sem dúvida, Lídia tem a seu favor a voz do narrador que se expõe sempre no intuito de favorecer – ao menos no nível do desejo – os oprimidos.”[35] Isso também se nota ao ler o romance. Esta mulher é lutadora no seu dia-a-dia, assume as responsabilidades e as consequências dos seus actos. Lídia surpreende com a sua atitude quando conta a Ricardo Reis que está grávida.  

Vou deixar vir o menino. (...) Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força, por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar o menino, não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade.[36]

Ao filho ainda esperam tempos difíceis porque nascerá em 1937 e quando crescer haverá uma guerra em que, em princípio, terá de participar. O menino anuncia o futuro da nação portuguesa nos anos violentos dos meados do século XX. A guerra colonial começa em 1961, quando o filho de Lídia terá 24 anos, a idade apropriada para ser enviado a essa guerra. Quem sabe qual será o seu destino. O filho de Lídia é como um futuro mártir e a sua mãe “abençoada seja Lídia entre as mulheres”[37], citação bíblica que eleva a criada de hotel à altura da mãe de Deus. De repente, Lídia não é só uma criada qualquer, insignificante e sem importância. Ela torna-se símbolo da mulher e da mãe portuguesas e o seu filho, o símbolo dos filhos portugueses, dos jovens portugueses e, por conseguinte, do futuro da nação. Como lemos no romance, a frase provavelmente dita por um arcebispo de Mitilene, que é um dos coadjutores do patriarca de Lisboa, “Portugal é Cristo e Cristo é Portugal”[38], é um exagero, pois, quando Ricardo Reis a disse a Fernando Pessoa, este largou a rir, mas faz sentido se tivermos em conta o filho de Lídia e da História que está por vir, porque ele é o menino, qual Cristo, que representa Portugal, a juventude portuguesa e o seu futuro. 

Lembra-se de que Lídia está grávida, de um menino, (...), e esse menino crescerá e irá para as guerras que se preparam, repito, há sempre um depois para a guerra seguinte, façamos as contas, virá ao mundo lá para Março do ano que vem, se lhe pusermos a idade aproximada em que à guerra se vai, vinte e três, vinte e quatro anos, que guerra teremos nós em mil novecentos e sessenta e um, e onde, e porquê, em que abandonados plainos, com os olhos da imaginação, mas não sua, vê-o Ricardo Reis, de balas trespassado, moreno e pálido como é seu pai, menino só de sua mãe porque o mesmo pai não o perfilhará.[39]  

Essas são as palavras do narrador que sabe do destino do filho da Lídia, ao contrário dela que o ignora. Lídia é a única deste romance que vive o e no presente. A personagem chora unicamente pelo destino actual do irmão, pela Badajoz invadida por causa da situação política em que se encontra Espanha nesse momento, contudo, o que ela chora na última parte da obra estudada é o seu próprio destino – ela é uma mulher de outra classe diferente da do “senhor doutor” e por isso menosprezada, a sentir-se menos, a sentir-se nada! Por isso ainda não é tão amada ou nem é amada, como devesse ser como mulher, sem ter em consideração a classe social a que pertence.  

Lídia já não chora, diz, Foram mortos dois mil, e tem os olhos secos, mas os lábios tremem-lhe, as maçãs do rosto são labaredas. Ricardo Reis vai para consolá-la, segurar-lhe o braço, foi esse o seu primeiro gesto, lembram-se, mas ela furta-se, não o faz por rancor, apenas porque hoje não poderia suportá-lo. Depois, na cozinha, enquanto lava a louça suja aculumada, desatam-se-lhe lágrimas, pela primeira vez pergunta a si mesma o que vem fazer a esta casa, ser a criada do senhor doutor, a mulher-a-dias, nem sequer a amante porque há igualdade nesta palavra, amante, amante, tanto faz macho como fêmea, e eles não são iguais, e então já não sabe se chora pelos mortos de Badajoz, se por esta morte sua que é sentir-se nada.[40] 

Lídia, finalmente, admite que sofre pela divisão das classes e que o seu amor seria diferente se ela não pertencesse a uma classe social mais baixa. “Reconhece-se dividida e sabe que deve optar. Entre a sua verdade individual e a verdade do seu tempo, sente-se visceralmente unida e feitora deste último.”[41] Lídia é uma mulher que vive o presente e que opta pela vida. Mesmo reconhecendo que a sua situação é desfavorável, ela opta pela vida e, no final, não segue Ricardo Reis ao cemitério, à morte.  

Seguisse Ricardo Reis, que optara pelos “Prazeres”, e ei-la, talvez, de volta ao livro, à placidez dos campos, enfeitiçada, musa, a Lídia cantada. Segue, no entanto, Daniel, despede-se de Reis e deixa branca a página de um livro em que se não quis inscrever, para preencher um outro que lhe abrira a possibilidade de fazer-se sem ser feita, de escolher como sujeito e, não de ser escolhida como objecto. Sabe que o irmão, e com ele o sonho da revolta, está acabado, mas fica porque “a terra espera” e Daniel é a vítima fecunda de um espectáculo que tem que continuar.[42]  

Se Lídia seguisse Ricardo Reis até à morte poderia voltar às odes, deixar a vida e ganhar a forma de uma musa, de um objecto incorpóreo, de um fantasma, cantada, mas insubstancial, impessoal, só um nome cantado por um poeta, ele também um fantasma, já que não conseguiu existir como pessoa humana. Ela opta pelo caminho mais difícil, mais exigente, que é o da vida normal, quotidiana, com todas as suas amarguras e os seus desafios, obstáculos e preocupações. Contudo, Lídia fá-lo-á sozinha, será ela que escreverá as páginas do livro da sua vida e não outras pessoas. Será ela a autora do seu próprio destino. O seu irmão é vítima daquela situação histórica, mas está entre aqueles que se revoltaram. Não fica sozinho nessa luta. A sua morte é fecunda, a terra espera por outros que continuarão o seu percurso e que assegurarão um futuro melhor às gerações por vir.  

É nesse impasse entre o mar e a terra, entre o passado e o presente, entre a utopia ou o sonho ou a irrealidade ou o mito e a História, que o romance se finda. Fernando Pessoa tem o seu tempo encerrado e já não vagueia pelo mundo. Será para sempre uma voz lida pelos outros e que se não pode mais transformar. Ricardo Reis percebe também a sua própria encruzilhada: com Lídia mergulharia no mundo, no tempo e na História, mas sofre a sua própria incapacidade de segui-la.[43] 

“O mar se acabou”[44], Ricardo Reis já não regressa ao Brasil, nem à vida. Ricardo Reis perdeu a oportunidade de ser alguém no presente e entre nós. Lídia era a sua ligação com o mundo, com a vida real, mas Reis não soube aproveitar essa oportunidade, não teve bastante força para ficar e ser uma pessoa independente, esse sonho continuou um sonho, uma utopia. A irrealidade e o ambiente tão fantasmagórico são mais fortes e mais presentes nesta obra do que aquilo que existe. Todos, à excepção de Lídia, são mais parecidos com os fantasmas do que com pessoas de carne e osso. É precisamente Lídia que, ao parecer sozinha naquela sua dura vida quotidiana, carrega as esperanças de vida melhor no país. É ela que, ao estar grávida, leva em si a esperança de um futuro melhor, é ela a fecundidade e o futuro. A criada de hotel lembra as duas mulheres grávidas que desencadeiam uma verdadeira “epidemia” da gravidez no romance de José Saramago Jangada de pedra e que têm o mesmo significado, a mesma simbologia. A História é só o narrador que a conhece, as personagens do livro não. O narrador está do lado dela e tem confiança nas pessoas lutadoras e simples, porque são elas, não os fantasmas, que constroem o país, a humanidade. Os mortos não podem construir o mundo de hoje, o país actual. Saramago aposta nos “vivos” que, como Lídia, levam o futuro em si."



Barbara Juršič, Eslovénia

  BIBLIOGRAFIA
 
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BASTOS, Baptista, Saramago: Aproximação a um retrato, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996.

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[1] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 344

[2] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 183

[3] Idem, p. 183

[4] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 98

[5] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 287

[6] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 184

[7] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 407

[8] Idem, p. 102

[9] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 184

[10] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 123

[11] Idem, p. 125

[12] Idem, p. 176

[13] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 284

[14] Idem, p. 251

[15] Idem, p. 325

[16] Idem, p. 258

[17] Idem, p. 284

[18] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 287

[19] Idem, p. 300

[20] Idem, p. 289

[21] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 184

[22] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 45

[23] Idem, p. 104

[24] Idem, p. 46

[25] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 185

[26] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 114

[27] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 185

[28] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 186

[29] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 164

[30] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 186

[31] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 295

[32] Idem, p. 296

[33] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 187

[34] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 296

[35] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 188

[36] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, pp. 347, 348

[37] Idem, p. 349

[38] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 273

[39] Idem, p. 382

[40] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 383

[41] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 189

[42] Idem, p. 189

[43] Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 190

[44] José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, 11a edição, 1995, p. 407
 
Biografia
"Barbara Jursic 20 de Junho de 1971, Liubliana, Eslovénia)
É mestre em Literatura portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tradutora literária (traduziu Saramago, Lobo Antunes, Pessoa, Sá-Carneiro, Couto, M. Tavares, Sophia, Nuno Júdice, e outros), escreve artigos para revistas e jornais eslovenos e portugueses sobre autores lusófonos e eslovenos, cultura eslovena e portuguesa, temas actuais, faz programas para a Rádio e TV nacional, escreve textos críticos e prefácios para obras literárias, é intérprete (esloveno, português, francês e espanhol) e vice-presidente e responsável pelas relações internacionais da Associação eslovena de tradutores literários, membro do Comité organizativo para Liubliana, capital do livro mundial (2010-11), em 2005 foi condecorada com o 
Prémio Nacional de Melhor Tradutor Jovem.
E-mail: ajsi.disi@gmail.com, barbara.jursic@gov.si "