Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 16 de julho de 2017

"A importância de dizer não, segundo José Saramago" de Maria João Caetano (DN 05/07/2017)

Recuperação da notícia da estreia da peça de teatro baseada na obra de José Saramago, via DN por Maria João Caetano (05/07/2017) aqui
em http://www.dn.pt/artes/interior/a-importancia-de-dizer-nao-segundo-jose-saramago-8612698.html

"Quatro companhias portuguesas juntaram-se para adaptar "História do Cerco de Lisboa", do Nobel. Espetáculo estreia hoje no Teatro Municipal Joaquim Benite, no Festival de Almada.

Raimundo Silva, revisor numa editora, solteiro, de 50 anos, é um homem apagado, daqueles funcionários que cumpre as suas tarefas sem dar muito nas vistas. Porém, ao ler uma obra intitulada História do Cerco de Lisboa, ele tem vontade de fazer uma alteração: introduzir um "não". Essa simples palavra iria implicar uma enorme mudança na história pois significaria que os Cruzados não teriam ajudado Afonso Henriques a conquistar Lisboa aos mouros, em 1147. Descoberto, Silva mete-se em apuros na editora. No processo, o revisor apaixona-se pela sua supervisora, Maria Sara, ao mesmo tempo que pensa como há de recontar a história do cerco num novo livro. A conquista amorosa desenrola-se a par da conquista dos portugueses aos mouros."

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

"Esta é, em traços largos, a História do Cerco de Lisboa, contada por José Saramago no livro de 1989, e que a dupla espanhola José Gabriel Antuñano (dramaturgia) e Ignacio García (encenação) transformou em espetáculo numa megaprodução de quatro companhias de teatro: ACTA - A Companhia de Teatro do Algarve, Companhia de Teatro de Almada, Companhia de Teatro de Braga e Teatro dos Aloés.

No palco, além das personagens da história, está também o próprio José Saramago, o narrador que no romance se revela em alguns momentos mas que aqui tem protagonismo: não só lhe ouvimos a voz inconfundível (são excertos de entrevistas) como ganha um corpo e uma presença constante com o ator Jorge Silva. "Interessou-me muito a sobreposição de planos - e esta é uma característica de muitos dos romances de Saramago", explica Ignacio García. "É como um conjuntos de matrioskas, as bonecas russas: Saramago escreve um romance sobre duas personagens, das quais uma é um romancista que está a escrever um livro e que tem as suas próprias personagens, Há um jogo de reflexos, histórias que se desenrolam em paralelo, em diferentes níveis, e que tanto no livro como no espetáculo vão lutando para captar a atenção do leitor/ espectador."

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

 Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

Nuno Pinto Fernandes / GLOBAL IMAGEBS

"José Saramago é uma personagem que fala com todas as personagens, de todos os planos, e também fala com o público", explica José Gabriel Antuñano, responsável pela adaptação da obra do escritor português. E vai mais longe na interpretação: "As personagens não pertencem a um único mundo, pois estão todas na cabeça dos escritores (Saramago e Silva). Por um lado, são criadas pelo escritor, por outro, também influenciam o autor, esse jogo acontece aqui permanentemente."

Quem está na plateia tem oportunidade ver todos os planos. No cenário povoado por livros, imaginado por José Pedro Castanheira, o palco fica aberto, mostrando a teia de iluminação e os chariots, nas laterais, onde estão pendurados os figurinos, vemos os atores entrar e sair de cena, trocar de roupa, fazer a maquilhagem, beber água quando precisam de beber água e até comentarem as cenas. "Todas as decisões do espetáculo tentam ser fiéis a Saramago", justifica o encenador. "Ele incluiu-se a si mesmo no romance e nós incluímo-lo no espetáculo. Saramago brinca com o que significa escrever um romance e nós, aqui, fazemos piadas sobre o teatro e a representação. O público vê os atores a fazerem personagens, vê o truque, a mentira." E explica: "Há uma frase de Saramago de que gosto muito: 'o passado é o reino dos fragmentos'. Isto inspirou-me muito. Numa mentira muito grande vemos fragmentos de verdade, é o que se passa neste espetáculo."

Que todo este jogo meta literário não nos desvie daquilo que Saramago queria dizer com o seu livro, sublinha o encenador: "Há que ler de uma maneira crítica e dialética, não se pode acreditar em tudo o que se lê. Num momento como este em que vivemos em que estamos todos acostumados a acreditar em tudo o que vemos - na televisão, no twitter... - Saramago propõe uma atitude crítica, ler sim mas ter uma opinião e ser capaz de dizer que não àquilo que não está certo ou que não é aceitável." A importância de dizer não - às injustiças, às ditaduras, às mentiras - é reforçada à medida que nos aproximamos do final do espetáculo. José Gabriel Antuñano sublinha essa ideia "de que um simples não pode mudar tudo".

E faz mais uma interpretação: "Este é também um livro sobre a condição do ser humano; como uma pessoa triste, como é o revisor (e como era Saramago) quando decide ter um ato de rebeldia transforma-se numa pessoa criativa e feliz, que sai de si mesmo e que encontra o amor, essa é a história de Silva mas também é a história de saramago com Pilar." José Saramago e Pilar casaram-se em 1988, na altura em que ele estaria a escrever História do Cerco de Lisboa.

O espetáculo estreia no Festival de Almada mas regressará, em setembro, com uma carreira longa que irá passar pelos vários teatros envolvidos, num esforço que Rodrigo Francisco, diretor do festival, vê como "um verdadeiro serviço público". No palco, juntam-se Elsa Valentim, Jorge Silva e José Peixoto (Aloés), Rui Madeira (Braga), Luís Vicente e Tânia Silva (ACTA), João Farraia, Pedro Walter (Almada) e ainda Ana Bustorff."

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