Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 10 de abril de 2016

Juan José Tamayo "Saramago: Deus, Silêncio do Universo" - Revista Blimunda (edição #1)

Artigo de Juan José Tamayo - "Saramago: Deus, Silêncio do Universo", publicado na edição #1 da revista "Blimunda", aqui
em https://pt.scribd.com/doc/120464475/Blimunda-N-º-1-junho-2012

Durante os últimos cinco anos da vida de José Saramago tive o privilégio de usufruir da sua amizade, de partilhar experiências de fé e de não-crença, de solidariedade e de trabalho intelectual, em total sintonia. No momento de refletir sobre a sua personalidade, a primeira imagem que espontaneamente me vem à memória é a parábola que na tradição bíblica conhecemos como “O bom Samaritano”, que o evangelho de Lucas narra deste jeito:

“Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu em poder dos salteadores, que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote, que, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o encheu-se de piedade. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho,colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: “Trata bem dele e o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar”. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?” O doutor da Lei que lhe tinha feito a pergunta respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele.“Jesus retorquiu: “Vai e faz tu também do mesmo modo”. (Lc, 10, 29-37)


Esta parábola é, sem dúvida, uma das mais severas críticas à religião oficial, cheia de leguleio e insensível ao sofrimento humano; uma das denúncias mais radicais contra a casta sacerdotal e clerical, dependente do culto e alheia ao grito das vítimas, e um dos mais belos cantos à ética da solidariedade, da compaixão, da proximidade, da alteridade, da fraternidade-sororidade. Uma ética laica, por fim, não mediada por qualquer motivação religiosa. O sacerdote e o levita, funcionários de Deus, passam ao largo, pior ainda, dão uma volta maior para não auxiliar a pessoa maltratada. O samaritano, que estava fora da religião oficial e era considerado herege pelos judeus, aparece, aos olhos de Jesus e do próprio doutor da Lei, como exemplo a imitar por ter tido entranhas de misericórdia. Pelo seu comportamento humanitário, o herege converte-se em sacramento do próximo; pela sua atitude impiedosa, o sacerdote e o levita tornam-se anti sacramento de Deus; é a religião do avesso ou, se se preferir, a verdadeira religião, a que consiste em defender os direitos das vítimas, em caminhar pelo trilho da justiça e seguir a direção da compaixão. Assim entenderam a religião os profetas de Israel, os fundadores e reformadores das religiões.

O “fator Deus”

Saramago sempre se declarou ateu, e no seu ateísmo foi um crítico impenitente das religiões, dos seus atropelos, das suas falsidades, sobretudo das guerras e cruzadas convocadas, legitimadas e santificadas por elas em nome de Deus… Já se disse que as religiões, todas elas, sem exceção… foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de matanças de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana”. Com a história na mão, quem vai negar tamanha verdade?

Mas a crítica de Saramago vai mais além e chega ao coração das religiões, a Deus mesmo, em cujo nome, afirma, “se permitiu e justificou tudo, principalmente o pior, o mais horrendo e cruel”. E dá como exemplo a Inquisição, que compara com os talibãs de hoje, qualifica como "organização terrorista” e acusa de interpretar perversamente os seus próprios textos sagrados nos quais dizia acreditar, até fazer um casamento monstruoso entre a Religião e o Estado “contra a liberdade de consciência e o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que é só isso o que a palavra heresia significa”. Esta denúncia de Deus situa-se dentro das mais importantes e incisivas críticas da religião de ontem, como a de Epicuro e Demócrito, a de Jesus de Nazaré e a do cristianismo primitivo, como a dos mestres da suspeita, e de hoje, como a dos cientistas.

Mas, mesmo quando pensa que os deuses só existem no cérebro humano, o prémio Nobel português preocupa-se com os efeitos do “fator Deus” – título de um dos seus mais célebres e celebrados artigos-, que está presente na vida dos seres humanos, crentes ou não,como se fosse dono e senhor dela, se exibe nas notas de dólar, intoxicou o pensamento e abriu as portas às mais sórdidas intolerâncias. O "Fator Deus” em que se converteu o Deus islâmico nos atentados contra as Torres Gémeas ao grito de “Morte aos infiéis!” de Osama Bin Laden. 


Juntamente com a crítica da religião, de Deus e do “fator Deus”,cabe destacar o sentido solidário da vida que caracterizou Saramago. A partir da filantropia e sem qualquer apoio religioso, foi o defensor das causas perdidas, algumas das quais foram ganhas graças ao seu apoio. Cito apenas três, de entre as mais emblemáticas. Uma era a solidariedade para com o povo palestiniano perante o massacre de que foi objeto entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009 por parte do exército israelita que causou 1400 mortos e que o Nobel português qualificou como genocídio. A segunda, o acompanhamento e apoio à dirigente sarauí Aminatu Haidar durante a sua greve de fome no aeroporto de Lanzarote. A terceira, ter destinado os direitos de autor do seu último romance às vítimas do terramoto do Haiti.

Quando relia Caim, vieram-me à memória as palavras de Epicuro:“Vã é a palavra do filósofo que não seja capaz de aliviar o sofrimento humano”. No caso de Saramago, as suas palavras e os seus textos não foram vãos. Foram carregados de solidariedade e de compromisso para com as pessoas mais vulneráveis. Por isso me atrevo a chamar-lhe respeitosamente “bom samaritano”.

“Deus é o silêncio do universo”

“Deus é o silêncio do universo e o ser humano o grito que dá senti-do a esse silêncio”. Esta definição que Saramago dava de Deus é uma das mais belas que alguma vez li ou ouvi. Li-a nos seus Cadernos de Lanzarote, de 1993, e dei-a a conhecer por onde quer que eu falasse de Deus. O próprio Saramago o recorda em O Caderno: “Há muitos anos, nada menos que em 1993, escrevi nos Cadernos de Lanzarote umas quantas palavras que fizeram as delícias de alguns teólogos desta parte da Península, especialmente Juan José Tamayo, que desde então, generosamente me deu a sua amizade. Foram estas: “Deus é o silêncio do universo e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio”. Reconheça-se que a ideia não está mal formulada, com o seu quantum satis de poesia, a sua intenção levemente provocadora e o subentendido de que os ateus são muito capazes de se aventurar pelos escabrosos caminhos da teologia, ainda que seja elementar” (Alfaguara, Madrid, 2009, pp. 152-153).

Esta definição merecia figurar entre as vinte e quatro definições – vinte e cinco, com ela – de outros tantos sábios reunidos num Simpósio que o Libro de los 24 filósofos (Siruela, Madrid, 2000) reco-lhe, e cujo conteúdo foi objeto de um amplo debate entre filósofos e teólogos durante a Idade Média. Para um teólogo heterodoxo como eu, seguidor das místicas e dos místicos judeus, cristãos, muçulmanos como o Pseudo-Dionísio, Rabia de Bagdad, Abraham Abufalia, Algazel, Ibn al Arabi, Rumi, Hadewijch de Antuérpia, Margarita Porete, Hildegard von Bingen, Mestre Eckhardt, Juliana de Norwich, João da Cruz, Teresa de Jesus, Baal Shem Tov) cristãos laicos como Dag Hammarksjlöd, hindus como Tukaram e MohandasK. Gandhi e não crentes como Simone Weil, é mais que suficiente. Dizer mais seria uma falta de respeito para com Deus, acredite-se ou não na sua existência. “Se compreenderes – dizia Agostinho de Hipona – não é Deus”.

Permitam-me contextualizar a definição tal como a vivi há pouco mais de um lustro. Caminhávamos pelas ruas de Sevilha no dia 11 de Janeiro de 2006, o escritor e prémio Nobel José Saramago, a sua esposa, a jornalista Pilar del Río, hoje entre nós, a pintora Sofía Gandarias e eu em direção ao Paraninfo da Universidade Hispalense para participar num Simpósio sobre Diálogo de Civilizações e Modernidade. Às 9 da manhã, ao passar pela plaza de la Giralda, os sinos da catedral de Sevilha – antes mesquita, mandada construir pelo califa almóada Abu Yacub Yusuf - começaram a repicar louca-mente. “Os sinos tocam porque passa um teólogo”, disse Saramago com o seu habitual sentido de humor. – “Não – respondi-lhe no mesmo tom – os sinos repicam porque um ateu está prestes a converter-se ao cristianismo”. Nesse diálogo fugaz, a resposta do romancista português não se fez esperar: “Isso nunca. Fui ateu toda a minha vida e continuarei a sê-lo no futuro”. Veio-me à mente de imediato uma poética definição de Deus que lhe citei sem hesitação:“Deus é o silêncio do universo e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio”. “Essa definição é minha”, reagiu sem demora o Prémio Nobel. “Efetivamente, por isso é que a citei – respondi-lhe. E essa definição está mais perto de um místico que de um ateu”.A minha observação impressionou-o. Nunca ninguém lhe tinha dito nada parecido e deu-lhe que pensar, sem que por isso se tivesse deixado levar pela minha ocorrência. Era um homem de convicções profundas.

Em luta titânica com Deus

Saramago partilhou com Nietzsche a parábola de Zaratustra e o apólogo do Louco sobre a morte de Deus e talvez pudesse assinar por baixo de duas das afirmações mais provocadoras: “Deus é a nossa mais longa mentira” e “o melhor é nenhum deus, o melhor é cada um construir o seu destino”. Talvez tivesse a mesma opinião que Ernst Bloch em que “o melhor da religião é ela criar hereges” e que“só um bom ateu pode ser um bom cristão, só um bom cristão pode ser um bom ateu”. A sua vida e a sua obra foram uma luta titânica com Deus num braço de ferro.

No seu romance Caim, Saramago recria a imagem violenta e sanguinária do Deus da Bíblia judaica, “um dos livros mais cheios de sangue da literatura mundial”, no dizer de Norbert Lo-hfink, um dos mais prestigiados biblistas do século XX. Imagem que continua nalguns textos da Bíblia cristã, onde Cristo é apresentado como vítima propiciatória para reconciliar a humanidade com Deus e que se repete no teólogo medieval Anselmo de Cantuária, que apresenta Deus como dono de vidas e bens e como um senhor feudal, que trata os seus adoradores como se se tratasse de servos da gleba e exige o sacrifício do seu filho mais querido, Jesus Cristo, para reparar a ofensa infinita que a humanidade cometeu contra Deus”.

O Deus assassino de Caim continua presente em muitos dos rituais bélicos do nosso tempo: nos atentados terroristas cometidos por falsos crentes muçulmanos que em nome de Deus praticam a guerra santa contra os infiéis; nos dirigentes políticos auto qualificados como cristãos, que apelam a Deus para justificar o derramamento de sangue de inocentes em operações que têm o nome de Justiça Infinita ou Liberdade Duradoura; em políticos israelitas que, julgando-se o povo escolhido de Deus e únicos proprietários da terra que qualificam como “prometida”, levam a cabo operações de destruição em massa de territórios, erguem muros carcerários e perpetuam assassínios, calculados impunemente, de milhares de palestinianos.

Depois destas operações, Saramago não podia senão estar de acordo com o testemunho do filósofo judeu Martin Buber: “Deus é a palavra mais vilipendiada de todas as palavras humanas. Nenhuma tem sido tão manchada, tão mutilada… As gerações humanas fizeram cair sobre esta palavra o peso da sua vida angustiada, e oprimiram-na contra o chão. Jaz no pó e suporta o peso de todas elas. As gerações humanas, com os seus partidarismos religiosos, dilaceraram esta palavra. Mataram e deixaram-se matar por ela. Esta palavra tem as suas impressões digitais e o seu sangue… Os homens desenham um boneco qualquer e escrevem por baixo a palavra “Deus”. Assassinam-se uns aos outros e dizem: “fazemo-lo em nome de Deus”… Devemos respeitar os que proíbem esta palavra, porque se revoltam contra a injustiça e os excessos que com tanta facilidades e cometem com uma suposta autorização de “Deus”. Eu também ponho a minha rubrica por baixo desta afirmação de Buber. Por isso muito raramente ouso pronunciar o nome de Deus.

A luta contra os fundamentalismos, os religiosos e os políticos, é o melhor antídoto contra o Deus violento e contra a violência em nome de Deus. Saramago esteve comprometido nessa luta não violenta de pensamento, palavra e obra.

Efetivamente, a vida e a obra de Saramago foram uma permanente luta titânica com-contra Deus. Como fora a do Job bíblico – “o Prometeu hebraico”, para Bloch -, que maldiz o dia em que nasceu, sente nojo da sua vida e ousa perguntar a Deus, em tom desafiante, porque é que o ataca tão violentamente, porque é que o oprime de maneira tão desumana e porque é que o destrói sem piedade (Job,10). Ou como o patriarca Jacob, que passou uma noite inteira num braço de ferro com Deus e acabou com o nervo ciático ferido (Génesis 32, 23-33). Não é o caso de Saramago, que saiu incólume das brigas com Deus e nunca se deu por vencido e que aos seus 87 anos continuou, em Caim, a perguntar-se e a perguntar aos teólogos e crentes que diabo de Deus é este que, para enaltecer Abel, tem de desprezar Caim.

Familiarizado com a Bíblia, a judaica e a cristã, recria com humor, um humor iconoclasta do divino e desestabilizador do humano, algumas das suas figuras mais emblemáticas e desmente as histórias com que, segundo León Felipe, “embalaram o berço do homem” (sic). Fê-lo em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, romance que apresenta Jesus de Nazaré como um homem que vive, ama e morre como qualquer outra pessoa e a quem Deus escolhe como elo de um imenso movimento estratégico e como vítima de um poder que o ultrapassa e acerca do qual nada pode fazer.

Voltou a fazê-lo no romance já citado, Caim, onde recria literária e teologicamente o mito bíblico, que vai buscar as suas imagens e símbolos às tradições mais antigas sobre as origens da humanidade. A Bíblia apresenta Caim como o assassino do seu irmão Abel, impelido pela inveja, e Deus, como “perdoa-vidas”. Saramago inverte os papéis do bom e do mau, do assassino e do juiz. Responsabiliza deus, o senhor (sempre com minúscula) pela morte de Abel e acusa-o de ser rancoroso, arbitrário e enlouquecedor das pessoas. Caim mata o seu irmão não arbitrariamente, mas sim em legítima defesa, porque deus o tinha preterido em seu favor. E mata-o porque não pode matar deus. Partilhe-se ou não da leitura que Saramago faz da Bíblia judaica, creio que temos de estar de acordo com ele em que “a história dos homens é a história dos seus desencontros com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”. Excelente lição de contra-teologia em tempos de fundamentalismos religiosos!

Qualquer que tenha sido a responsabilidade de Caim ou de Deus na morte de Abel, fica de pé a pergunta que hoje continua tão viva como então ou mais e que apela à responsabilidade da humanidade na atual desordem mundial, nas guerras e nas fomes que assolam o nosso planeta: “Onde está o teu irmão?” (Génesis 4, 9). E a resposta não pode ser um evasivo “Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?”, mas sim, continuando com a Bíblia, a parábola evangélica do Bom Samaritano, que demonstra compaixão para com uma pessoa maltratada, e que é religiosamente sua adversária. Excelente lição de ética solidária nestes tempos em que a ética está submetida ao assédio do mercado!

Juan José Tamayo
Diretor da Cátedra de Teologia e Ciências das Religiões
Universidade Carlos III de Madrid
Tradução de Artur Guerra


Revista Blimunda (#1) "De relance" Sobre a concepção da capa da edição norueguesa de Caim, por Marianne Zaitzow

O presente artigo, está publicado na edição #1 da revista "Blimunda" (páginas 26 e 27) e pode ser recuperado, para leitura, aqui

(Kain, edição norueguesa, editora Cappelen Damn)

"De relance"
"A capa de um livro pode assumir leituras muito diversas em função dos olhos que a observam. Se para o departamento de marketing de uma editora a capa é a embalagem que vai divulgar e, preferencialmente, vender o livro, para o leitor bibliófilo é a porta de entrada,bem ou mal sucedida, para um universo onde anseia perder-se. Para o livreiro é um elemento fundamental na arrumação do seu espaço de venda e para o técnico da gráfica pode ser uma dor de cabeça,caso as cores pedidas não se misturem da maneira exata. Inaugurando um espaço de conversa com designers responsáveis pelas capas dos livros de José Saramago, escolhemos a edição norueguesa de Caim (Kain), desenhada por Marianne Zaitzow para a editora Cappelen Damm. A ideia é trazer um pouco de luz ao processo complexo e nem sempre pacífico de criar, desenhar e fixar uma capa, conjugando as indicações do editor, as eventuais sugestões do autor, a linha gráfica de uma determinada coleção, a fidelidade ao conteúdo do livro e, muitas vezes, a necessidade de distinção entre os milhares de outras capas que povoam as livrarias. Numa troca de e-mails, Marianne Zaitzow falou à Blimunda sobre o seu processo de trabalho durante a conceção da capa de Kain. 

Sobre um fundo amarelo, pontuado, nos quatro cantos, por porme-nores que parecem indicar pequenos rasgões, como se a capa fosse um poster preso por pregos numa parede, uma mão de dedo em riste abala as letras que compõem o título do livro. A imagem é estilizada, construída através da técnica do stencil, e não precisa demais pormenores do que a forma e a cor, negro, para transmitir uma força pictórica que tem correspondência direta com o conteúdo do romance de Saramago. A mão de Deus, primeira e mais óbvia leitura desta capa, é igualmente a mão do autor, como explica Marianne Zaitzow: “A mão foi a minha primeira ideia para a imagem da capa. Normalmente, trabalho a ideia de uma capa durante muito tempo,até estar convencida de ter captado a essência do livro. Neste caso, a mão remete para Deus e para a história bíblica de Caim, mas é igualmente a mão do próprio Saramago, esmagando o nosso entendimento comum da Bíblia.” Portanto, quem não conhecesse o autor e encontrasse este livro, com esta capa concreta, numa livraria, teria como primeira mensagem a certeza de não encontrar a história de Caim tal como é contada na Bíblia, mas uma outra, talvez desconcertante, a julgar pelas letras do título em quase derrocada.

Esta estrutura só foi possível pelo facto de a designer ter beneficiado de total liberdade no que respeita à colocação dos elementos constituintes da capa do livro. O único elemento que foi definido pelo editor foi o logotipo da editora e o seu posicionamento na capa. De resto, pude colocar todos os elementos onde quis colocar. É certo que a situação mais comum é o nome do autor e o título surgirem no topo, mas neste caso creio que a o conceito da capa é reforçado pela colocação do título em baixo”.

Para as letras, Marianne Zaitzow escolheu o tipo Bad Type, “porque tem aquela aparência simples e
naif que parece ter sido desenhada à mão e, apesar disso, é forte, poderoso. Na verdade, é uma parte muito importante de toda a imagem.” Essa aparência manual ganha leitura quando se relaciona com a imagem da mão, já que a técnica do stencil é, igualmente, uma técnica com componente manual preponderante, e mesmo as suas reproduções em computador, graças a programas de desenho preparados para replicarem os gestos e os processos de técnicas artesanais, não perdem essa vertente.

Descrevendo o seu processo de trabalho a partir de um exemplo sem relação com o design, Mariann Zaitzow destaca a relação profunda e bilateral que a capa deve estabelecer com o livro a que serve de rosto: “A capa está muito relacionada com o título do livro. Como designer, acho importante contar a história do livro na capa. A minha função é ser a 'voz' do autor, não a minha própria voz. É como se tivéssemos de vestir outra pessoa. Temos de a conhecer, saber quem é, como pensa, como trabalha, onde vive. Não vamos vestir um vestido a um homem que trabalha como mineiro...” No caso de Kain, o efeito foi bem sucedido e aquilo que parece uma 'desarrumação' dos códigos habitualmente utilizados no registo de um título é, na verdade, um efeito visual capaz de resumir parte considerável da essência deste romance de José Saramago. A roupa adequada, portanto."

"Saramago pide cerrar todos los zoológicos del mundo" - Publicado a 12/03/2009 no blog "La crónica verde" do 20minutos.es (César-Javier Palacios)

"Saramago pide cerrar todos los zoológicos del mundo"
Por César-Javier Palacios (12 de Março de 2009)

O artigo e tomada de posição de José Saramago pode ser recuperada, aqui
em http://blogs.20minutos.es/cronicaverde/2009/03/12/saramago-pide-cerrar-todos-zoolaigicos-del-mundo/

"Otra vez el genial José Saramago, Premio Nobel de Literatura en 1998, vuelve a golpear en nuestras conciencias, soñando claro y fuerte con un mundo mejor al que se enfrenta tan sólo armado por la razón. Un mundo de respeto, más justo con las personas, pero también con los animales, el paisaje y todo lo que nos rodea.

Su último aldabonazo es en contra de los zoológicos y los espectáculos de circo con animales. Lo hace para defender algo tan aparentemente anecdótico como la vida de Susi, la pobre elefanta deprimida del zoológico de Barcelona de la que ya os hablé la semana pasada.

Os pongo a continuación el principio de su artículo Susi, publicado el paso 19 de febrero en su muy recomendable blog personal El cuaderno de Saramago, una dura crítica a estos centros de reclusión de animales que deberían cerrarse cuanto antes. Gracias maestro."

«Si yo pudiera, cerraría todos los zoológicos del mundo. Si yo pudiera, prohibiría la utilización de animales en los espectáculos de circo. No debo ser el único que piensa así, pero me arriesgo a recibir la protesta, la indignación, la ira de la mayoría a los que les encanta ver animales detrás de verjas o en espacios donde apenas pueden moverse como les pide su naturaleza. Esto en lo que tiene que ver con los zoológicos. Más deprimentes que esos parques, son los espectáculos de circo que consiguen la proeza de hacer ridículos los patéticos perros vestidos con faldas, las focas aplaudiendo con las aletas, los caballos empenachados, los macacos en bicicleta, los leones saltando arcos, las mulas entrenadas para perseguir figurantes vestidos de negro, los elefantes haciendo equilibrio sobre esferas de metal móviles. Que es divertido, a los niños les encanta, dicen los padres, quienes, para completa educación de sus vástagos, deberían llevarlos también a las sesiones de entrenamiento (¿o de tortura?) suportadas hasta la agonía por los pobres animales, víctimas inermes de la crueldad humana. Los padres también dicen que las visitas al zoológico son altamente instructivas. Tal vez lo hayan sido en el pasado, e incluso así lo dudo, pero hoy, gracias a los innúmeros documentales sobre la vida animal que las televisiones pasan a todas horas, si es educación lo que se pretende, ahí está a la espera."»

Artigo de Jay Fox sobre "A Viagem do Elefante" - "The Elephant's Journey" (Stay Thirsty Magazine - 09/04/2016)


O artigo pode ser recuperado e consultado aqui,

Jay Fox (Brooklyn, NY, USA - 09/04/2016)

"The past is an immense area of stony ground that many people would like to drive across as if it were a road, while others move patiently from stone to stone, lifting each one because they need to know what lies beneath. Sometimes scorpions crawl out or centipedes, fat white caterpillars or ripe chrysalises, but it's not impossible that, at least once, an elephant might appear, and that elephant might carry on its shoulders a mahout named subhro, meaning white, an entirely inappropriate word to describe the man who, in sight of the king of portugal and his secretary of state, appeared in the enclosure in belém looking every bit as filthy as the elephant he was supposed to be taking care of."

José Saramago happened to be alive just long enough to discover this elephant, as well as his handler (or mahout), whose name happened to be Subhro. He was also alive just long enough to hear the story about how the elephant, whose name was Solomon, was given to the Archduke Maximilian as a wedding gift from King Joao III of Portugal in 1551.

Luckily for us, Saramago was so tickled by the tale that he decided to write a novel about the journey that the elephant and Subhro made from Belém, a parish in Lisbon, to Vienna, the home of the Archduke. The trek sees the elephant and his mahout cross the Iberian Peninsula, sail to Italy, and then scale the Alps with a few stops in some of the great cities of the Late Renaissance along the way. Published in Portuguese as A Viagem do Elefante in 2008, and translated into English by Margaret Jull Costa and published two years later as The Elephant's Journey, it was the second to last book that the Nobel winner finished prior to his death in 2010.

Those who casually gloss over the past probably would find the work of José Saramago to be a tedious exercise in the study of minutia made all the more annoying because of his style. Capitalization, quotation marks and other, seemingly necessary elements of punctuation are absent. The dialogue is sometimes more like the banter of a Marx Brothers film than the type of high-minded discourse one would expect from a book of serious literature. The pacing of the plot is frequently interrupted because the narrator wanders off on tangents and must, every so often, literally catch up to the procession of porters, soldiers and officers escorting the elephant through Portugal or Spain or Italy.

Saramago is a writer for those who would sacrifice twists and turns of plot for the type of flowing rhythm that would make Faulkner jealous. While it is not as groundbreaking as his 1991 novel, The Gospel According to Jesus Christ, as epic as Blindness, or as witty as what may arguably be my favorite of his works, Death With Interruptions, this novel is perhaps one of his better showings because it is so short. The Elephant's Journey is like a Russian imperial stout in that regard. It belongs in an eight-ounce snifter.

The novel also reveals some of the aspects that have made Saramago one of my favorite writers. He is knowledgeable without being pedantic; he is exceptionally clever and never takes great pains to set up elaborate jokes; and he knows how to set a pace. He is the type of humorist who doesn't need punch lines so much as he needs a few idiots talking in circles, as demonstrated by Subhro's run-in with a priest and his ecclesiastical team while in Padua. The priest asked if Subhro could get the elephant—now named Suleiman instead of Solomon because the Archduke had decreed it to be so—to perform a miracle by kneeling before the Basilica of Saint Anthony. "…Is there any hope of success, [some members of the ecclesiastical team] asked, Very much so, even though we are in the hands of an elephant, Elephants don't have hands, That was a manner of speaking, like saying, for example, that we're in the hands of god…"

And yet there's another humor hiding beneath these kinds of idiotic interactions. It's the same kind of smartass' smirk that you'll find in the pages of Pynchon, Borges and Balzac. Saramago's work reminds you not only to laugh at life every once in a while, but that it's usually the least stupid thing that you can do."

Link: Jay Fox at Stay Thirsty Publishing