Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

"Sobre Fernando Pessoa" - 30 de Novembro, data em que se assinalam os 81 anos da morte de Fernando Pessoa

30 de Novembro, data em que se assinalam os 81 anos da morte de Fernando Pessoa

25 de Novembro (de 1995)
"Sobre Fernando Pessoa: 
«Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um Camões muito maior do que o antigo, mas, sendo uma criatura conhecidamente discreta, que soía andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Ainda bem. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um Camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoas, fenómeno nunca antes visto em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de óptica, das que sempre estão a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Num movimento inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou com infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que apareçam nos espelhos, menos que falem. E como estes, Fernando e a imagem que não era sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: "Chamo-me Ricardo Reis." O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida para gozar. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: "Chamo-me Alberto Caeiro." O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não há dois sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem do tipo daqueles que têm saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: "Chamo-me Álvaro de Campos", mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente cansado de ter sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: "Chamo-me Bernardo Soares", e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito adiantado nos trabalhos de tradução e de poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe que tinha um grande futuro à sua frente, mas ele não deve ter acreditado, tanto que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um momento antes de acabar, pediu que lhe dessem os óculos: "Dá-me os óculos", foram as suas formais e finais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou por saber para que os quis ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente la´estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia no quarto. Este Fernando Pessoas nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos." 
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 204 a 206 (25/11/1995)

Citador #27 ... Pessoa e Reis num hipotético diálogo envolto em inquietude...

30 de Novembro, data em que se assinalam os 81 anos da morte de Fernando Pessoa

Citador #27
em "O Ano da Morte de Ricardo Reis"
Caminho, 11.ª edição, página 144

(...) Se um morto se inquieta tanto, a morte não é um sossego, Não há sossego no mundo, nem para os mortos nem para os vivos, Então onde está a diferença entre uns e outros, A diferença é uma só, os vivos ainda têm tempo, mas o mesmo tempo lho vai acabando, para dizerem a palavra, para fazerem o gesto, Que gesto, que palavra, Não sei, morre-se de a não ter dito, morre-se de não o ter feito, é disso que se morre, não de doença, e é por isso que a um morto custa tanto aceitar a sua morte, Meu caro Fernando Pessoa, você treslê, Meu caro Ricardo Reis, eu já não leio. Duas vezes improvável, esta conversação fica registada como se tivesse acontecido, não havia outra maneira de torná-a plausível. (...)

Memorial do Convento com ilustrações de João Abel Manta (Guerra e Paz)

(Capa da edição)

A notícia pode ser recuperada e consultada aqui

"O romance “Memorial do Convento”, de José Saramago, é publicado a 07 de dezembro, numa nova edição, “especial e limitadíssima”, com ilustrações de João Abel Manta, adiantou à Lusa fonte editorial.
“O nascimento deste livro dava um pequeno romance. O editor José da Cruz Santos sonhou esta edição com José Saramago”, afirmou à agência Lusa fonte da Guerra e Paz, que chancela a obra.
Numa carta enviada a José da Cruz Santos, Saramago escreveu: “Ter o João Abel Manta e o Carlos Reis connosco é um presente do céu, quando o havia. Só de pensar que vou ter um livro meu ilustrado pelo João Abel faz com que o pulso se me acelere”, citou a editora.
O “Sonho” concretiza-se com esta edição, num livro de capa dura, com um formato de 16,5 centímetros de largura, por 24 de altura, com um reforço de lombada em tecido vermelho, incluindo 20 ilustrações inéditas de João Abel Manta a quatro cores, sendo duas das ilustrações reproduzidas em dípticos com 33 centímetros de largura, segundo a mesma fonte.
“Com guardas vermelhas e um fitilho, esta é uma edição raríssima, de apenas 500 exemplares, que não voltará a ser reimpressa”, reforçou a mesma fonte.
Para esta edição contribuíram várias personalidades e entidades, designadamente o editor José da Cruz Santos e a livraria Modo de Ler, que a cederam à Guerra e Paz, e ainda a Porto Editora, a Fundação Saramago e as herdeiras de José Saramago, que a autorizaram, e as autorizações concedidas por João Abel Manta e a sua filha, bem como pelo catedrático em Literatura Carlos Reis.
“Com a publicação da edição especial do ‘Memorial do Convento’, a Guerra e Paz fecha um ano que marcou uma profunda viragem inovadora nas suas linhas editoriais”, disse à Lusa a mesma fonte.
A primeira edição de “Memorial do Convento”, cuja ação decorre nos inícios do século XVIII, em torno da construção do Convento-Palácio de Mafra, nos arredores de Lisboa, foi em outubro de 1982, pela Editorial Caminho.
A ação narrativa decorre no reinado de D. João V, com o país a receber as muitas riquezas do Brasil, e a ação da Inquisição que se endurecia, sendo protagonistas Baltasar, conhecido como Sete-Sóis, porque apenas conseguia ver à luz, e Blimunda, chamada de Sete-Luas, porque conseguia ver no escuro, graças ao dom da “ecovisão”.
Este não é o primeiro romance que João Abel Manta ilustra. Em 1970 ilustrou “Dinossauro Excelentíssimo”, de José Cardoso Pires.
João Abel Manta, de 88 anos, é autor de uma obra multifacetada, da arquitetura ao desenho, passando pela pintura e a caricatura.
Manta tem ainda obra sua nas artes gráficas, tapeçaria, cerâmica e mosaico.
Com Alberto Pessoa e Hernâni Gandra, foi um dos arquitetos responsáveis pelos projetos dos blocos habitacionais da avenida Infante Santo, em Lisboa, que lhe valeu o Prémio Municipal de Arquitectura, em 1957, e da Associação Académica de Coimbra, em 1959.
Em 1961 venceu o Prémio de Desenho na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, com “O Ornitóptero”.
Das suas atividades mais regulares, a par da arquitetura, foi o ‘cartoon’, que desenvolveu de 1945 a 1991, em variadas publicações.
O historiador João Medina considerou-o “o caso mais extraordinário do ‘cartoonismo’ luso do nosso século [século XX], só equiparável [ao] próprio Bordallo Pinheiro”.
Em termos de arte pública, são de sua autoria os painéis da avenida Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e o desenho do pavimento da praça dos Restauradores, também na capital.
O artista fez ainda incursões no teatro, tendo assinado os cenários d’”A Relíquia”, de Eça de Queiroz, e “O Processo”, de Kafka, ambas encenadas por Artur Ramos e levadas à cena em 1970, pelo Grupo de ação Teatral."

O link da editora "Guerra e Paz",pode ser acedido aqui