Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

"De Moçambique uma entrevista com José Saramago" Entrevista de Calane da Silva para a "Revista Caliban"

A entrevista pode ser recuperada e consultada, aqui
em https://revistacaliban.net/de-mo%C3%A7ambique-uma-entrevista-com-jos%C3%A9-saramago-9240050a3485

Calane da Silva*
“Os problemas do mundo só estarão resolvidos quando todos formos mulatos. E o que isto significa é que quando os Homens se encontrarem como Homens uns com os outros, quando não forem separados por nenhumas barreiras, barreiras de cor, barreiras de crença, enfim todas as barreiras — e não é preciso estar a enumerar pois, conhecemo-las bem demais — isso, essa aproximação, essa espécie de união constante, união dinâmica, união em movimento constante levaria evidentemente a criar o tipo de Homem — que não havendo essas barreiras — seria aquilo que eu chamo, mulato, uma vez que eu não tenho de ser eternamente branco, como não tenho de ser eternamente preto” — Estas são algumas de muitas outras afirmações interessantes de José Saramago, feitas numa entrevista dada ao jornalista e escritor moçambicano Calane da Silva, no início dos anos 90 do século passado e que continuou inédita até este momento.

Esta revista traz assim para o público de língua portuguesa esta entrevista nunca antes publicada e feita durante a sua primeira visita a Moçambique do até agora único Prémio Nobel da Literatura em língua portuguesa já falecido e que poderá certamente alargar o nosso conhecimento sobre a constância ou a evolução do pensamento e outros aspectos da vida de José Saramago.

Começando por esclarecer sobre a origem dos seus nomes e sua verdadeira data de nascimento, José Saramago, que na época demonstrava uma certa mágoa pelo facto de nunca até esse momento ter sido premiado pela sua obra, dá a conhecer as suas convicções em vários domínios da vida e da sociedade, o seu parecer sobre os problemas internos do comunismo e sua prática nos então países socialistas, sobre as questões da democracia na Europa e no mundo, o seu ateísmo e condição humana relativamente à religião, ao amor, às ideologias e à literatura e seu conceito sobre literatura moçambicana.

Respeitando escrupulosamente o modo de se exprimir durante a entrevista vamos em seguida publicá-la na íntegra, destacando algumas das suas afirmações sempre polémicas e interessantes e tornar a recordar que as questões apresentadas têm a distância de quase 30 anos em relação à actualidade. Efectivamente, esta entrevista foi efectuada em Março/ Abril de 1990, quando da visita de Saramago a Maputo a convite do Centro Cultural Português — Instituto Camões para proferir uma palestra para encerrar o III Curso de Literatura Portuguesa. Estes cursos são feitos anualmente em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane (UEM) de Maputo e continuam até aos dias de hoje.

Transcrevemos a seguir na íntegra a entrevista.

(Fotografia publicada e que acompanha a entrevista)

Como temos pouca informação aqui em Moçambique sobre a sua pessoa, você mesmo, íamos começar um pouco por si. José Saramago é mesmo o seu nome?
José Saramago é mesmo o meu nome. O nome completo é José de Sousa Saramago. Saramago era a alcunha da minha família sobretudo do lado paterno e foi por obra e graça do empregado do registo civil da minha aldeia que eu sou realmente o que sou, quer dizer, que tenho esse nome Saramago. Porque foi por sua livre iniciativa que ele acrescentou quando eu fui registado, ele resolveu por sua livre iniciativa — há quem diga que ele estava ligeiramente embriagado, ou mais do que ligeiramente — e, repito, por sua livre iniciativa, lá acrescentou aquilo que era apenas uma alcunha, o que criou uma situação que teve de vir a ser resolvida mais tarde, por que nem a minha família nos primeiros anos antes de eu ir para a escola sabia que eu me chamava Saramago, porque, como se sabe, essas coisas ficam registadas e depois não se pensam mais nelas, ou não se vê, ou não há documentos. Eu até nem sei se teria cédula pessoal ou não, se já existia naquela altura cédula pessoal.

O que eu sei e me recordo disso bem é que quando eu fui para a escola, aos seis ou sete anos de idade fui tirar os papéis, como se dizia, tirei a certidão de nascimento e perante o pasmo do meu pai eu chamava-me José de Sousa Saramago e isso levou a a que ele mudasse o próprio nome, pois não se sabia como é que duma família que era Sousa aparecia um Saramago, esse apelido, e então para que tudo ficasse na devida ordem o meu pai teve de fazer um registo adicional do seu próprio nome em que ele passou também a chamar-se José de Sousa Saramago. Portanto, é um caso em que o filho deu o nome ao pai.

Falando dos seus pais. Donde é que eles eram e o que faziam?
Eu sou do Ribatejo de uma aldeia chamada Azinhaga no conselho da Golegã e nasci aí em 1922, não em 18 de Novembro como dizem os documentos mas a 16, que também é outro erro na minha biografia, porque como o registo tinha de ser feito trinta dias depois do nascimento e, como o meu pai andava a trabalhar fora, só pôde ser feito no dia 18 de Dezembro e, para não se pagar a multa, deu-se como data de nascimento uma data que não é real. Enfim, o meu bilhete de identidade diz que eu nasci a 18 de Novembro mas nasci a 16.

Aí o meu pai que tinha feito a guerra de 14/18 achou, quando regressou à terra, que, enfim, que a vida tinha que mudar e, portanto, suponho eu que por altura de 24 ou 25 (1924 ou 25) os meus pais emigraram para Lisboa. Portanto, tendo eu embora nascido na aldeia, a minha vida praticamente toda foi feita em Lisboa, embora até, enfim, à adolescência, até aos 17, 18 anos por aí, eu tivesse sempre feito longas estadas na minha aldeia e por isso, quando eu me recordo da minha infância, da minha adolescência, ou pelo menos da primeira parte da adolescência, é muito mais o campo e tudo aquilo que anda por lá, que está lá, do que, digamos, a vida urbana, é muito mais isso. Por isso, eu pude dizer e ainda posso dizer de uma certa maneira que tudo o que em mim há de vital como memória, como recordação, tudo isso é campestre e não urbano.

De qualquer modo gostaria de entrar num outro problema, que é o problema da profissão. Quer dizer: os escritores são às vezes Homens de mil profissões. Qual foi a sua primeira profissão e que profissões teve antes de começar a abraçar definitivamente a profissão de escritor?
Bem, eu tive várias profissões porque a nossa situação económica não era muito boa. Fiz a instrução primária, digamos, normalmente, depois fui para o Liceu, mas a verdade é que só estive no Liceu até ao segundo ano, porque, enfim, por razões económicas, repito, não consentiram que lá continuasse e passei para uma escola industrial, a escola industrial “Afonso Domingues” e aí tirei o curso de serralheiro mecânico até aos 17 anos ou coisa que o valha. O meu primeiro emprego, o meu primeiríssimo emprego, foi como serralheiro mecânico durante cerca de dois anos nas oficinas de serralharia dos hospitais civis de Lisboa. Enfim, não tiro daí nenhuma honra particular, mas também não lhe encontro nenhuma razão para me envergonhar, fui, de facto e cerca de dois anos, operário.

Depois durante algum tempo, muito pouco, fui desenhador técnico, entrei para os serviços administrativos dos hospitais, depois saí e fui para umas instituições de previdência onde fiquei alguns anos, tornei a sair — porque nunca estive muito tempo no mesmo sítio — enfim, entrei a seguir para uma editora e aí estive mais tempo. Saí da editora e fui para um jornal, saí do jornal e fui para outro jornal, isto aconteceu em 72/73 e depois em 1975 — em 74 é a revolução e com a revolução eu fiquei desempregado — mas enfim são histórias que, digamos, não têm muito interesse: e é sobretudo a partir de 1975, quando com o 25 de Novembro em que fiquei desempregado — nessa altura era director adjunto do “Diário de Notícias” e fiquei na rua, é nessa altura que eu tomei a decisão — já tinha alguns livros publicados, evidentemente — mas aí tomei a decisão de, pelo menos, tentar dar-me inteiramente à escrita.

Durante alguns anos entre 76 e 79 foi bastante difícil porque tive de recorrer muito ao trabalho de traduções e, a partir de 1979/80, as coisas começaram a mudar aos poucos e, enfim, ao final de dez anos, eu, que desejava viver daquilo que escrevia, consegui.

Eu estou a recordar-me que decorre na ópera de Milão a apresentação da Blimunda, ou seja, o Memorial do Convento. Mas recordo-me que alguém, parece-me que um realizador europeu, queria fazer um filme também do mesmo livro. Houve algum problema para esse filme não ir avante ou houve recusa da sua parte?
Não! Não houve nada a não ser eu não ter autorizado e, de facto, houve e continua a haver neste mesmo momento uma proposta da Televisão de Espanha que quer levar, quer fazer uma série sobre o “Memorial”. Enfim, já disse que não a é primeira vez e vou com certeza dizer que não, nesta segunda vez, e olhe a razão é realmente simples: é que eu não vejo como é que aquele romance — e quem diz aquele diz outros — pode passar ao cinema, pois eu considero que uma história contada pelos meios do cinema é uma história que… como hei-de dizer… é uma história que tem que se servir apenas do que é essencial. Há questões de ordem formal, que, do meu ponto de vista, são extremamente importantes e que, no caso dos meus livros, assumem uma importância pelo menos tão grande como a própria história que é contada, e eu não vejo como é que isso passe para o cinema.

Então eu digo, às vezes, que não quero ver a cara das minhas personagens e muito menos a cara de uma personagem como é por exemplo a Blimunda, mas isso enfim é uma maneira um pouco anedótica de expor as coisas, pois o que eu não quero, no fundo, é sofrer com uma adaptação que deixe de parte algumas coisas que para mim são essenciais, ficando o livro passado ao cinema ou à televisão e reduzido a uma simples história em que as personagens fazem isto e aquilo, que se movem isto e aquilo, enfim… Continuo a dizer e disse ontem na Associação dos Escritores Moçambicanos que não nos devemos enganar a nós próprios. A maneira de contar é tão importante como aquilo que se conta e, quem sabe, se nalguns casos não é mais. E como a maneira de contar se perde com certeza, se perderia na passagem do livro ao áudio-visual, então eu continuo a dizer não.


É natural que se abra uma excepção e é a primeira vez que eu digo — é de facto uma notícia em primeira mão — embora ainda não posso confirmar completamente, mas tudo leva a pensar que assim será, é natural que eu abra uma excepção para uma romance meu que se chama Levantado do Chão. E essa excepção abro por uma razão muito simples: a reforma agrária foi liquidada no meu país. O romance existe, conta a história de três gerações de uma família de camponeses alentejanos, a informação foi recolhida no ano de 1976, quando enfim havia a esperança na transformação da relação do Homem alentejano com a terra alentejana. Enfim, quinze anos depois volta tudo àquilo que era dantes, o latifúndio reconstituiu-se, os grandes senhores de terras recuperaram a terra, a exploração, enfim, com algumas modificações, vai continuar e penso ser uma espécie de dever meu, dever cívico se quiser, que a história dessa gente possa ser vista por públicos mais numerosos, muito mais numerosos do que aqueles que, enfim, se interessam pelo livro. Essa é a razão. Portanto, é natural que eu abra uma excepção para o caso do Levantado do Chão mantendo-me em todo o caso absolutamente firme quanto aos outros livros.

Mas então porquê a ópera? Porquê resposta positiva para a ópera?
Bem a ópera, repare, é um modo de expressão de tal forma diferente que nunca poderia de facto, ou melhor, não pode falar-se de uma adaptação do livro à ópera. É impossível. Não se pode meter 350 páginas densas num espectáculo que dura duas horas e um quarto ou coisa que o valha. Então o que há é a utilização de meia dúzia de pontos essenciais do livro organizados, digamos, através da música, organizados pela música, pela acção cénica e, portanto, a ópera é, e ao mesmo tempo não é, o livro. E eu posso dizer já e, enfim, porque isso pode ter algum interesse, que pelo menos neste caso tudo quanto há de essencial no livro passou à ópera. Eu posso dizer que há muito do que está no livro que não entrou na ópera. Mas insisto, o que é essencial no livro passou para a ópera e mais: graças à encenação, graças, a tudo aquilo que se pode fazer com pessoas que se movem no palco com luzes, com sons com tudo isso, há certas intenções do livro, ou certas expressões do livro, o livro tem uma grande carga herética, ora bem, na ópera essa carga herética é acentuada, precisamente pela encenação e tudo isso.

Até que ponto as convicções ideológicas que nortearam a sua vida durante muitos anos o modificaram ou se modificaram? Para si o comunismo ainda significa um passo em frente para o avanço cultural dos povos? Essas suas convicções ideológicas terão sido também um motor para a sua produção literária?

As convicções que tive são as convicções que tenho. O facto de assistirmos a uma derrocada de sistemas ou pelo menos da sua aplicação em vários países, desde a própria União Soviética, não altera nem alterou nada as minhas convicções porque entendo que o defeito não está apenas no sistema, embora possa encontrar no sistema alguns defeitos, defeitos de interpretação, defeitos de leitura se se quiser. Mas continuo a pensar que a grande responsabilidade, a maior responsabilidade do falhanço a que estamos a assistir do socialismo, digamos directamente ligado a Marx e àquilo que vem directamente do pensamento de Marx, resulta muito mais da incapacidade, da incompetência, da irresponsabilidade, para não dizer outras coisas piores, de pessoas que tiveram ou que tinham como função o levantar dos povos que supostamente estariam a servir este mesmo sistema, que aponta e continua a apontar para a felicidade dos Homens, a felicidade relativa como sempre ela há-de ser, mas que não podia, de forma nenhuma, ter como projecto final, aquilo a que assistimos: a privação das liberdades, a decadência económica, o asfixiamento da produção, dificuldades na repartição de bens. Isto é, tudo aquilo que nos deixa estupefactos — ou não tão estupefactos — porque os sinais de que isto era assim já vinham de longe e só não os via quem não queria vê-lo. Enfim, esta situação a que se chegou não a atribuo inteiramente ao sistema, mas talvez se possa encontrar uma parte da responsabilidade aí, por erros de leitura, de interpretação e, sobretudo, por erros de adequação, relativamente ao que deveria ser a adequação a tempos que são evidentemente diferentes e que não podem ser espartilhados dentro do sistema. Pelo contrário, desde o princípio que se apresentou como flexível e capaz de adaptar-se a novas realidades, quando o que afinal aconteceu foi ter-se transformado numa espécie de bíblia, num dogma, em que o pensamento criativo sobre este mesmo sistema praticamente foi paralisado.

Portanto, é preciso que tomemos consciência de todos os erros, qualquer que seja a sua origem e tendo em conta, sobretudo, as suas consequências, portanto, isto é para dizer que não foi o que está a acontecer que modificou as minhas convicções.

As minhas convicções têm uma raiz que continuo a considerar
 perfeitamente válida, vamos ter evidentemente que viver — é a longa travessia 
do deserto que vai durar trinta ou quarenta anos provavelmente, quem 
sabe se mais — da hipótese socialista. Mas, enfim, será o próprio capitalismo
 mundializado que vai criar, ele próprio, as condições para que um novo 
pensamento socialista surja.

Para responder à parte final da pergunta eu diria que tomei sempre como uma espécie de regra de conduta, uma velha frase de Engels que diz precisamente, falando de literatura, e, note, que eu não uso estas frases como se fossem uma espécie de mandamento, uso-as por aquilo que valem e significam e esta, neste caso, penso que vale e que significa muito. O Engels dizia que num livro, e ele referia-se concretamente ao romance, que quanto menos visível for a mensagem ideológica, mais eficaz será esse livro. E eu não tive que me violentar muito para cumprir, melhor, para satisfazer essa sugestão, essa ideia Engeliana. Porque, pela minha própria natureza, sempre me chocou a utilização da literatura para efeitos panfletários ou para a utilização de propaganda política directa. O Homem é muito mais complexo do que isso. O Homem, além de ser um animal político, é um animal sentimental, um animal afectivo, um animal, que transporta tudo aquilo que constitui a nossa humanidade em virtudes, embora tudo isto seja muito relativo do que é, de facto, uma virtude, virtudes, defeitos, sonhos, desejos, tentações, tudo aquilo que nós somos, esta caldeirada contraditória que nós somos, que não pode, efectivamente, ser definida por um tipo de comportamento que vai apenas do sentido da ideologia, cortando, amputando o Homem de todas as outras suas dimensões.

Portanto, na minha obra literária penso que não se encontra um 
Homem amputado, mas um Homem que quer manifestar-se e 
expressar-se na sua totalidade, embora eu ache que os meus romances só 
poderiam ser escritos tal como são, tal como estão, só poderiam ser 
escritos por alguém que, ideologicamente, é o que eu sou. Quer dizer: ninguém, 
um conservador, um reaccionário não poderia escrever o «Memorial do Convento» 
ou «O Ano da Morte de Ricardo Reis» ou qualquer outro meu livro.

O Homem político que eu sou, o Homem cívico que eu sou, a ideologia que eu tenho ao manifestar-se artisticamente, não quero amputar-lhe as dimensões não ideológicas, também não quero amputar-me da minha dimensão ideológica. E é na conjunção, digamos, desta complexidade, que é ela uma totalidade, que depois vão ser escritos os meus livros. Talvez seja por isso que eu tenho leitores à esquerda, ao centro e à direita.

Enquanto em muitos países do mundo se assiste a mudanças políticas possibilitando mais diálogo, na Europa, como por exemplo, na França, na Alemanha e na Itália, forças conservadoras e mesmo neofascistas ganham terreno contra esse mesmo diálogo. Em Paris, por exemplo, pela primeira vez nos últimos 50 anos uma deputada, Madame Stirbois, defende o racismo num discurso de quase duas horas perante a complacência dos seus colegas de outras cores políticas, que pouco antes tinham atacado o deputado comunista que queria uma lei contra o racismo. O mesmo absolutismo está acontecer em certos outros países que defendem estados teocráticos ou partidos religiosos fanatizados que querem a todo o custo ascender ao poder. Então eu punha esta questão: não vê aqui um perigo para a cultura? Na sua opinião, o mundo tende para uma mestiçagem cultural e humana ou, pelo contrário, estamos a assistir a um avanço para novos “apartheids” mais ou menos subtis, mais ou menos abertos?
Uma coisa é aquilo que seu desejo e outra coisa é aquilo que, provavelmente, virá a acontecer se não se encontra maneira de inverter a marcha em que vão alguns movimentos, como esses que se referiu. Aquilo que eu desejo e que já vou inventar uma pequena frase e que em si mesma não tem muita importância, mas coloco um conjunto de ideias, que, penso eu, respondem a essa preocupação, que é a de que os problemas do mundo só estarão resolvidos quando todos formos mulatos. E o que isto significa é que quando realmente os Homens se encontrarem como Homens, uns com os outros, quando não forem separados por nenhumas barreiras, barreiras de cor, barreiras de crenças, enfim, todas as barreiras e não é preciso estar a enumerar, conhecemo-las bem de mais, essa aproximação, essa espécie de união constante, dinâmica, união em movimento constante levaria evidentemente a criar o tipo de Homem, que, não existindo essas barreiras, seria aquilo que eu chamo mulato. Quer dizer, eu não tenho que ser eternamente branco, como não tenho que ser eternamente preto.

Evidentemente que se pode falar e há quem tenha falado na dignidade da raça, que a raça deve manter-se pura por respeito da sua própria dignidade. Devo dizer que em termos biológicos não sei o que isso significa e apenas teremos de chegar à conclusão de que falar de dignidade aí, no fundo, é estar a usar outras palavras para dizer aquelas que já conhecemos, como racismo, como arianismo, racismos brancos, racismos negros, racismos amarelos, enfim, todos racismos que seria possível imaginar. E então teríamos o Homem cautelosamente dividido e colocado em compartimentos estanques, além estão os pretos, ali estão os brancos, além estão os amarelos e os contactos que se fizerem serão apenas diplomáticos.

Eu penso que a cama, ou aquilo que faz mudar a partir da cama, é um admirável 
encontro da humanidade. E quando eu digo tudo isto pode ser resolvido no dia em que a humanidade for toda mulata é porque se resolveram já todos esses preconceitos.

Bom, isto é uma resposta lírica. Os factos estão aí e os factos são de facto terríveis. E vem mostrar mais uma vez a ingenuidade da democracia que leva a pensar que basta declarar-se como tal para que imediatamente todos os perigos não democráticos, todos os atentados à democracia, não é que estejam resolvidos, mas é como se essa vontade democrática paralisasse automaticamente todo o anti-democrático. E depois há outra coisa em que a democracia é igualmente mais perigosamente ingénua, a de assumir uma espécie de respeito religioso pela lei — pela lei no sentido que eu diria abstracta — que é dizer assim: eu não posso proibir nada, porque se eu proibir alguma coisa estou a atentar contra mim mesmo, contra a democracia.

Ora, a democracia ou se defende ou perece às mãos dos que não são democratas. 
E tivemos aí um claro exemplo: um deputado, para o caso era comunista 
mas podia ser de qualquer outra filiação partidária, que vem muito justamente 
propor uma lei contra o racismo, porque o racismo é uma atitude de não 
humanidade, é criticado pelos seus colegas de bancada que depois permitem 
durante duas horas que uma senhora deputada faça o elogia do racismo. 
Então tudo isso parece indicar que a democracia está a preparar o caminho 
ao fim do qual vai ser estrangulada mais uma vez. É por suas próprias mãos que a 
democracia está a abrir caminho no final do qual estará uma forca onde irá ser pendurada.

As profanações dos túmulos dos judeus em França, o sr. Le Pen, tudo o que está a acontecer de fascismos encapotados, e agora cada vez mais explícito na Alemanha, até na União Soviética, isso tem a sua explicação, e também nos chamados países do Leste, até há pouco tempo, países socialistas de democracias populares, são um sinal extremamente perigoso e se as forças positivas da Europa e do mundo não despertarem e não entrarem em acção, podemos, dentro de alguns anos, encontrarmo-nos em situações semelhantes a algumas que julgávamos definitivamente ultrapassadas. Isto com a agravante do ressurgimento de todos os nacionalismos. E aqui esta situação do nacionalismo é uma questão tremendamente difícil porque os nacionalismos têm tanto de bom como têm de mal, ou têm tanto de mal como têm de bom, conforme se queira dizer.

Em primeiro lugar o nacionalismo é um direito. Quer dizer que eu tenho direito de ser quem sou. O contrário disso é passar a ser aquilo que outros querem que eu seja. Por outro lado, o nacionalismo quando é entendido em termos de inimizade em reacção ao outro, então aquilo que antes podia ser bom como defesa de uma identidade própria, passa a ser mau porque se torna agressivo em direcção à identidade do outro. O equilíbrio entre este bom e este mau tem sido extremamente difícil e vai sempre do nacionalismo exarcebado, ou ideias internacionalistas ou universalizantes, se se quiser, que por outro lado conduziriam à asfixia das culturas. E isto igualmente não se pode autorizar, não se pode permitir, não se pode consentir. Cada cultura tem o direito de viver, de nascer, viver e morrer pelas suas próprias forças e pelos seus próprios meios.

Claro está que, se olharmos para trás, veremos que as lutas, as guerras culturais sempre existiram, mesmo quando não se dava esse nome. Se Roma tivesse sido tão autoritária que tivesse imposto o latim pela violência aos povos que hoje falam línguas neo-latinas, ainda estaríamos todos na Europa a falar latim e não falaríamos português, nem espanhol, nem francês. Simplesmente Roma não o podia fazer e o latim em cada lugar onde se encontrou foi pelo caminho próprio.

Temos que nos situar e que os intelectuais, já que tantas responsabilidades e tantas funções lhes atribuem, penso que, pelo menos, neste caso deviam ter algumas responsabilidades como de definir o justo caminho entre o nacionalismo justificado — o sentido nacional, o sentido da identidade que é preciso respeitar e desenvolver — e evitar a tentação de cair para o lado em que ele se transforma já no nocivo e agressivo. Enfim, isso seria bom mas acontece que eu vejo os intelectuais, pelos menos os intelectuais europeus, muito entretidos com a sua própria carreira, com o seu triunfo e não os vejo — ainda não há muitos anos acontecia — intervirem de facto em situações como esta.

Surge aqui uma outra questão, que é a do poder. Eu diria assim: a questão do poder tem afligido muitos escritores, havendo, no entanto, quem queira ver na literatura também uma forma de poder cultural. Ora, sendo as formas de poder múltiplas como, por exemplo, o poder no Estado, na família, etc., não vê nesse poder uma forma de impedimento do livre arbítrio, da liberdade, do amor e da própria criatividade?
A ilusão de que, ou melhor, a ideia de que podemos viver sem o poder é uma ilusão. Quer dizer: o Poder, as relações de Poder são relações do quotidiano. Quando nós falamos no Poder vemos sempre uma entidade acima, como seja o Poder do Estado, o Poder do Aparelho do Estado, tudo isso. Mas o Poder é vertical e horizontal, não é só, digamos, na família, não é só no trabalho, no emprego, é na própria relação quotidiana. Quer dizer que se os automóveis têm de circular, enfim, todos pelo mesmo lado, há realmente um poder que determina, um regulamento, uma lei, o que quer que seja, e ninguém pode em nome do livre arbítrio passar a circular pelo lado contrário. Aliás, a única maneira dos Homens viverem em sociedade é aceitarem certas relações de Poder, as relações de Poder, as relações úteis.

Voltamos sempre ao mesmo, ou seja, quando o Poder se torna autoritário para além do seu direito, de um direito que tem de se reger no sentido de orientar uma sociedade, quer dizer: temos é de definir, marcar os limites do Poder. E isso só pode ser feito com uma vigilância constante dos cidadãos. O próprio cidadão sabe do seu dia-a-dia quando o Poder lhe é útil e quando ele lhe é inútil, ou mais do que inútil, nocivo, e que ele o que tem de exercer é o seu direito de protestar, o seu direito de organizar-se contra esse poder que já se tornou não só inútil como também agressivo, conservando e respeitando e, até, fortalecendo a outra parte do exercício do Poder que organiza a sociedade de que esse cidadão é membro. E ele faz isso e quase não tem de pensar, porque em sociedade, ao mover-se nela, ele é sujeito e agente nessas relações de Poder e ele sabe quando é que isso é harmonioso e quando isso deixa de ser.

Portanto, o Poder não é um obstáculo à criação literária, cultural, não é um obstáculo ao Amor e ao livre arbítrio, se nós puséssemos a questão nesses termos, conduziria à irresponsabilidade total…se a vida humana só faz sentido, digamos, na sua expressão colectiva, o livre arbítrio seria exactamente a impossibilidade de viver em colectividade.

Encaminhemo-nos para outro assunto relacionado com a problemática dos escritores e a questão da crítica. A crítica, que alguns dizem ser o próprio alter-ego do escritor, estará, no seu ponto de vista, já a entrar em decadência ou não?
Eu não diria que estará a entrar em decadência. Há realmente uma espécie de renúncia à função crítica, mas eu julgo que essa renúncia no campo cultural, no campo literário pode ser também uma manifestação da renúncia do próprio cidadão em participar na vida colectiva. Quer dizer: se o cidadão não critica, se não tem uma atitude crítica em relação à sociedade em que vive, também não se pode esperar que haja um sector em que a crítica se exerce plenamente. Então julgo que essas coisas mesmo que de uma maneira não tão mecânica, como parece que eu estou a dizer, creio que essas coisas, enfim, suponho que estão ligadas.

Mas também existem outros factores que levam a que a crítica hoje seja exercida de uma maneira displicente, de uma maneira meramente judicativa, resumindo tudo, dizer-se se o livro ou a pintura, ou música é bom ou é mau, sem dizer porque é que é bom ou porque é que é mau; e que tem que ver com as próprias condições em que os críticos têm de trabalhar. Se se faz a crítica de um livro, se se pretende fazer a crítica de um livro, a primeira coisa é que o livro tem de ser lido. Segunda coisa, tem de se pensar sobre esse livro, tem de se reflectir sobre o livro. Tem, provavelmente, de se se ligar, de se fazer leituras de outras obras do mesmo autor para se ver até que ponto, enfim, que lugar ocupa esse livro no conjunto da obra do autor. Tudo isso já levou provavelmente uma semana ou duas e depois tem se escrever a crítica. E a crítica não pode ser feita em cima do joelho.

O que eu quero dizer com isso é que provavelmente ao fim de um mês o crítico tem a crítica para entregar no jornal, na revista, ou onde quer que seja e depois vai ter de dizer assim: agora paguem-me a crítica que eu fiz com o qual gastei quinze dias ou três semanas, ou um mês, mas paguem de forma a que possa ter plena responsabilidade pelo trabalho que fiz. É evidente que o chefe de redacção do jornal ou revista vai dizer: você é doido! Escreva-me aí meia dúzia de linhas para que eu possa meter na revista uma meia página onde vai dizer se este livro é genial — em geral não é — ou se este livro é para deitar fora, e não quero mais nada! Ora, sendo assim, é muito difícil aquela crítica. Note! Não quer dizer que não haja, que não continue a haver crítica que se publica nas revistas especializadas que tem outro nível, enfim, tudo o mais. Mas a crítica de que estou a falar neste momento, que é a crítica de informação do público, é ao público que, verdadeiramente, deveria interessar a crítica, não é ao autor.

Eu não acho que o crítico seja alter-ego do autor, o autor é o mais cego que pode existir em relação à sua própria obra, portanto, não é ao autor que a crítica interessa — o autor ficará muito satisfeito se o crítico disser que o livro dele é bom, mas se disser que o livro não é bom o autor faz de conta que não leu e segue em frente no seu próprio caminho. Agora quem a crítica interessa é ao leitor. O leitor é que deve ser orientado não no sentido de que é levado pela mão, mas orientado com informação; precisa de saber, precisa de confrontar o seu próprio juízo que ele já fez ou vai fazer após a leitura do livro, com o juízo de outra pessoa que, enfim, tem um certo grau de especialização sobre aquela matéria. Isso, sim é útil e é isso que está em crise.

Como nos disse ontem durante o encontro com os escritores moçambicanos, não tem assim tantos anos, uns vinte, creio, mas uma questão, sobretudo, em relação à sua idade que é muito superior ao tempo de escrita e à sua experiência acumulada. Gostaríamos de ouvi-lo sobre o sentimento que as pessoas, muitas vezes, não conseguem definir, mas que está muitas vezes ligado àquilo que chamamos posse, poder, medo e atrás dele o ciúme, que não é o Amor. O que entende hoje Saramago por Amor e Verdade, na vida de um ser humano no seu íntimo relacionamento com aquilo que nós podemos considerar a mãe-água-da-cultura?
Eu separaria o Amor da Verdade e a Verdade do Amor. São duas coisas muito diferentes, uma começa por não existir e outra nós fazemos tudo para que exista. A que não existe, segundo o meu modo de ver, o meu modo de pensar é a Verdade. A Verdade não existe. Não há nada que nós possamos dizer que é Verdade que vai continuar a ser Verdade e ficará Verdade imutavelmente.

Isso a que chamamos Verdade é um conceito relativo e eu penso que nós 
vivemos muito mais numa franja intermédia entre a Verdade e o erro, ou 
a verdade e a mentira, somos seres de instabilidade, não podemos manter-nos 
muito tempo numa exigência que seria como seria a de uma verdade — que 
mesmo assim também não sei de que modo é que se definiria — é evidente 
tenho uma visão de relativismo total em relação a todas as coisas e, portanto, 
quando me falam na verdade pergunto sempre: digam-me o que é, porque eu 
bem gostaria de saber e até hoje não consigo encontrar o que isso seja.

E quando me falam numa reflexão sobre a Verdade é sempre muito mais útil uma reflexão sobre o erro. Digamos que, normalmente, reflectir sobre a Verdade acaba por se transformar num exercício de volteio, mais ou menos filosófico, e aquilo que me parece que seria muito mais útil seria justamente a reflexão sobre o erro. Porquê e porque erramos? Erramos em relação a quê? Erramos em relação ao que nos é na verdade instável. Há um livro meu, que se não me engano é o Memorial do Convento em que uma das personagens não sei se é o Bartolomeu de Gusmão ou se é o Domenico Scarllati que defende a utilidade do erro. E creio que o erro leva a alguma utilidade.

O Amor, bom, quanto nós sabemos é uma invenção cultural, tal como a beleza é uma invenção cultural. Durante centenas, milhares senão milhões de anos o Homem sentou-se diante de um pôr-de-Sol e nunca disse que coisa bela é este pôr-de-Sol. Durante todo esse tempo igualmente o Homem teve relações com uma mulher e nunca disse nem nunca sentiu isso a que nós chamamos Amor. Satisfazia um desejo psicofísico, um desejo sexual e acabou. E a partir de uma certa altura começou-se a inventar. Inventou-se a Beleza, inventou-se o Amor e hoje há quem defenda que a Beleza é um absoluto, coisa que não pode ser, coisa que não é, que o Amor é outro absoluto, coisa que não pode ser, coisa que não é, enfim, antropomorfizamos tudo, é um ponto de vista antropomórfico toda esta visão do Homem que arruma estas coisas todas à sua escala e à sua medida. Agora que o Amor nas suas várias manifestações — o Amor não é apenas o Amor que liga dois seres é a atitude em relação a todos os outros, a atitude de cada um de nós em relação aos outros, pode ser uma relação de Amor, ou uma relação de indiferença, uma relação de egoísmo, uma relação de ódio, pode haver tudo isto na relação com os outros. A relação do Amor é, começa a ser… como estava a dizer começa a ser a aceitação, o recebimento de diferença. Se eu aceito se recebo a diferença que o outro representa em relação a mim, estou em condição de amá-lo, de querer-lhe bem.

Na tal Mãe-Cultura, na tal mãe superior, eu creio que talvez devesse assentar numa ideia extremamente simples que é ade que não poderíamos ou não deveríamos fazer mal uns aos outros. Parece um pouco bíblico, parece um pouco evangélico e não o é: é de pura expressão de humanidade. A partir do momento em que digo isto é meu, aí introduz-se imediatamente uma semente de conflito. É evidente que não vamos cair na tentação tola de uma espécie de Amor universal que resolveria todos os problemas. Agora, que a atitude de cada um de nós em relação aos outros deveria começar por ser uma atitude de compreensão, o que não quer dizer receber como irmãos meus os meus inimigos, não tem nada a ver com isso. Não é “deram-ne uma bofetada do lado direito e eu ofereço o esquerdo para a segunda bofetada”, não é, efectivamente, mas é uma atitude que seria a de admitir a possibilidade de que o entendimento se possa fazer pela compreensão do outro, para a aceitação do outro nos limites de uma relação que à partida se pretende que seja harmoniosa. Não é que entrem em casa um senhor com uma arma e que eu lhe ofereça o peito às balas. Esse não é aquele com quem eu quero entender-me, esse não é aquele que eu quero amar. Mas é alguém que, ou tem de deixar cair essa arma, ou pela persuasão ou pela violência que responde à violência, e, eventualmente, eu possa depois dialogar com ele, ou então ele terá de compreender que esse caminho leva onde tem levado sempre, à destruição sistemática do Homem pelo Homem, que em milhares e milhares de anos de civilização, de cultura, de filosofia, de religião, de beleza de toda a ordem, ainda não resolveu — porque esta á uma triste verdade — nenhum dos problemas essenciais da humanidade.

Quanto ao Amor, na relação homem-mulher ou na relação entre dois seres, isso já são outros “quinhentos” e passa pela descoberta do outro e passa mais provavelmente — como nós ligamos em geral ao amor uma outra palavra que é a palavra felicidade — se calhar a maneira de chegar a essa felicidade é preocupar-se cada parceiro — estou agora a falar de par — preocupar-se cada parceiro muito mais com a felicidade do outro do que com a sua própria. Se numa relação de dois cada um deles pensar que a sua felicidade é estar na felicidade do companheiro ou da companheira — julgo que o Amor aí atinge uma dimensão mutual, de respeito mútuo, de conhecimento.

Eu não sei se o Homem pode realmente viver sem o outro. Naturalmente há muita gente que pode e se calhar até se os valores por que a humanidade se têm vindo mais ou menos a reger por essa lei e, se alterassem radicalmente o amor, acabaria por ser qualquer coisa que não teria lugar nessa sociedade e os homens continuariam a viver não sei bem como. Mas tal como nós somos feitos o Amor continua a ser uma componente indispensável da nossa própria realização pessoal se se quiser.

Isso faz-me lembrar um bocado aquilo que, sobretudo, as religiões orientais falam da renúncia do Eu, do Ego, no sentido da penetração mais funda naquilo que eles dizem alma, a compreensão do Amor penetrando-o em si mesmo, dentro dele, amando o outro como se fosse algo também de si próprio. Mas agora que levantei esta questão não sei se a religião alguma vez ocupou algum espaço na sua vida.
Não. Não. Tudo isso que eu digo nem tem que ver nem com as religiões orientais, nem com as religiões ocidentais. A religião nunca ocupou qualquer espaço na minha vida. Fui baptizado como toda a gente, a partir daí não tive qualquer outra relação com a Igreja. Sou o que se pode chamar um ateu tranquilo, não sei o que será o resto da minha vida mas gostaria que quando chegasse a minha hora, gostaria de poder pensar que não precisei de Deus para ter uma vida… enfim… uma vida que penso ter sempre respeitado os outros, uma vida em que procurei não fazer mal, ou não fazer muito mal e não precisei nem de mandamentos de Igrejas nem de confessores espirituais, nem do medo do inferno, nem do respeito pelo Pai, esse Padre Eterno que, supostamente, estará lá para nos julgar, gostaria que no meu último minuto poder pensar tudo isto e olhar-me sem grandes remorsos e sem nenhum medo, apenas com a certeza de que ou com a convicção de que fiz meu, o meu papel de ser humano que veio a esta terra sem saber porquê, veio a este mundo sem saber porquê, e sai deste mundo sem saber para quê.

Estou a lembrar-me da figura de Blimunda à procura de Baltazar que não encontra mais, que terá desaparecido numa nave e nunca mais aparece… Qual a descoberta de si mesmo em todos estes temas? A sua função vital e de vida que objectivo pensa para si mesmo?
Eu não sei se posso falar assim tão explicitamente, tão claramente em objectivos. Eu acho que na vida me tenho limitado a ir vivendo. Nunca fiz projectos, em momento nenhum da minha vida fiz projectos para o futuro. Quer dizer: a vida vai-me dando ou eu fui-me encontrando em situação de receber as coisas que, provavelmente, tinha para me dar; é evidente que para me dar alguma coisa que resultam dos livros, por exemplo, eu tive que escrever esses livros, mas, provavelmente, eu estive cá também para escrever esses livros, mas não como um projecto, como alguma coisa que eu tivesse delineado antes. E se é verdade pelos, enfim, pelos… através dos meus livros eu chego a conhecer-me melhor, eu não escrevi os meus livros para me conhecer melhor, eu conheço-me melhor porque escrevi esses mesmos livros. Portanto, digamos que há em mim, ou penso que tem havido em mim uma espécie de certo sentido de fatalidade, não no sentido limitativo que a palavra tem, mas no outro sentido que é este: as coisas são o que são e já está. E elas são porque eu não sou senhor de todas as minhas circunstâncias. Ninguém pode dizer “eu fiz-me a mim mesmo”. Ninguém pode dizer isso. Nós somos o produto das nossas circunstâncias, somos a consequência disso. Seríamos outras pessoas se tivéssemos nascido, por exemplo, na China, ou digamos, se tivéssemos nascido noutro país com outros sistemas de valores, com outras religiões, com outra ética, com outras filosofias, seríamos outras pessoas. Somos o produto, efectivamente, das circunstâncias.

Eu acho que talvez seja — já agora é capaz de ser um bom momento por que veio a propósito de citar — porque eu citei o Engels e vou citá-lo outra vez com o Marx com uma passagem do livro que ambos fizeram, que ambos escreveram que é a Sagrada Família, onde a certa altura se diz, em pouquíssimas palavras, que, provavelmente, concentram ou condensam ou resultam em tudo quanto eu tenho vindo a dizer nesta conversa. Escrevem eles o seguinte: “Se o Homem é formado pelas circunstâncias, então é preciso formar as circunstâncias humanamente”. Acho que isto diz tudo.

É interessante. Mas essa viagem que fez por exemplo n’ O Ano da Morte de Ricardo Reis é uma trajectória do múltiplo do seu múltiplo, ou tem mais qualquer coisa?
Nós não somos unos. Nenhum de nós é uno. Todos nós somos vários. E levamos a vida a tentar ser unos e tentar que esta complexidade que somos, mais do que complexidade, esta diversidade que somos se apresenta como uma unidade e isso, às vezes, custa-nos muito trabalho. Temos que recalcar muita coisa, reprimir, temos que eliminar ou pelo menos manter em surdina, calados, agachados os nossos impulsos, fantasmas, tentações — penso que a tentação é muito forte em nós —somos seres auto-reprimidos em muitos casos e mesmo as pessoas que se exprimem que vivem mais livremente, mesmo assim transportam auto-repressões.

Então O Ano da Morte de Ricardo Reis, que ainda por cima se refere a alguém que teve disso uma visão extremamente aguda, como é o Fernando Pessoa, que veio, definitivamente, dizer-nos “não tenhamos nenhuma ilusão, não somos um, não somos uno, somos vários, somos plurais, e aqui estou eu que não sou ninguém, que já morri e que aqui está o Ricardo Reis que também não é ninguém porque nunca existiu e que aqui está, como é possível estabelecer um diálogo do que já não existe com o que não existiu nunca, porque no fundo, é verdade que nós existimos, mas também é verdade que se pode perguntar: existimos, como? E este “como” talvez seja mais importante do que tentar responder às outras duas perguntas, o porquê, eu acho que talvez seja esta questão por nos preocuparmos muito com isto: “existimos porquê? Existimos para quê?” e se calhar a questão mais importante será tentar encontrar a resposta ao “existimos como?”.

Para finalizar e recordando que saltámos aqui uma questão sobre a atracção e rejeição, a que se referiu ontem, atracção e rejeição pelos escritor moçambicano da língua e cultura portuguesa. Você afirmou que os escritores africanos de língua portuguesa têm uma certa ambiguidade, ou seja, uma atracção e repulsa em relação à língua e cultura portuguesas. Pode explicar melhor?
Eu não diria tanto repulsa mas uma relação de atracção/rejeição, seria, digamos, mais isso. É verdade que eu disse isso e não tenho uma ideia muito clara o que pretendia na altura dizer sobre isso, mas creio que pode situar-se talvez desta maneira: os escritores moçambicanos, e não seriam apenas os escritores moçambicanos, os escritores que estão na situação em que os moçambicanos estão, ou seja, a desempenhar um papel de fundadores de uma literatura e que têm referências anteriores e, neste caso, essas referências são as da cultura portuguesa, as da literatura portuguesa, mas que sentem ao mesmo tempo um impulso vital de afirmação própria, essa necessidade de se afirmarem como o que são, escritores moçambicanos, leva-os a não quererem mais nada senão essa moçambicanidade, que eles próprios não sabem exactamente o que seja, que é qualquer coisa que está em trânsito, em formação e, portanto, penso eu, os leva a essa atitude de rejeitarem qualquer paternidade. E, neste caso, o pai que se pretende rejeitar, não direi, digamos, matar, será a literatura portuguesa tal como ela está, tal como ela existe.

Por outro lado, eu penso que é impossível a um escritor moçambicano fingir que isso não existe. E é nessa ambiguidade, nessa relação que pode ser conflituosa, ou que pode ser pelo contrário bastante pacífica, visto que eu estou a inventar um conflito, pode muito bem acontecer que o escritor moçambicano a resolva sem conflito, consciente dessa dualidade. Quer dizer que pode haver essa dualidade sem que ela se converta nisso que eu disse, atracção/rejeição, e, portanto, sem que se constitua ou se apresente como conflito.

Pondo de parte o conflito, esse binómio atracção/rejeição, essa dualidade pelo menos existe, está lá. E eu julgo que os escritores moçambicanos é que sabem da sua própria vida e daquilo que querem fazer — que a própria investigação sobre o passado de Moçambique vai ter que ter de ser feita também através dos próprios, vai ter que utilizar também documentos que são portugueses e esses documentos, documentos do tempo colonial estão inevitavelmente ligados ao solo que é este aqui, mas também lá, e não é possível, quer dizer, chega-se a Moçambique, mas tem que se passar por Portugal. E o que seria óptimo é que daqui por cinquenta anos para chegar a Portugal fosse preciso também passar por Moçambique. Não como fusão de culturas, mas como diálogo profundo entre essas mesmas culturas.


*Calane da Silva é jornalista moçambicano, escritor e professor universitário de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, em Maputo.

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