Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 15 de junho de 2016

"Rever, repensar, reescrever." - Manuscrito de página de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984)

"Rever, repensar, reescrever."
“O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984)


"Saramago, José, 1922-2010
O ano da morte de Ricardo Reis : romance / José Saramago
1983; [4], 365 f. ; 30 x 21 cm;

Dactiloscrito a preto com emendas autógrafas a esferográfica azul e preta. - No canto superior direito da 1.ª folha do texto, uma nota autógrafa, riscada: «Rever, repensar, reescrever». - Tem como suporte folhas lisas A4, com numeração de [1] a 365 (correspondentes ao número de páginas do romance); inclui mais três folhas: folha de rosto, tábua de publicações e epígrafes; nos versos das folhas 39 e 341, fragmentos de texto dactiloscrito, um deles riscado e, no verso da folha 216, cálculos aritméticos. - Versão muito próxima da editada (Caminho, 1984), embora esta última não contemple todas as emendas deste documento e introduza outras alterações. (BNP N45/11)"

Pode ser consultado aqui, via página da Biblioteca Nacional

"Revisão de texto: uma penitência" de Eliezer Moreira publicado em "O Mirante" (13/06/2016)

"Revisão de texto: uma penitência" de Eliezer Moreira
Publicado em "O Mirante" (13/06/2016), e pode ser recuperado aqui
em http://omirante.pt/cartas-do-brasil/2016-06-13-Revisao-de-texto-uma-penitencia

"O revisor é aquele profissional que acerta milhões de vezes, sem merecer um único elogio, mas no dia em que deixa passar um só erro ele é prontamente chamado de incompetente. Deve ser por isso que José Saramago, certamente um bom conhecedor das agruras da profissão, criou a figura impagável daquele revisor chamado Raimundo Silva no romance História do cerco de Lisboa."

"O paulista Monteiro Lobato (1882-1948) não foi apenas um grande escritor, foi também um editor pioneiro no Brasil com a Cia. Editora Nacional, portanto, uma autoridade em matéria de livros, dominando desde a concepção do texto até o produto acabado na prateleira. Invoco sua figura para falar da coisa mais banal e nem por isso menos dramática quando se trata de escrever e publicar: o erro de revisão. Duas semanas atrás quase perdi o sono ao deixar sair aqui uma crônica com quatro sacis gritantes – quatro erros de digitação que o paginador Fábio Oliveira, assim que solicitado, me fez o imenso favor de eliminar. Falando certa vez a respeito dessa tragédia também conhecida como gralha ou pastel e que, no seu tempo, ainda se chamava erro tipográfico, Lobato assim se manifestou: “A luta contra o erro tipográfico tem algo de homérico. Durante a revisão os erros se escondem, fazem-se positivamente invisíveis. Mas, assim que o livro sai, tornam-se visibilíssimos, verdadeiros sacis a nos botar a língua em todas as páginas. Trata-se de um mistério que a ciência ainda não conseguiu decifrar”.

Se é assim com o livro, produto de elaboração demorada que comumente é lido e relido muitas vezes e por muitos olhos antes de ser impresso, o que dizer do texto jornalístico, que hoje se escreve e se publica quase simultaneamente no meio digital? Embora em geral curto, o texto de jornal nem por isso está menos sujeito ao acúmulo de gralhas. Algum tempo atrás, ao falar da obrigação de rever a própria escrita em sua coluna em O Globo, Elio Gaspari empregou o advérbio perfeito ao dizer que lera e relera aquele trabalho “piedosamente” antes de autorizar sua publicação. O termo supõe a ideia de penitência, daí sua exatidão, porque se o trabalho de escrever pode ser penoso ou gratificante, rever o próprio texto é sempre uma penitência. E uma penitência cada vez mais inevitável, já que a figura do revisor parece fadada a desaparecer das redações, se é que já não desapareceu.

E não é somente grande pena que esse animal indispensável esteja em risco de extinção, o seu fim seria também a consumação de uma eterna injustiça, porque injustiçado ele tem sido desde sempre. Falo com a autoridade de quem já reviu muito texto alheio durante muito tempo. O revisor é aquele profissional que acerta milhões de vezes, sem merecer um único elogio, mas no dia em que deixa passar um só erro ele é prontamente chamado de incompetente.

Deve ser por isso que José Saramago, certamente um bom conhecedor das agruras da profissão, criou a figura impagável daquele revisor chamado Raimundo Silva no romance História do cerco de Lisboa. Tendo passado uma vida inteira num trabalho apagado e obscuro, um belo dia Raimundo Silva resolve acrescentar uma simples palavra – “não” – ao texto que está a revisar, e com isso muda completamente os rumos de toda uma história. Bem feito."