Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 13 de novembro de 2016

Porto Editora lança nova edição da obra "Viagem a Portugal" e recuperação do prefácio de Claudio Magris

Link directo para a edição da Porto Editora e restantes obras já reeditadas, aqui
em https://www.portoeditora.pt/noticias/viagem-a-portugal-de-jose-saramago/116222

"Publicado pela primeira vez há 35 anos, Porto Editora lança nova edição do emblemático livro de viagens de Saramago.
“É preciso recomeçar a viagem. Sempre.» escreve José Saramago em Viagem a Portugal, que regressa amanhã às livrarias. 35 anos depois da primeira edição, este é um livro que reúne as crónicas de viagem do Nobel português pelo nosso país, oferecendo-nos um retrato de cada região, das suas pessoas e paisagens.

Entre outubro de 1979 e julho de 1980, José Saramago percorreu o país de lés a lés a convite do Círculo de Leitores, que comemorava o décimo aniversário da sua implantação em Portugal. Disse o autor após essa deambulação, misto de crónica, narrativa e recordações, que «o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite... É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos»."

Já publicados na Porto Editora e as personalidades que colaboraram nas capas: 

Ensaio sobre a Cegueira- Caligrafia da capa por Chico Buarque
O Homem Duplicado - Caligrafia da capa por Lídia Jorge
A Viagem do Elefante -Caligrafia da capa por Mário de Carvalho
Os apontamentos - Caligrafia da capa por Maria do Céu Guerra
Provavelmente alegria - Caligrafia da capa por Nuno Júdice
As Pequenas Memórias - Caligrafia da capa por Gonçalo M. Tavares
As Intermitências da Morte - Caligrafia da capa por Valter Hugo Mãe
Memorial do Convento - Caligrafia da capa por José Mattoso
História do Cerco de Lisboa- Caligrafia da capa por Álvaro Siza Vieira
Os poemas possíveis- Caligrafia da capa por Almeida Faria
A Noite - Caligrafia da capa por Armando Baptista-Bastos
Manual de Pintura e Caligrafia - Caligrafia da capa por Júlio Pomar
Que farei com este livro?- Caligrafia da capa por Carlos do Carmo
Folhas políticas - Caligrafia da capa por Teresa Villaverde
A Caverna - Caligrafia da capa por Eduardo Lourenço
Ensaio sobre a Lucidez - Caligrafia da capa por Dulce Maria Cardoso
Levantado do Chão - Caligrafia da capa por Mia Couto
Objeto Quase – Caligrafia de capa por João Tordo
Terra do Pecado – Caligrafia de capa por José Luís Peixoto
A Jangada de Pedra – Caligrafia de capa por Mário Cláudio
Todos os Nomes – Caligrafia de capa por Miguel Gonçalves Mendes
O Evangelho segundo Jesus Cristo – Caligrafia de capa por Sebastião Salgado
O ano da morte de Ricardo Reis – Caligrafia de capa por Carlos Reis

Capa da edição



"É proibido quebrar ninhos e escrever prefácios
Homenagem a José Saramago"

Claudio Magris
Texto publicado na edição espanhola da Viagem a Portugal de José Saramago, editada pelo jornal El Mundo.
Tradução de José Colaço Barreiros.

"José Saramago não gosta de prefácios. Foi uma das primeiras coisas que o ouvi dizer, quando nos encontrámos pela primeira vez em Lisboa, há muitos anos, e  ele nos ofereceu, a  mim e  a Marisa, precisamente a  Viagem a  Portugal. As linhas iniciais desta viagem põem-nos em guarda contra os prefácios, inúteis se a obra não os requerer ou indícios da sua debilidade se deles precisar.
Eu de facto nunca escreveria — nem ninguém mo pediria — uma introdução ao Ano da Morte de Ricardo Reis, talvez o livro de Saramago que mais amo, ou a outros romances seus amados. Mas a viagem — no mundo e no papel — é em si uma espécie de contínuo prefácio, um prólogo a qualquer coisa que deve sempre estar ainda por vir e está sempre ainda a um canto; partir, deter-se, voltar para trás, fazer e desfazer as malas, anotar no seu caderninho a paisagem fugidia, que se esboroa, que se recompõe, enquanto se atravessa, como uma sequência cinematográfica com os seus
fundidos e encadeados, ou como um rosto muda com o tempo. E depois retocar, apagar e reescrever esses apontamentos, nessa contínua deslocação da realidade para o papel e vice-versa que é a escrita, neste sentido muito semelhante à viagem. Esta última, escreve Saramago no epílogo, recomeça sempre, tem sempre de recomeçar, como a  vida, e  toda a  sua anotação é  um prólogo. 
A Viagem a Portugal desmente as idiossincrasias do seu autor; com efeito tem uma apresentação e uma apostilha. Todo o texto autenticamente poético — e a Viagem é-o intensamente — é mais sabido do que quem o escreveu; esta é aliás uma prova da sua grandeza. Saramago viaja em Portugal, ou seja, dentro de si mesmo e não só, como ele diz, porque Portugal é a sua cultura. É-o no mundo, no espelho das coisas e dos outros homens, que se encontram a si mesmos, como aquele pintor de que fala uma parábola de Borges, que pinta paisagens, montes, árvores e rios, e por fim repara que deste modo retratou o seu próprio rosto. Toda a verdadeira viagem é uma odisseia, uma aventura cuja grande questão é se nos perdemos ou se nela nos encontramos a atravessar o mundo e a vida, se captamos o sentido ou se descobrimos a insensatez da existência. Desde as origens e desde o que é talvez o maior de todos os livros, a Odisseia, literatura e viagem surgem estreitamente ligadas, uma análoga exploração, desconstrução e recomposição do mundo e do eu. Um reconhecimento do real que, na sua fidelidade, se torna invenção e inventa mesmo o eu viajante, uma personagem literária.
A Viagem a  Portugal é  disto um fascinante exemplo. O  viajante avança, tal como na vida, numa mistura de programa e casualidade de metas marcadas e  imprevistas digressões que levam a outro sítio; engana-se no caminho, volta atrás, salta rios e ribeiros; está incerto quanto ao que visitar e ao que descurar, porque também viajar, como escrever e como viver, é acima de tudo abandonar. Detemo-nos em momentos gloriosos, grandes personagens e obras-primas artísticas — a admirável descrição de quadros e  sobretudo de igrejas, cinzeladas ou descascadas pelo vento e pelos séculos — mas também nas figuras das pessoas encontradas e entrevistas só por um instante, em que se lê uma história individual e ao mesmo tempo coletiva, como as mulheres de Miranda do Douro, que não se lembram de terem sido jovens, ou os rostos do Alentejo, ensombrados por antigos jugos sociais. 
O viajante recolhe histórias, célebres e obscuras, detém-se ao perfume de uma mimosa que resgata a mísera ruela de uma vilazinha. Presta atenção às cores, às estações, aos odores, às plantas, aos animais, ultrapassando muitas vezes as delimitações entre a natureza e a história — passar confins é o ofício do viajante — e descobrindo que esta mesma, como todas as fronteiras, é precária. «Onde é a fronteira?», pergunta-se ele e esta questão, que eu também me tenho posto tantas vezes, ao vagabundear ao longo do Danúbio ou nos meus microcosmos, não diz apenas respeito à fronteira entre Portugal e Espanha.
Quando passa por esta, o  viajante dirige-se aos peixes que numa margem nadam no Douro e na outra no Duero, pedindo conselho, talvez lembrando-se de que Santo Iago tinha pregado aos salmões, embora para os converter e induzir a aceitar o seu destino de serem pescados e comidos. Protagonistas desta viagem são, em páginas belíssimas, também o esplendor das águas do rio que encontram as do mar, a luz da praia, o brilho da cascata, a solidão da lagoa, o fragor do oceano nos rochedos, música que evoca um imenso silêncio, o dourado brunido do entardecer que se apaga nas planícies nas vizinhanças de Serpa, as pedras românicas de que até das mais humildes nascia uma grande arte, porque «os construtores estavam conscientes de erigirem a casa de Deus».
Neste livro, que sinto extraordinariamente próximo do meu contínuo vagabundear no mundo e na cabeça, a viagem também penetra não só no espaço mas sobretudo no tempo; é experiência da sua plenitude e da sua fugacidade e ao mesmo tempo guerrilha contra esta última, desejo de reter a tarde que foge e amanhã já não será a mesma, de fazer parar o tempo ou de o manter bem seguro errando no espaço. A viagem, como diz o título de um livro de Gadda, tem a ver com a morte e é por isso que capta momentos tão intensos de vida e se encanta, numa esplêndida passagem do livro, perante uma proibição, sob pena de uma forte multa, de destruir ninhos; proibição que penso que José Saramago aprovará ainda mais do que a de escrever prefácios. 
Para compreender a  sério, o  viajante paradoxalmente teria de parar, ser sedentário, participar a fundo na vida que se atravessa e  se deixa para trás; eu viajo continuamente e  sempre pensei que o viajante é alguém que desejaria ser residente, radicado mas em muitos lugares. A viagem nunca acaba, mas os viajantes, ou seja, nós, sim. Este viajante português diz, a certa altura, que esteve no bairro de Alfama, mas que não sabe o que é Alfama. Também nós estamos na vida, sem saber o que ela é."
Claudio Magris

Podem ser recuperadas e consultadas outras crónicas de Claulio Magris no jornal El Mundo, aqui
em http://ariadna.elmundo.es/buscador/archivo.html?q=claudio+magris&b_avanzada=