Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 31 de maio de 2016

Ensaio de José Augusto Mourão "A litote do insuportável: Literatura e Poder" - Revista LER (Primavera/Verão 1997)

Texto de José Augusto Mourão

Publicado na revista LER, edição Primavera/Verão de 1997
Páginas 46 a 51


"Tout le livre tourne autour de la possibilité/impossibilité de 
représenter le mal absolu."
(Paul Ricoeur)

"Os profetas são sempre necessariamente profetas da desdita, 
pois a catástrofe sempre pode ser. pressuposta. 
O extraordinário é a salvação e não a decadência." 
(H. Arendt)

"On est lâches, chétifs et mols, 
Vieux, convoiteux et mal parlant 
Je ne vois que folies et fols 
La fin approche en vérité 
Tout va mal!" 
(Eustáquio Deschmaps)

"A temática é velha, antiquíssima, e resume-se neste sintagma: «tudo vai mal». Sébastien Brant (1494), Thomas Murner (1509-1512), Erasmo (1509) e, mais perto de nós, Raoul Vaneigen (1990) e Saramago fazem parte da cadeia de visionários e profetas que apostrofam os seus contemporâneos acerca da loucura que os espreita e do mal sem remédio que varre o mundo anunciando o seu fim. As sentinelas que vigiam a noite e o dia vivem do êxtase branco de uma visão sem olhos, preocupados com a ideia de contágio — quando não os atingiu a cegueira, que é a impossibilidade da figura. «Como está o mundo, tinha perguntado o velho da tenda preta, e a mulher do médico respondeu, Não há diferença entre o dentro e o fora, entre o cá e o lá, entre os poucos e os muitos, entre os que vivemos e o que teremos de viver.» (p. 233) O profeta não empresta voz diferente à sentinela: «Sentinela, em que pé está a noite?» E a sentinela responde, invariavelmente: «A manhã chega, igualmente a noite. Se quereis sabê-lo, voltai a interrogar.» (Is. 21, 11) O pregão vem de longe, com ressonâncias apocalípticas e messiânicas claras, convocado pela estratégia da alegoria, que é a estratégia que mais convém ao jogo do ser e do parecer. Que é uma alegoria? Muito sumaria-mente: representação de uma coisa na semelhança de outra. Imagem superlativa que visa efeitos visuais e linguísticos, uma «espécie de pintura» em que pretende mudar a poesia, como pretendia Quatremère de Quincy: ao substituir «a ideia do objecto físico e sensível pela ideia do ser moral, ou abstracto, (ela) torna-se para a poesia uma espécie de pintura, que se dirige aos olhos da imaginação, e parece dar corpo às coisas mais incorporais». Estatuto deste veículo: a alegoria supõe o poder do não-dito de agregar os signos de que só vemos fragmentos enigmáticos e ao mesmo tempo supõe a existência da verdade e a sua ocultação — é porque estamos exilados do verdadeiro que somos alegoristas. Como as imagens dos santos nos altares, estamos condenados a ver a nossa própria cegueira. As imagens vêem se olhamos para elas. Mundo de cegos este, conduzi-do por cegos, que vai de mal a pior (Mt. 15, 14)."


A conjectura 
"Na Grécia, a operação alegórica teve primeiro o nome de hyponoia, que por oposição ao discurso simples designa a conjectura ou a suspeita. Hypo-noein é apanhar o subentendido, a significação que um véu recobre; allo agoreuein é declarar publicamente (na ágora) uma coisa diferente daquilo que se diz. Sugerir a alteridade ou o sentido críptico. Quintiliano descreve a alegoria como metáfora contínua que de demasiado obscura pode tornar-se enigma. Interpretativa ou expressiva, a alegoria é sempre uma significação segundo o outro, com um papel moral e cognitivo, e não apenas ornamental. A comunicação não pode a priori restringir-se a ser um acto de codificação/descodificação puramente linguístico; a noção de metáfora como desvio obedece ao pressuposto de que um enunciado se interpreta em geral através de simples codificação/descodificação do código linguístico. A literariedade ou a poeticidade de uma metáfora está ligada não apenas à riqueza das inferências que ela implica, como também à polifonia que manifestam. Por exemplo, os enunciados que constituem o texto poético não são próprios do locutor-poeta, sim de enuncia-dores-estafetas, que traduzem antes de mais uma voz universal, como no caso dos provérbios ou dos ditados, cujo parentesco com as formas poéticas (aliterações, ritmo, paralelismos, etc.) é nítido. O processo da enunciação assumido por um enunciador universal explica-se pelo facto de o texto «poético» não exprimir uma experiência singular, mas o desenrolar de protótipos conhecidos de todos, remetendo não para um real singular mas para um universo prototípico que evoca um saber partilhado. O romance de Sara-mago está recheado dessa polifonia. O polilogismo desta escrita fica bem visível no recurso ao ditado, por exemplo, que é muito recorrente: «Morrendo o bicho acaba-se a peçonha.» (p. 88) Ou: «Ódio velho não cansa.» (p. 86) 

"Os mundos possíveis"
"O romance, que tinha outrora uma função nítida —fazer de sociologia —, perdeu hoje esse desígnio. Mas não perdeu os recursos do para além do descritivo próprios da linguagem, como não perdeu o alcance cognitivo que vem da capacidade expressiva da linguagem. A Escrita ou a Vida, de Jorge Semprún, ilustra admiravelmente aquilo a que Paul Ricoeur chama a possibilidade e a impossibilidade de representar o mal absoluto. Impor cânones narrativos/descritivos a uma experiência limite, nisso consiste hoje a arte de contar histórias. E que é contar histórias se não construir mundos? Como construir um mundo? — esta é a pergunta a que todo o autor tenta responder. O mundo da cegueira é um mundo entre dois mundos. Como descrevê-lo? 
Há uma tentativa clássica, à maneira de Diderot. No mundo da cegueira todo o aparelho do sentido comum soçobra: nenhuma síntese central, nenhuma finalidade preencherá a ausência de ligação entre o seu repertório sensível, o tacto, e a visão que serve de modelo àqueles que roubam. O único problema que se põem diz respeito à unidade da sua experiência, dado que a cegueira os condena a viver entre dois mundos. Que podem fazer? Construir um mundo próprio, continuando ligados ao resto dos homens, persistindo em falar a sua linguagem. O tacto supre tudo, é o filme de trama, a intensidade dominante que entra em ressonância com todas as ordens sensíveis. Por sobreposições, recria para o seu próprio mundo o universo do visível. O poder secreto do artificio é a ideia da selecção interna: a produção de um acordo imanente, apenas pela prática. Saramago inscreve-se neste modo de apresentar o mundo da cegueira, acrescentando-lhe um outro mundo — o da microfísica do poder. A sociedade contemporânea é uma sociedade disciplinar. As figuras da quarentena e do manicómio resumem o dispositivo concentracionário em que se tornam as relações sociais quando o fantasma do contágio aflora. 
Comecemos pelo problema do género: Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, é um ensaio ou um romance? O ensaio é o género literário mais livre que existe. O seu modo bem poderia ser aquele que Montaigne enuncia como «Je vais enquérant et ignorant.» J. Starobinski acrescenta: só um homem livre ou libertado pode inquirir e ignorar. Um dis-curso sem falha é o contrário do ensaio. Só o intuito pedagógico que preside à escrita de Saramago poderia fazer passar este Ensaio Sobre a Cegueira por ensaio. Mas a pedagogia é apenas uma das modulações deste livro que visa uma ética da inquirição: «Vejo outro mundo» (p. 309) e da «visão sem olhos» (p. 196). O romance assume figurativa-mente o saber, o fazer saber, a comunicação injuntiva, logo, também uma parte do ensaio, sem ser ensaio. Um género define-se por interacções de normas que envolvem as quatro componentes do nível semântico: a temática dá conta dos conteúdos investidos, isto é, do sector do universo semântico presente no texto; a dialéctica dos intervalos temporais no tempo representado, da estruturação dos estados entre estes intervalos e do desenvolvimento aspectual dos processos nestes intervalos; a dialógica dá conta das modalidades, sobretudo enunciativas e avaliativas, assim como dos espaços modais que descrevem; a táctica dá conta da disposição sequencial do significado ( tier: 1994: 40). Por esta tipificação se vê que o livro de Saramago pertence ao género romance e não ao ensaio, mais do tipo valorativo, argumentativo ou retórico. Como se aplicam neste livro tais categorias? Há evidentemente uma temática fixa (isotopia genérica de campo figurativo, moléculas sémicas próprias ao idiolecto do autor) — a «cegueira» contém neste livro o sema mesogenérico /mal/; este interpretante permite actualizar o sema no semema do Ensaio Sobre a Cegueira. Na dialéctica, o inventário dos actores é fixo. As funções são reversíveis (ver/deixar de ver) e a sua sucessão é ordenada fixamente. A dialógica caracteriza-se pela preponderância do factual e os nichos enunciativo e interpretativo são tanto fixos como variáveis. A táctica não corresponde a nenhuma sucessão temporal, mas a uma sucessão estrita." 

"O papel da sentinela cabe aqui ao «cronista», o último sobrevivente da era do livro, 
mesmo se as notícias que conta têm já o estatuto de «histórias desfiguradas». 
Se resiste, em nome de que resiste? Arrisque-se uma hipótese: em nome de uma arte 
narrativa, afinal um «saber oficinal» que Saramago controla, e mais, em 
nome da ética do rosto: «a responsabilidade de ter olhos». 
Há uma ética do rosto, em que o outro se me mostra simultaneamente desarmado, 
vulnerável e defendido, aberto e em fuga."

"A pulsação do sentido" 
"O Ensaio principia, caminha, faz-se, através de rupturas dramáticas que vêm criar a angústia, o estupor e o anúncio de um acontecimento iminente que o leitor espera, mas tarda. Este suspense, juntamente com a saturação do quadro narrativo constituem a trama diegética de uma crónica permanente de um acontecimento anunciado. A história patina, o leitor satura-se, o desenvolvimento linear é mínimo, pobre, só o ritmo da escrita sustém o espaço fechado da narrativa. A «inquietante estranheza» do romance assenta num contexto simbólico muito geral — o do mal, v.g., e a maneira como o poder, impiedosa, lucidamente trata o seu «outro», cujos dispositivo carceral e microfísica do poder Foucault luminosamente desmontou. 
A arte narrativa de Saramago consiste muito, neste livro, em manter a pulsação do sentido o mais próxima da lentidão em que decorre a «história». No efeito de descrição pormenorizada, implacável do espaço concentracionário em que os cegos se revêm, pode-se ver o batimento desta pulsão que liga o passado e o futuro virtual a que podemos chamar expectativa. Não há personagem que não viva desse patamar modalizante, às portas da esperança. A orientação de um caminho está ligada ao sentido de um desejo. Talvez a felicidade seja um lugar utópico: vivível e não vivível. O lugar em que os cegos agora vivem — asilo, prisão, hospital, campo de concentração — é um vivível lugar de morte, um inferno. 
Não se trata aqui da cegueira como destino individual, a mancha de Borges ou de Milton, mas de uma história de contágio que atinge uma comunidade inteira. Toda a gente está cega. O mundo caminha cruelmente, para a barbárie mais primitiva de milhões de cegos governados por cegos que, vendo, não vêem a noite em que precipitaram o mundo. Cegueiras várias, que invadem tudo: cegueira de lutar, de matar, de mandar, de organizar (pp. 134, 189,198), cegueira de sentimentos (p. 242). O efeito-Saramago neste livro deriva da pobreza temática trazida pelos diferentes actores à superfície do texto e sobretudo da condensação da intriga. Fazer aparecer aos olhos de todos as realidades menos sensíveis. A alegoria da cegueira serve aqui fins morais e cognitivos, tanto religiosos como políticos. Saramago desempenha o papel do moralista, pintor das paixões humanas sob a forma da alegoria. Eis um livro que teremos de chamar sapiencial, pela temática e pela forma de expressão. Mas o Ensaio é também um livro sobre a questão da escrita. A escrita inscreve-se na indecisão entre a língua, marca do uso colectivo, e a fala, que depende da liberdade individual. Escrever, em Saramago, exige uma cautela vocabular, um tactear à procura das palavras (pp. 32,31,199). Mesmo o desenvolvimento da narrativa, do género SITUAÇÃO I: ontem vimos, SITUAÇÃO II: hoje não vemos, SITUAÇÃO I1• amanhã veremos, está minado, ou modalizado, por «uma ligeira entoa-ção interrogativa na situação final, ameaçada pela reticência de uma dúvida à esperançadora conclusão» (p. 124). Não fora a arte narrativa do autor, a história perderia o fôlego, o ritmo, a cabeça e o leitor a paciência. Só uma sensibilidade meteorológica permite destacar o tempo dos personagens e a aceleração da intriga. A passagem da SITUAÇÃO I à SITUAÇÃO III é demasiado nevrótica, retensiva, para que o equilíbrio entre o pragmático e o cognitivo se faça sem risco de ruptura. A desestabilização do ritmo narrativo advém no Ensaio Sobre a Cegueira de uma certa desarmonização das temporalidades — a do narradora do narratário." 



"Apocalipses"
"O romance de Saramago é do género apocalíptico: obriga a interpretar. Que proclamam os seus cegos? Leia-se atentamente a tábua dos acontecimentos anunciados na praça pública e que vão do fim do mundo (a salvação penitencial, visão do sétimo dia, advento do anjo, colisão cósmica, extinção do sol, espírito da tribo) à morte da palavra (p. 284). É espantosa esta enumeração. Aqui se regista a emergência de sintomas do fim, com a proliferação de adventismos, angelologias selvagens, hermetismos de todas as cores, castratismos, mortes. 
Saramago, como o analista, procura a palavra que cura estas inclinações apocalípticas, detectando os desestabilizadores nos seus analisandos que são os personagens sem nome. O livro tem, por vezes, a aparência de uma longa recensão documental, como se o horrível da cegueira só numa litote do horrível pudesse ser apresentado. O papel da sentinela cabe aqui ao «cronista» (p. 161), o último sobre-vivente da era do livro, mesmo se as notícias que conta têm já o estatuto de «histórias desfiguradas>, (p. 150). Se resiste, em nome de que resiste? Arrisque-se uma hipótese: em nome de uma arte narrativa, afinal um «saber oficinal» que Saramago controla, e mais, em nome da ética do rosto: «A responsabilidade de ter olhos» (p. 141). Há uma ética do rosto, em que o outro se me mostra simultaneamente desarmado, vulnerável e defendido, aberto e em fuga. O olhar e o dizer caminham juntos: a palavra e a fonte da imagem; mesmo o cego diz que vê. A figura apela para o infigurável, o interdito da representação. A exterioridade do outro a quem o discurso se propõe atesta a impossibilidade de a linguagem se fechar na imanência e a necessidade de se referir a um interlocutor que o transcende. Este é um livro também sobre a interpretação. Trata-se, sem equívoco, de um Ensaio Sobre a Cegueira conduzido como uma história da cegueira (no plano narrativo) metaforicamente transposta. O Ensaio resulta da operação de interpretação que o leitor deve fazer: visto isto, olhemos aquilo. Donde também o seu carácter parabólico: é uma narrativa escatológica do ser humano (p. 133), o mundo está todo aqui dentro (p. 102), concentrado (p. 151); o mal branco (p. 150) atinge--nos a todos. A cegueira é como as paixões e a moral da paixão, metonímica deriva do contágio, «rastilho» (p. 150)."

"Coda"
"A transmissão de uma obra de arte é antes de mais a transmissão da sua abertura, logo também da sua interrupção, que é também o seu meio: o ponto em que ela deixou o seu autor para se enxertar num auditor/leitor que ela interroga: e tu, que vês tu? 
As ideologias que até aqui sustentaram o mundo são eufóricas e estreitas, com semiologias sólidas. Remédios semióticos contra tais estados são a arte, a literatura, a sabedoria, o afecto (comunidades interprecrita parabólica procede por encadeamentos figurativos, avança de lado, paralelamente ao discurso causal, linear. A. J. Greimas pretendia que as parábolas apelavam para o fiduciário, reconhecível nas relações humanas mais quotidianas e nos discursos inovadores. A parábola era para ele uma forma de abertura, «um estilo de resposta à vida», «uma for-ma de vida». Escrever para responder à vida pode ser uma boa divisa para quem exerce o ofício de escrever. Escrever para nada, em nome de nada? Saramago atribui-se a si próprio uma «costela pedagógica», fac-to que não o reduz a ser um bom contador de histórias mas, antes, o apresenta como alguém preocupado com o nosso destino comum. A mulher do médico encarna esse ponto critico, vidente de quem circula entre cegos, descendo até ao limite do horror, sem perder a esperança. É através dela que Saramago nos olha. Sem ceder ao niilismo, ele mantém-se de pé como a sentinela que perscruta o horizonte, respondendo a quem pergunte: «Sentinela, em que pé está a noite?» E a sentinela responde, invariavelmente: «A manhã chega, igualmente a noite. Se quereis sabê-lo, voltai a interrogar.» (Is. 21, 11) Demasiado tempo desconfiámos dos dados da experiência, sem acreditarmos na intangibilidade das verdades eternas. O primado do inteligível sobre o sensível, que é a marca da condição humana e do conhecimento finito. O consentimento a esta reviravolta que é também o princípio de uma nova legitimação da esfera estética deixou também em nós as suas marcas: deixámos de reflectir. Perdemos o «mundo» e o «juízo». Ora, o homem que não reflecte é como o animal que se abate, diz o salmista. Paradoxalmente, é quando o mundo se faz imagem — o saber publicitado, o sagrado dos congressos e do desporto, as artes plásticas — que a cegueira cobre o mundo do seu véu de cinismo e de desaparição. O triunfo do audio-visual é afinal o triunfo do simulacro. Em semiótica diz-se que o parecer promete o ser. No audiovisual, ser é ser percebido, parecer é ser. Quem olha o simulacro é tentado a tornar-se simulacro. O esplendor do falso, seduzindo, cega. O livro de Saramago denuncia essa tentação, convocando para a vigilância crítica e para a compaixão. Porque sem piedade pelo que foi, o juízo peremptório, definitivo, será apenas violência." 

"A arte narrativa de Saramago consiste muito neste livro em manter a pulsação 
do sentido o mais próxima da lentidão em que decorre a «história». 
No efeito de descrição pormenorizada, implacável do espaço concentracionário 
em que os cegos se revêm, pode-se ver o batimento desta pulsão que liga 
o passado e o futuro virtual a que podemos chamar expectativa. 
Não há personagem que não viva desse patamar modalizante, às portas 
da esperança. A orientação de um caminho está ligada ao sentido de um desejo." 

"A cegueira está a invadir tudo. Até as imagens dos santos estão de olhos vendados, condenadas a ver a sua própria cegueira. É verdade: as imagens só vêem com os olhos que as vêem. Denúncia da estupidez de ídolo que a imagem estática manifesta? A proscrição das imagens — supremo mandamento do monoteísmo — proíbe a imitação enganosa e paralisante da eternidade. A imagem, a cegueira como alegoria são fenómenos ambíguos: é preciso pôr em movimento a estátua imóvel e fazê-la falar: «A voz é a vista de quem não vê.» (p. 120) Responsabilizá-la: «Como queres tu que continue a olhar para estas misérias, tê-las permanentemente diante dos olhos, e não mexer um dedo para ajudar?» (p. 135) E quem melhor para ajudar do que o romancista Saramago, que nos dá em sinais aquilo que se rebela a qualquer significação ideal prévia: a literatura? 
«As metáforas absolutas dão resposta àquelas perguntas supostamente ingénuas e em princípio sem contestação possível, cuja importância radica pura e simplesmente em que, porque não as fazemos, não são elimináveis, encontra-mo-las todavia como já feitas de antemão no fundo da própria existência.» O absolutismo da metáfora está no seu modo de caracterizar o sentido, na sua orientação e modo de ver o homem e o mundo. As metáforas são absolutas quando não se deixam substituir por conceitos. A metáfora da cegueira — mar de leite, mal-branco — obriga a olhar para a realidade em que vivemos de olhos abertos (p. 152), sem conceitos. De frente. «A cruz da natureza eminente-mente escatológica do ser humano.» (p. 133) •"

"BIBLIOGRAFIA 
José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, Lisboa. Caminho e Círculo de Leitores, 1995. 
Quatremère de Quincy, Essai sur la nature, le but et les moyens de l'imitation dans les beaux-arts (1823, p. 333). 
Diderot, Lettre sur les aveugles à l'usage de ceux qui voient, Vernière, in Oeuvres philosophiques, Garnier. 
Jean Starobinski, Cahiers pour un temps. Centre Georges Pom-pidou, 1985. 
A. J. Greimas, «Le savoir et le croire: un seul univers cognitif», Du sens II, Paris, Seuil, 1983. 
Hans Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie, Bonn, 1960. Cf. Franz J. Wetz, Hans Blumenberg. La modernidad y sus metáforas. Novatores, 1996." 


domingo, 29 de maio de 2016

Opinião de Maria Eugénia Leitão (jornal Sol) - “Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara”

O artigo de opinião de Maria Eugénia Leitão (jornal Sol), pode ser recuperado aqui

"Esta frase de José Saramago surgiu no meu caminho já não me recordo bem onde… É a frase que Saramago fez inscrever na contracapa de Ensaio Sobre a Cegueira, obra que não li, mas que vi magistralmente representada pelo grupo de teatro “O Bando”, num palco inclinadíssimo, no Teatro de São Luís, há alguns anos."

Mural com a epigrafe inscrita

"Esta obra, na sua essência, remete para diversos provérbios bem conhecidos, em que a visão ou a sua falta dela estão bem presentes – “em terra de cegos, quem tem um olho é rei” ou “o pior cego é aquele que não quer ver”… 
Julgo que o sentido de ambos é bastante óbvio. No primeiro caso, quando alguém se destaca por uma característica que mais ninguém possui, tem boas probabilidades de vir a liderar, seja um pequeno grupo ou seja um grande grupo. No segundo caso, todos saberemos, até por experiência própria, que muitas vezes não queremos ou nos recusamos a reconhecer algo que à partida sabemos que nos irá magoar ou frustrar as nossas expectativas. E, efetivamente, as consequências são bem piores quando nos vemos forçados a reconhecer aquilo que teríamos preferido que ficasse permanecesse oculto. Por vezes, somos um pouco como as avestruzes… Só porque não queremos ver.

E, ao fazê-lo, tentamos aquilo a que a sabedoria popular chama “tapar o sol com a peneira” – tentamos ocultar algo grandioso com um pormenor ínfimo. Aquilo que é demasiado grande para ser ocultado é tão fundamental que, por vezes, se torna quase invisível aos nossos olhos, mas, exatamente por isso, não pode ser ocultado, mesmo que o ignoremos não pode ser ocultado.

José Saramago, nesta sua parábola da própria existência humana, dá-nos exatamente o conselho contrário;, aquele que foi inscrito numa parede e, um dia, surgiu no meu caminho. Diz-nos Saramago, através deste artista, que, se pudermos olhar, o melhor é vermos e, já que conseguimos ver, então o melhor mesmo será reparar.
Também Pessoa desejava que pudéssemos “ouvir o olhar”, para de modo a que “um olhar (…) bastasse” para se adivinhar os sentimentos.

Foi o que fiz, neste caso: abri os olhos, ouvi o olhar e reparei.

Maria Eugénia Leitão
(Escrito em parceria com o blogue da “Letrário”)"

"A feira onde Saramago gostava de estar" de Rita Garcia do "Observador"

O artigo completo de autoria de Rita Garcia (Observador) pode ser recuperado aqui

"Sentava-se entre os velhos pavilhões da Caminho, olhava as longas filas que o esperavam e começava a chamar leitores, sem mais delongas. Afável, solícito e rápido, José Saramago recebia cada um deles com uma informalidade inesperada para quem apenas lhe conhecia o rosto fechado e o aspeto austero. Desde a publicação de Levantado do Chão, em 1980, estava habituado a ter centenas de leitores a aguardar um autógrafo seu na Feira do Livro de Lisboa.

Saramago jamais se furtou ao contacto com o público. “Nunca tive um autor tão disponível para colaborar com o editor. Ia dar autógrafos todos os dias, a menos que tivesse um compromisso”, conta ao Observador Zeferino Coelho, um dos mais antigos editores portugueses, responsável pela publicação de todos livros que o Nobel lançou em vida."

Saramago autografando uma das suas obras (Fotografia: Global Imagens)

"O escritor chegava cedo e, em regra, não marcava hora para ir embora. “Num sábado podia começar a assinar livros às 15h30 e terminar às 20h. Era comum aparecerem 200 ou 300 pessoas. Nunca reclamava: era um cavalheiro, muito bem educado, de trato elegante, sem formalismos. Brincava, dizia anedotas”, acrescenta o editor da Caminho.

Só havia uma coisa que o incomodava verdadeiramente: descobrir na fila um rosto conhecido, de cujo nome, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar-se. O simples facto de admitir a falha de memória parecia-lhe uma desconsideração. De tal maneira que combinou um esquema com o pessoal da editora. Sempre que isso acontecia, fazia-lhes sinal e logo entrava em ação um aliado que, simpático e conversador, arranjava forma de descobrir o nome em falta. E assim, quando o amigo se aproximava do Nobel, era recebido como se tivessem estado juntos de véspera e levava para casa um autógrafo personalizado — e com o nome certo, claro.

Naquela tarde de semana, José Saramago fez o de sempre. Assinou livro atrás de livro, até que um homem lhe estendeu um manual de gestão. “Pediu-lhe um autógrafo, dizendo que tinha ido comprar aquilo para o filho e que não tinha mais dinheiro para um livro do próprio Saramago”, conta o escritor e apresentador de televisão Pedro Vieira, que assistiu à cena. O Nobel não levantou problemas: agarrou no manual e autografou-o.

Ainda que só tivesse começado a frequentar a Feira do Livro como autor a partir de 1980, o ano em que o evento se mudou para o Parque Eduardo VII, Saramago era presença habitual no evento desde os anos 60, quando trabalhava como editor. E nem quando se mudou para Espanha deixou de aparecer: “Para alguém da idade dele, a Feira era algo que fazia parte da vida”, explica Zeferino." (...) 
Nota de rodapé: o restante artigo faz uma revisitação à história da Feira do Livro de Lisboa

"Breve Meditação sobre Um Retrato de Che Guevara" para a revista "Casa de las Américas" - (Cadernos de Lanzarote Diário IV - 12/12/1996)

12 de Dezembro (de 1996)
Roberto Fernández Retamar pediu-me, para a revista Casa de las Américas, um artigo sobre Ernesto Che Guevara. Com o título «Breve Meditação sobre Um Retrato de Che Guevara», escrevi isto: 
«Não importa que retrato. Um qualquer: sério, sorrindo, de arma na mão, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, de tronco nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rasto do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer. Sobre cada uma destas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objectividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer... 
«Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se tornou em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto férteis que nunca haveriam de murchar em rotinas e cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou seguro à parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, minorou desânimos, acalentou esperanças. Foi olhado como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se matariam todas as sedes e transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano. 
«Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos habitantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os factos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato de Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de acção futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia cobarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se gostaria de fazer a algo que tivesse sido motivo de vergonha. 
«Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara à cabeceira da cama, ou em frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar. Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder a sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda do tempo, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que o coração lhes dói, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma ideia de futuro que dê algum sentido ao presente. 
«Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido, Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido. Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.» 

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 265 a 267 - 12/12/1996

"O autor como narrador" José Saramago escreve sobre a ideia de autor - Revista Ler #38 (Primavera/Verão de 1997)

Capa da edição #38 - Primavera/Verão de 1997

"Falto de mapas, abandonado de guias, com o temor reverencial de quem pisa terra estranha, uma terra onde os sistemas de comunicação estão habitualmente redigidos em línguas que, não raro, só vagas semelhanças guardam ainda com a linguagem comum, atrever-me-ei a expor-vos umas poucas ideias elementares, as únicas que poderia autorizar-se um simples prático da literatura como eu. 
Por experiência própria, tenho observado que, no seu trato com autores a quem a fortuna, o destino ou a má-sorte não permitiram a graça de um título académico, mas que, não obstante, foram capazes de produzir obra digna de algum estudo, a atitude das universidades costuma ser de benévola e sorridente tolerância, muito parecida com a que costumam usar as pessoas sensíveis na sua relação com as crianças e os velhos, uns porque ainda não sabem, outros porque já esqueceram. É graças a tão generoso procedimento que os professores de Literatura, em geral, e os de Teoria da Literatura, em particular, têm, acolhido com simpática condescendência — mas sem que se deixem abalar nas suas convicções científicas — a minha ousada declaração de que a figura do narrador não existe, e de que só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro. E quando, indo procurar auxílio a uma duvidosa ou, pelo menos, problemática correspondência das artes, argumento que entre um quadro e a pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor, e portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Gioconda ou na Parábola dos Cegos, o que se me responde é que, sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras que as traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer ignorar o facto, fundamental no meu entender, de que não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares, prolongamentos de um cérebro, ambas instrumentos mecânicos e sensitivos capazes de composições e ordenações sem mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia. 
Nesta contestação, claro está, não vou ao ponto de negar que a figura do que denominamos narrador possa ser demonstrada no texto, ao menos, com o devido respeito, segundo uma lógica bastante similar à das provas definitivas da existência Deus formuladas por Santo Anselmo... Aceito, até, a probabilidade de variantes ou desdobramentos de um narrador central, com o encargo de expressarem uma pluralidade de pontos de vista e de juízos considerada útil à dialéctica dos conflitos. A pergunta que me faço é se a obsessiva atenção dada pelos analistas de texto a tão escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes especulações teóricas, não estará a contribuir para a redução do autor e do seu pensamento a um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra. 
Quando falo de pensamento, estou a incluir nele os sentimentos e as sensações, as ideias e os sonhos, as vidências do mundo exterior e do mundo interior sem as quais o pensamento se tornaria em puro pensar inoperante. Abandonando qualquer precaução retórica, o que aqui estou assumindo, afinal, são as minhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a identidade real da voz narradora que veicula, nos livros que tenho escrito e em todos quantos li até agora, aquilo que derradeiramente creio ser, caso por caso e quaisquer que sejam as técnicas empregadas, o pensamento do autor, seu próprio e exclusivo (até onde é possível sê-lo) ou deliberadamente tomado de empréstimo, de acordo com os interesses da narração. E também me pergunto se a resignação ou indiferença com que os autores de hoje parecem aceitar a «usurpação», pelo narrador, da matéria, da circunstância e do espaço narrativos que antes lhe eram pessoal e inapelavelmente imputados, não será, no fim de contas, a expressão mais ou menos consciente de um certo grau de abdicação, e não apenas literária, das suas responsabilidades próprias." 

"Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, 
surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é, 
acima de tudo, a expressão do seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o 
leitor a ler não será a secreta esperança de descobrir no interior do livro a pessoa invisível 
mas omnipresente do seu autor."


"Que fazemos, em geral, nós, os que escrevemos? Contamos histórias. Contam histórias os romancistas, contam histórias os dramaturgos, contam histórias os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca, poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já uma história. As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde o levantar da cama, pela manhã, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e as que ao sonho tentaram descrever, constituem uma história com uma coerência própria, contínua ou fragmentada, e poderão, como tal, em qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita. 
O escritor, esse, tudo quanto escreve, desde a primeira palavra, desde a primeira linha, é escrito em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes escondida — porém, de certo modo, visível e óbvia, no sentido de que ele está sempre obrigado a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos que sejam comuns a ambos, para chegar finalmente a algo que, querendo parecer novo, diferente, original, já era afinal conhecido, porque, sucessivamente, ia sendo reconhecível. O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se. Não esqueça-mos, porém, que assim como as verdades puras não existem, também as puras falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda a verdade leva consigo, inevitavelmente, uma parcela de falsidade, quanto mais não seja por insuficiência expressiva das palavras, também certo é que nenhuma falsidade pode ser tão radical que não veicule, mesmo contra a intenção do mentiroso, uma parcela de verdade. A mentira conterá, pois, duas verdades: a própria sua, elementar, isto é, a verdade da sua própria contradição (a verdade está oculta nas palavras que a negam), e a outra verdade de que, sem o querer, se tornou veículo, comporte ou não esta nova verdade, por sua vez, uma parcela de mentira. 
De fingimentos de verdade e de verdade de fingimentos se fazem, pois, as histórias. Contudo, em minha opinião, e a despeito do que, no texto, se nos apresenta como uma evidência material, a história que ao leitor mais deveria interessar não é a que, liminarmente, lhe é proposta pela narrativa. Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o leitor a ler não será uma secreta esperança de descobrir no interior do livro — mais do que a história que lhe será narrada — a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor. Tal como o entendo, o romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista. Com isto não pretendo sugerir ao leitor que se entregue durante a leitura a um trabalho de detective ou antropólogo, procurando pistas ou removendo camadas geológicas, ao cabo das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, se encontraria escondido o autor..."

"O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um mistificador: 
conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas palavras 
suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, 
assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as empurra para o 
caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se. 

"Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Não foi simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece-me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem faltar ao respeito devido ao autor de Bouvard et Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades, nela viviam, casa, rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o espírito, o sangue e a carne de tudo isto, tiveram de passar, inteiros, por uma só pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o homem, a pessoa. Também eu, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial do Convento, e em O Evangelho Segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, por-que sou também o Deus e Diabo que lá estão..."

"O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história pessoal, Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a profunda, a labiríntica, aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que povoam um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia ensinar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor. Finalmente, talvez seja por alguma destas razões que certos autores, entre os quais julgo dever incluir-me, privilegiem, nas histórias que contam, não a história que vivem ou viveram, mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões, os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não podem impedir-se de ser mentiras. Bem vistas da coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto. Omniscientemente. 
Quanto ao narrador, que poderá ele ser senão uma personagem mais de uma história que não é a sua?" 

José Saramago
Revista Ler (edição #38 - Primavera/Verão de 1997)
Páginas 35 a 41

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sobre a fome no mundo ou o grito recorrente e constante de José Saramago - "Cadernos de Lanzarote Diário IV" e "Os Poemas Possíveis"

17 de Novembro (de 1996)
"Novas notícias da fome, desta vez muito mais animadoras. A Conferência da FAO, reunida em Roma nestes dias, acaba de aprovar uma resolução no sentido de que sejam reduzidos para metade, até ao ano 2015, os 800 milhões de famintos que existem actualmente... 
Espera-se que os restantes 400 milhões possam morrer daqui até lá: ficaria resolvido dessa maneira o problema da fome no mundo."
in, "Cadernos de Lanzarote - Diário IV"
Caminho, página 255

Pode ser visualizado, via YouTube aqui

Poema "Fala do Velho do Restelo ao astronauta"

Aqui, na Terra, a fome continua, 
A miséria, o luto, e outra vez a fome. 

Acendemos cigarros em fogos de napalme 
E dizemos amor sem saber o que seja. 
Mas fizemos de ti a prova da riqueza, 
E também da pobreza, e da fome outra vez. 
E pusemos em ti sei lá bem que desejo 
De mais alto que nós, e melhor e mais puro. 

No jornal, de olhos tensos, soletramos 
As vertigens do espaço e maravilhas: 
Oceanos salgados que circundam 
Ilhas mortas de sede, onde não chove. 

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa 
Onde come, brincando, só a fome, 
Só a fome, astronauta, só a fome, 
E são brinquedos as bombas de napalme.

in, "Os Poemas Possíveis" (1966)

Impressões de Nova Iorque para o jornal "Público" - "Cadernos de Lanzarote Diário IV" (de 11 a 14 de Novembro de 1996)

11 de Novembro 
Posto a escrever para o Público as minhas impressões de Nova Iorque, eis o que saiu: 
«Será Nova Iorque realmente uma cidade? Não será antes um enorme estúdio de cinema, com ruas, avenidas, táxis, autocarros, ascensores, escadas rolantes e carruagens de metropolitano para nos levarem a cenários onde em cada momento se filmam todos os guiões possíveis, e alguns inimagináveis? Há empenas e gárgulas para a nova versão de Batman, cornijas e ventiladores para outro Blade Runner, torres e frontões para um Citizen Kane de nova geração. Há edifícios sem estilo classificável, em cuja contemplação o gosto de um europeu se desorienta, em que as referências estéticas se confundem, mas que os olhos não quereriam abandonar. O Hotel Theresa, na Rua 125, em pleno Harlem negro, é um desses. Visto de fora, mais parece um set desocupado, à espera dos actores e das câmaras para voltar a viver, fantasticamente, as velhas ficções da luz e da sombra. Na rua, alguns brancos olham surpreendidos a alta frontaria, depois vão ao Teatro Apollo, logo adiante, ver os cartazes, e aí sai-lhes ao caminho um homem de barbas, transportando em cada mão um saco de plástico, que lhes pergunta se são por Deus ou pelo Diabo. Não parecia estar muito interessado nas respostas, tal-vez por saber que, também ali na Rua 125, o verdadeiro sentido das coisas é não terem sentido nenhum...» 

«A água do lago é opaca, espessa, custa a crer que seja o nadar natural que faz avançar os patos. Provavelmente navegam a motor... Chove. As gotas miúdas que vão caindo reúnem-se nas folhas e nos ramos das árvores, depois deixam-se tombar em pingos grossos sobre as cabeças dos contemplativos. Nesta atmosfera cinzenta, Central Park parece libertar-se da reclusão, das grades que o limitam, dos arranha-céus que o rodeiam, e tornar-se num simples bosque do mundo. No alto da rocha que ergue do interior da terra um ombro gigantesco, é possível imaginar que ainda estamos em 1626, quando os índios algonquins estavam para vender a ilha por 50 florins, o mesmo que 24 dólares de hoje, e algum deles, olhando deste lugar a paisagem aberta, se perguntava, duvidoso, se o negócio iria valer a pena. Talvez seja a ele que se quis representar na estátua do caçador índio que faz companhia, em The Mall, a alguns varões ilustres do lado de cá do Atlântico, nada mais nada menos que Beethoven, Schiller, Walter Scott, Shakespeare, Cristóvão Colombo. Se assim foi, da memória dos índios é tudo quanto por aqui resta. A um outro que também foi mais ou menos índio, mas mais bem pago, John Lennon, ainda lhe põem flores...» 

"Blindness" 
Capa da edição EUA - "Ensaio sobre a Cegueira"

12 de Novembro 
Mais Nova Iorque: 
«Deveriam chamar-lhe a Avenida-da-Sorte-Que-Chegará-Um-Dia. Cobrir-se de diamantes, por exemplo, é o mais fácil que há no mundo: basta ir comer o croissant do pequeno-almoço diante das montras de Tiffany's, como fez a esperta da Audrey Hepburn, embora nem toda a gente goze do privilégio de ter um pescoço como o dela e sejam menos ainda os que aguentam um minuto levar na cara aquela expressão de felicidade tonta. Nova Iorque sem 5.a Avenida seria uma aldeia, vai-se a Nova Iorque porque está lá a 5.a Avenida. Se a 5.a Avenida estivesse em A-dos-Cunhados, iríamos a A-dos-Cunhados. A 5." Avenida, como a Pasárgada de Manuel Bandeira, tem tudo, e nem é preciso ser amigo do rei: basta mostrar um cartão de crédito (dourado por causa do status) e ter no banco saldo que se veja. Com pouco dinheiro, ou mesmo sem nenhum, onde se pode entrar é na New Yok Public Library, que, mais do que rica, é milionária em livros. Para quem goste, claro. O que não se recomenda é sentar-se a ler o Elogio da Loucura do Erasmo de Roterdão com os diamantes de Tiffany's pendurados ao pescoço. Que, em compensação, podem ser levados sem escândalo à Catedral de Saint Patrick, que tem cem metros de altura e é riquíssima em graças.» 

«A aldeia de Nova Iorque é o bairro de Greenwich Village, como a aldeia de Paris é o bairro do Marais e o bairro de Campo de Ourique a aldeia de Lisboa. Já se sabe que as diferenças são enormes, mas o que conta é serem aldeias todos eles, isto é, terem, cada um, uma maneira própria de viver, habitar e conversar com os vizinhos que não resulta das diversidades de língua, de religião ou de raça. Harlem, socialmente, sendo negro, não é uma aldeia, é um gueto, como China Town. O que define Greenwich Village... Digamos que Greenwich Village é uma coisa que se sente, que se percebe, que nos roça a pele com a sua respiração, que está feito de casas pequenas, de lojas antigas, de toldos, de flores, de ruas com princípio e fim à vista, e, se deve aos músicos, aos pintores e aos escritores que nele viveram alguma da harmonia, da cor e do silêncio em que se envolve, mais certo é ser, e sê-lo magnífica e humana-mente, um espaço. Um espaço que não se sabe por que milagre vem resistindo à gula do mundo financeiro e aos apetites das grandes empresas. Ou terá esta aldeia, afinal, mais poder do que discretamente faz parecer? Que existem associações de vizinhos, diz-se. Por que terão elas tanta força, e as dos Campos de Ourique tão pouca? Por que será?» 

«Little Italy é uma sombra do que foi. Depois da Segunda Guerra Mundial chegou a ter perto de duzentos mil habitantes, mas hoje vê-se reduzida a umas escassas ruas entaladas entre Soho e China Town, e tão mal defende o diminuto território que, numa esquina da Mulberry Street, do seu lado, já China Town, atravessando a linha de Canal Street que separou durante gerações chineses e italianos, tem instalada a sua primeira cabeça-de-ponte comercial. Não tarda que, nos restaurantes napolitanos que ainda restam, o spaghetti comece a ser servido com dois pauzinhos, em vez das peças bárbaras que são o garfo e a colher. Tudo parece a caminho de perder-se nesta Itália menor. O próprio S. Januário, apesar de serem dias de festa anual, não se encontra onde mandava a obrigação, no palanque arma-do ao ar livre, com bandeirinhas vermelhas da coca-cola, a receber as homenagens dos fiéis: recolheram-no à segurança da igreja, parece que por medo de que outros fiéis menos respeitosos ou mais necessitados viessem roubar-lhe os dólares que lhe foram pregados à túnica, em momentos de férvida mas passageira exaltação religiosa. Se ao menos uma gota de sangue seco fizesse o milagre de liquefazer-se em Little Italy...» 

"Baltasar and Blimunda" 
Capa da edição EUA - "Memorial do Convento" 

13 de Novembro 
Continua Nova Iorque: 
«Deve-se acreditar nos guias turísticos, tanto aqueles que são para ler como aqueles que são para ouvir: sempre dizem a verdade. Se um deles afirma, por exemplo, com intenções ditirâmbicas, que Nova Iorque não é a capital do estado de Nova Iorque nem a capital dos Esta-dos Unidos, acautelemo-nos de pensar logo que nos está a mentir ou a divertir-se à nossa custa, não seja que depois nos diga que Nova Iorque é, simplesmente, a capital do mundo, e tenhamos de dar-lhe razão. E se outro, tendo-nos levado a Wall Street, declarar, como a coisa mais natural da vida, que a população do globo é governada e dominada por este financial district, não duvide-mos, porque uma vez mais a verdade acabou de falar. Perceberemos então melhor a vaga impressão de que andávamos ali a fazer figura de parvos rematados, olhando tudo aquilo — o Stock Exchange, o Citybank, o Morgan Guaranty, o Chase Manhattan Bank, o Federal Reserve Bank of New York — como algo que, pelo facto de o podermos olhar, também nos pertencesse, como nos pertencem, sem serem nossos, o rio que passa, a montanha que está, o céu que continua. Wall Street é um monstro frio que, só de pensar, arrepia. As suas entranhas são homens frios. Um sol que me aqueça, por favor.» 

«É ela, The Lady. Tem uma coroa de raios na cabeça, levanta no braço um archote de chamas douradas... Naquele filme sem palavras do Chaplin, os emigrantes correram em massa à amurada do navio, rindo e fazendo gestos, como um coro de ópera a expressar sentimentos de alegria. A Liberdade estava ali a iluminar o caminho ao povo, que, logo, em colunas lentas, homens a um lado, mulheres a outro, vai passando pelo interrogatório dos serviços de imigração. Aos demasiado velhos, aos diminuídos, aos doentes sobretudo, não será permiti-da a entrada, mesmo que isso signifique separar famílias. Alguns irão ter de regressar no mesmo barco: The Lady olhará impassível. Hoje o ferry leva-nos a Staten Island, a ilha onde é tratado o lixo de Nova Iorque. Não é para ver o lixo que estamos navegando, mas a cidade que o produz. Poucos panoramas neste mundo serão tão deslumbrantes como a parte sul de Manhattan, o estupendo ciclorama a mover-se devagar, os planos mudando de profundidade, os arranha-céus a procurarem o melhor sítio para se mostrarem... Na água, colocadas em linha, de espaço a espaço, umas bóias movem-se com as ondas e fazem soar o sino que têm suspenso. A beleza do que se vê cede ao mistério do que se ouve.» 

«A inscrição da placa de bronze, ao lado da porta, informa: Trotsky viveu aqui. Estamos no East Village, onde nos anos 60 floresceram os hippies e agora prosperam os promotores imobiliários que vão empurrando para Brooklin e New Jersey os artistas e os jovens. Trotsky desceu os degraus desta casa para ir à Biblioteca da 5.a Avenida, acompanhado certamente, muitas vezes, por Bukharine. Seria interessante averiguar (se é que não se sabe já: os arquivos existem para satisfazer curiosidades) que livros foram os que consultou ali durante o tempo da sua residência em Nova Iorque, que ideias alheias terá incorporado às suas, ou, pelo contrário, rejeitou. Seria interessante, mas gratuito. O pensamento socialista (digo pensamento) é hoje um campo de destroços, um amontoado de ossos em que as formas originais mal se reconhecem e onde só a imagem de Marx se distingue, precisa, nítida, ao fundo. Mais do que reconstituir agora um esqueleto e cobri-lo de uma falsa pele, mais do que animá-lo com mecanismos que repetiriam os mesmos movimentos e instalá-lo no museu, imaginando tê-lo na vida, o que urge é varrer o terreno e abri-lo outra vez à invenção. Sem esquecer nada, sobretudo os erros.» 

"The Gospel According to Jesus Christ" 
Capa da edição EUA - "Evangelho segundo Jesus Cristo"

14 de Novembro 
Fim de Nova Iorque: 
«Numa hora de crepúsculo, com a lua já nascida, um casal desses de cinema, um casal a fingir que o era, veio sentar-se neste banco a olhar a ponte de Queensboro. É a última imagem de Manhattan. O diálogo não tem importância (as palavras de Woody Allen — «Esta cidade é magnífica, digam o que disserem» — tanto servi-riam para Lisboa como servem para Nova Iorque), o que tem importância é o silêncio do olhar enquanto a boca fala. São os momentos mais fugazes do dia, aqueles que precisamente mais desejaríamos que não findassem, a luz que pouco a pouco vai esmorecendo, que ainda se prende à flor da água, na folhagem mais alta duma árvore, no perfil do rosto que se move. Um dia que des-de a manhã até à noite não fosse mais que uma contínua luz do crepúsculo vespertino, talvez pudesse mudar os seres humanos e o destino do mundo... Muitos outros casais, de verdade, ou por suas razões fingindo, se sentaram neste mesmo banco a esta hora, alguns só porque viram Manhattan e quiseram imaginar-se como Woody Allen e Muriel Hemingway, repetir o pobre diálogo deles, sem compreenderem que esta luz pede apenas que a olhem. Admite palavras, é certo, mas com a condição de que não ofendam o silêncio.» 

«A Broadway é uma rua comprida, com uns 20 quilómetros, que percorre Manhattan de norte a sul. Se alguém nos disser que a conhece bem, de duas uma: ou é amante da marcha e veio a Nova Iorque fazer o que com menos despesa podia ter feito na sua terra, isto é, andar, ou, mais provável, chama Broadway a uma área que tem Times Square como centro e os limites nas Ruas 42 e 45. Os nova-iorquinos chamam-lhe Theater District, o que aclara melhor as coisas: a gente vem aqui para se divertir. (No extremo oriental da Rua 42 está o edifício das Nações Unidas, onde a diversão é pouca, mas o teatro muito.) De dia, Times Square parece um estaleiro, com os telhados e as fachadas chupados pelas armações metálicas dos anúncios. À noite só há lugar para a luz, ali as pessoas tornam-se insignificantes, perdem identidade e sentido, como se não passassem de figuras menores de um espectáculo pobre. A excitação é artificial, calculada. Porta sim, porta não, relampejantes como naves espaciais, esfuziantes de néon, há teatros de strip-tease e cinemas pomo: a vida é fácil em Times Square. Um grupo de rap, no passeio, ensaia passos à espera de que se junte público. Em Times Square tudo é o que parece. Mesmo Victor/Victoria...» 

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 248 a 255 (de 11 a 14 de Novembro de 1996)

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Recuperação do artigo de Rosa María Artal - "Qué diría hoy Saramago" publicado no "El Diario" em 26/01/2013

Rosa María Artal
"Periodista y escritora. En 2008 terminé una larga carrera en TVE. Como presentadora de informativos mis destinos han sido TVE Aragón -en donde comencé-, TD3 de la Primera en el 83, Informe Semanal y Telediario Internacional. En RNE dirigí el programa de las noches de los sábados Dos en la Madrugada. Y colaboré en el de Andrés Aberasturi, La leyenda continúa con El diario de una mujer alta. He publicado varios libros, de literatura y periodísticos. Destaco entre estos últimos, 11M-14M, onda expansiva y España, ombligo del mundo que salió en noviembre de 2008. En el último año promoví, coordiné y escribí un capítulo de Reacciona, el libro de no ficción español más vendido en 2011, y lo mismo con Actúa, su evolución, publicado el 12 de abril. Así mismo, escribí La energía liberada, con una amplia descripción de la crisis, sus causas y sus soluciones."


Publicado por Rosa María Artal, no El Diario (Espanha) em 26/01/2013, e pode ser consultado aqui em http://www.eldiario.es/cultura/diria-hoy-Saramago_0_94141116.html

"¿Qué diría José Saramago de lo que nos está tocando vivir? Cabe preguntárselo ahora que nos van faltando referentes y el silencio se adueña de muchos que podrían hablar. Hace poco más de dos años y medio que nos falta y su figura crece –si cabe- en su obra viva, pero si quieren realmente sentir a Saramago, premio Nobel de Literatura, escritor, político, hombre, idea, nada como visitarle en la Fundación que lleva su nombre en Lisboa."

Árbol y Casa dos Bicos, Lisboa. / Rosa María Artal

"Las cenizas de José Saramago están enterradas en plena calle, a la puerta de Casa dos Bicos donde, desde unos pocos meses, funciona la Fundación en su memoria. Bajo un olivo centenario traído de Azinhaga, su aldea natal. Y con tierra de Lanzarote, la isla canaria donde vivió porque vientos de incomprensión por su obra le habían alejado de Portugal.  En particular por El Evangelio según Jesucristo (1991). Una frase de Memorial del Convento fija en el suelo un lema simbólico: “No subió a las estrellas porque pertenecía a la tierra”. Y ahí está. Con todo aquél que se acerque."

Pilar del Río, Presidenta de la Fundación José Saramago. / Rosa María Artal

"Pilar del Río, su viuda, desciende acogedora por las escaleras de la Casa dos Bicos, donde subir es leer palabras del escritor. Mujer de fuerza y determinación envidiables, preside la Fundación y, sobre todo, la cuida y la mima. Acude de guía espontánea para los visitantes, entre reunión y reunión para mantener un proyecto que no cuenta con ayudas públicas, salvo el edificio cedido por el Ayuntamiento. Y es tal su dedicación que puede coger una bayeta para limpiar unas motas de polvo en el escritorio de Vasco Gonçalves, general de abril, Presidente de la República, companheiro do povo, que también está ahí con todas sus cosas. Junto al auditorio y la biblioteca."

Pilar del Río, en el escritorio de Vasco Gonçalves. / Rosa María Artal

"La inmersión en Saramago permite pasear por sus libros, sus manuscritos, entrevistas, fotos, o el mágico momento de la entrega del Nobel, otorgado por “volver comprensible una realidad huidiza, con parábolas sostenidas por la imaginación, la compasión y la ironía”. Cuando José recordó: “El hombre más sabio que he conocido en toda mi vida no sabía leer ni escribir”, su abuelo… descalzo. Una vida dura que se inicia en el seno de una familia campesina sin tierras y sin estudios. Como tantos otros portugueses y españoles, Saramago no pudo ni finalizar el colegio por falta de medios. Recuerdo que a mi inteligente padre también le ocurrió. A mi madre, como mujer, tanto o más. Pero el coraje, a veces, ayuda a remontar. Desde el colegio su ideario se labra en tres valores: responsabilidad, esfuerzo, trabajo. Minuciosidad también, la misma de Pilar, la que se observa en los detallados diarios del escritor."

 Diarios de José Saramago. / Rosa María Artal

"Ensayo sobre la ceguera, Ensayo sobre la lucidez, La balsa de piedra, La caverna, El hombre duplicado, El viaje del elefante, Memorial del convento, Historia del cerco de Lisboa (donde a través de la ciudad se encuentran Pilar y José), Caín, la última y todo lo que se quiera. Las ideas magníficas, con frases brillantes y rotundas, que, como él decía, están escritas “para desasosegar”. Y también para iluminar y elevar. Toda la obra, analizada, detallada, con los manuscritos originales. Como éste de una más de sus obras míticas: El año de la muerte de Ricardo Reis hablando de otro gigante: Pessoa."

Manuscrito de "El año de la muerte de Ricardo Reis". / Rosa María Artal

"¿Qué diría hoy Saramago? Lo dijo ya en toda su obra y declaraciones. Plenamente vigentes, anticipatorias. “Creo que nos quedamos ciegos, creo que estamos ciegos, ciegos que ven, ciegos que, viendo, no ven”. “Vivimos una crisis moral”. O, apelando a la lucidez, que las soluciones partirán de la sociedad, nadie nos salvará de otro modo. Y los caminos, tomados sabiendo que “El pensamiento correcto es un veneno social”."

Periódicos. / Rosa María Artal

"Zambullirse de nuevo en José Saramago vuelve a ser un revulsivo de conciencias, pero también aporta el sosiego de asistir a una obra plena y culminada. Pilar, la mujer casi alada en felicidad que acompañó al Nobel en Estocolmo, sigue ahí, a pie de tierra, cultivando una labor única. Seguramente en la misma paz. “Nuestra única defensa contra la muerte es el amor" dijo un día de 2005 Samarago. Pude comprobar cómo esa frase cierta se engrandece en la Casa dos Bicos, en toda Lisboa."

Graffiti con José y Pilar. / Rosa María Artal


"Blimunda" Revista Digital da FJS já disponível para ser descarregada gratuitamente (#48 - Maio 2016)

Sinopse de apresentação, via YouTube, aqui

A presente edição pode ser descarregada, via página da Fundação José Saramago, aqui

"Uma das características da época atual é a efemeridade. Como afirma o sociólogo polaco Zigmunt Bauman, “vivemos tempos líquidos”. Por isso, a sobrevivência, por décadas, de projetos culturais é motivo de celebração. Nesta edição de maio, a Blimunda conversou com Tiago Gomes, editor da Bíblia, publicação criada em 1996 e que nestas duas décadas de vida venceu desconfianças, crises e as dificuldades naturais que uma pequena publicação enfrenta. Igualmente louvável é a existência, já há 50 anos, do programa de rádio Cinco Minutos de Jazz. Além de conversar com José Duarte, autor e voz do programa desde a sua primeira emissão, a Blimunda escutou alguns importantes nomes deste género musical sobre a importância do histórico programa.

A Blimunda deste mês visitou também a Biblioteca e Arquivo Regional de Ponta Delgada e de lá trouxe histórias e imagens que fazem viajar no tempo e ajudam a contar a história daquela ilha portuguesa.

Há ainda muitos outros destaques. Andrea Zamorano ocupa a sua secção mensal com um conto ambientado no Rio de Janeiro. Miguel Horta mostra os seus Livros do Desassossego. A editora Oficina dos Livros abre as suas portas para uma visita guiada. Na secção Saramaguiana recuperamos um texto de Mário Castrim, escrito em 1974, sobre José Saramago, que já à época e nas palavras de Castrim «não necessita de apresentação».

Boas leituras, e até Junho!"

Capa da edição #48 - Maio de 2016

sexta-feira, 20 de maio de 2016

5.° Congresso do sindicato Comisiones Obreras de Canárias - Entrevista para a revista Tierra Canaria (#3 - 1996)

Entrevista publicada nos "Cadernos de Lanzarote Diário IV"

7 de Outubro (de 1996)
Por ocasião do 5.° Congresso do sindicato Comisiones Obreras de Canárias, entrevistou-me a revista Tierra Canaria. Como me pareceu que a conversa não ficaria a destoar nestes Cadernos (bem pelo contrário), aqui a deixo: 

Como se materializa o compromisso do artista, do escritor ou do intelectual com o seu tempo e a sociedade em que está inserido? 
Gostaria de dizer que as minhas origens camponesas determinaram as minhas ideias políticas, mas isso, já o sabemos, não é uma condição necessária nem suficiente. Seja como for, desde muito novo compreendi que um mundo assente na desigualdade de oportunidades e na exploração de um ser humano por outro, jamais será um mundo justo. Compreendi muito cedo que é um erro pedir «mais justiça social»: o que há que exigir é «justiça social» simplesmente, porque onde exista um «mais» sempre haverá a possibilidade de um «menos», isto é, a possibilidade de reduções sociais selectivas ou generalizadas, como está a acontecer agora mesmo. No meu oficio de escritor, penso não me ter afastado nunca da minha consciência de cidadão. Defendo que aonde vai um, deve ir o outro. Não recordo ter escrito uma só palavra que estivesse em contradição com as minhas convicções políticas, mas isso não significa que alguma vez tenha posto a literatura ao serviço da minha ideologia. O que significa, isso sim, é que no momento em que escrevo estou expressando a totalidade da pessoa que sou. 

Explique-nos, do ponto de vista social, a alegoria da cegueira de que trata o seu último livro. 
No meu romance Ensaio sobre a Cegueira tentei, recorrendo à alegoria, dizer ao leitor que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a excepção, mas a regra. Tentei dizer que a nossa razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para chegar a ser autenticamente humanos e que não creio que seja boa a direcção em que vamos. 

Estamos vivendo a construção de uma Europa onde a classe trabalhadora vê como aumenta o desemprego, como se reduzem os investimentos sociais, como se deteriora o serviço público de saúde... Que pensa a este respeito? 
Isso a que chamamos «construção duma Europa uni-da» não passa duma falácia de mau gosto. A relação de poder entre os diversos Estados europeus continua a ser a que foi sempre: países que mandam, países que obedecem. Que aqueles, por táctica, simulem diluir a sua autoridade e o seu domínio numa aparência de consenso geral; que estes, pelo pouco que lhes restou de soberania nacional, finjam discutir de igual para igual - é algo que só pode enganar os ingénuos. O que sucede é que ninguém se atreve a dizer que a rainha Europa vai nua. Nem sequer o facto de levar atrás de si quase vinte milhões de desempregados foi suficiente para desencadear um protesto digno desse nome. No meio de tudo isto, o movimento sindical europeu dá mostras de não ter outra estratégia que não seja recolher agradecido (a isso chamam negociar...) as esmolas de um capitalismo triunfante. 

Que opina das políticas de liberalização desenfreada, de diminuição da capacidade do Estado, da privatização das empresas públicas? 
Desgraçadamente estamos a passar das promessas do Estado-providência à realidade que é o Estado-vampiro. Ao mesmo tempo que os impostos directos e indirectos sobem, o Estado foge às suas obrigações e deixa os cidadãos nas mãos de empresas privadas que se regem exclusivamente por uma lógica de lucro. Auguro que mais cedo ou mais tarde, o cidadão terá de fazer a si mesmo a pergunta: «A quem está servindo um Estado que não nos serve?» Então alguma coisa poderá começar a mudar. 

Estamos vivendo momentos em que, rapidamente, se deterioram valores como o princípio de solidariedade, se afastam as possibilidades e esperanças dos que vi-vem de um salário quanto à distribuição das riquezas... Qual é a sua opinião? 
As pessoas vivem hoje sob a ameaça permanente do desemprego. Numa situação como esta não é fácil pensar em algo mais que sobreviver. Talvez isso ex-plique a diminuição da capacidade mobilizadora dos sindicatos. Por outro lado, as indústrias de divertimento de massas, em particular a televisão e o futebol, vão anulando de forma insidiosa o que ainda restava de espírito cívico e de vontade de participação. Há milhões de espanhóis para quem o Barça e o Real Madrid são importantes todos os dias da semana, há milhões de espanhóis para quem Espanha não é importante um único dia do ano... 

Por onde considera que deve ir a esquerda social depois da cultura do pragmatismo que nos leva a uma suposta queda dos valores das utopias? 
Deixemos de falar de utopias, se continuamos a chamar utopia ao direito de viver com dignidade, sem mais temores que os que resultam da precariedade da própria existência. Não se pode continuar a falar de esquerda quando os partidos socialistas europeus se converteram em partidos de centro: o Partido Trabalhista britânico acaba de mostrar até que ponto a ideia de socialismo foi pervertida. Há que inventar, sobre as novas realidades económicas e sociais, uma esquerda nova, herdeira e continuadora das melhores tradições socialistas, capaz de levar os trabalhadores a uma reflexão sobre a situação concreta de um mundo sob o domínio de um neoliberalismo para quem o ser humano deixou de ter qualquer importância. 

Os parâmetros de convergência marcados em Maastricht afectam directamente a Portugal e a Espanha. V. que conhece a realidade de ambos os países, que consequências trarão às suas respectivas classes trabalhadoras? 
Numa palavra: as piores. Todos os governos da Europa o sabem, mas todos o calam. Diante disso, que fazem os sindicatos? Em meu entender, nada que se veja. Com perdão. 

in,. "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 232 a 236 (7/out/1996)

quinta-feira, 19 de maio de 2016

"Prefácio para um livro" - "Cadernos de Lanzarote Diário IV" (03/10/1996)

3 de Outubro (de 1996)
Prefácio para um livro: 
Antes de construir o primeiro barco, o homem sentou-se na praia a olhar o mar. Ali esteve todo um dia e toda uma noite, a ver como subia e baixava a maré, a ver levantarem-se ao largo as ondas, a ouvir o fragor delas quando se desfaziam na linha de rebentação, e depois o suspiro delicado da espuma ao ser sorvida pela areia. A necessidade o trouxera. O alimento que a terra tantas vezes lhe negou, pródiga de secas, pestes e dilúvios, o mar lho oferecia sem medida, não pedindo, em troca, mais do que a simples moeda da coragem. E também o dom da invenção e a aventura do conhecimento. Juntar umas tábuas, tecer uma rede, moldar um anzol, impelir o barco para a água, de pouco iria servir-lhe sem a lição das correntes e dos ventos, das mudanças do céu, do passo das nuvens, do estremecimento dos cardumes. Para tanto, um homem sozinho não bastaria. Outros homens chegaram, e mulheres, e crianças, o estrondo contínuo das vagas e os silvos do ar amedrontaram a alguns e fizeram-nos recuar para as terras do interior, mas esses, um dia, vindo olhar de cima das falésias a aldeia que se formara na franja de areia, deram com o mesmo mar, sereno agora, brilhando ao sol como uma dança de cristais, as ondas apenas sussurrando sob o voo das gaivotas. Então desceram. Fugir da morte pode tornar-se num modo de fugir da vida. 
As personagens que povoam José, o romance de Armando Palacio Valdés, são descendentes daqueles homens que diante do mar temeram e ousaram, aqueles que fizeram o barco e lançaram a rede, que arrancaram o peixe às sombras submarinas, que quantas vezes se afundaram nelas, de olhos abertos e com os pulmões cheios de água. Então o pranto humano teve de soar mais forte na natureza que todos os tufões nascidos dela, simplesmente porque o homem é o único animal capaz de chorar. E de sorrir. É diante do mar - do mar de Rodillero, do mar do mundo - que o riso e a lágrima assumem uma importância absoluta. Dir-se-á que mais profundamente a assumiriam diante do universo, mas esse, digo eu, está demasiado longe, fora do alcance duma compreensão comum. O mar é o universo perto de nós. 

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, página 230 e 231 (03/10/1996)