Posto a escrever para o Público as minhas impressões de Nova Iorque, eis o que saiu:
«Será Nova Iorque realmente uma cidade? Não será antes um enorme estúdio de cinema, com ruas, avenidas, táxis, autocarros, ascensores, escadas rolantes e carruagens de metropolitano para nos levarem a cenários onde em cada momento se filmam todos os guiões possíveis, e alguns inimagináveis? Há empenas e gárgulas para a nova versão de Batman, cornijas e ventiladores para outro Blade Runner, torres e frontões para um Citizen Kane de nova geração. Há edifícios sem estilo classificável, em cuja contemplação o gosto de um europeu se desorienta, em que as referências estéticas se confundem, mas que os olhos não quereriam abandonar. O Hotel Theresa, na Rua 125, em pleno Harlem negro, é um desses. Visto de fora, mais parece um set desocupado, à espera dos actores e das câmaras para voltar a viver, fantasticamente, as velhas ficções da luz e da sombra. Na rua, alguns brancos olham surpreendidos a alta frontaria, depois vão ao Teatro Apollo, logo adiante, ver os cartazes, e aí sai-lhes ao caminho um homem de barbas, transportando em cada mão um saco de plástico, que lhes pergunta se são por Deus ou pelo Diabo. Não parecia estar muito interessado nas respostas, tal-vez por saber que, também ali na Rua 125, o verdadeiro sentido das coisas é não terem sentido nenhum...»
«A água do lago é opaca, espessa, custa a crer que seja o nadar natural que faz avançar os patos. Provavelmente navegam a motor... Chove. As gotas miúdas que vão caindo reúnem-se nas folhas e nos ramos das árvores, depois deixam-se tombar em pingos grossos sobre as cabeças dos contemplativos. Nesta atmosfera cinzenta, Central Park parece libertar-se da reclusão, das grades que o limitam, dos arranha-céus que o rodeiam, e tornar-se num simples bosque do mundo. No alto da rocha que ergue do interior da terra um ombro gigantesco, é possível imaginar que ainda estamos em 1626, quando os índios algonquins estavam para vender a ilha por 50 florins, o mesmo que 24 dólares de hoje, e algum deles, olhando deste lugar a paisagem aberta, se perguntava, duvidoso, se o negócio iria valer a pena. Talvez seja a ele que se quis representar na estátua do caçador índio que faz companhia, em The Mall, a alguns varões ilustres do lado de cá do Atlântico, nada mais nada menos que Beethoven, Schiller, Walter Scott, Shakespeare, Cristóvão Colombo. Se assim foi, da memória dos índios é tudo quanto por aqui resta. A um outro que também foi mais ou menos índio, mas mais bem pago, John Lennon, ainda lhe põem flores...»
"Blindness"
Capa da edição EUA - "Ensaio sobre a Cegueira"
12 de Novembro
Mais Nova Iorque:
«Deveriam chamar-lhe a Avenida-da-Sorte-Que-Chegará-Um-Dia. Cobrir-se de diamantes, por exemplo, é o mais fácil que há no mundo: basta ir comer o croissant do pequeno-almoço diante das montras de Tiffany's, como fez a esperta da Audrey Hepburn, embora nem toda a gente goze do privilégio de ter um pescoço como o dela e sejam menos ainda os que aguentam um minuto levar na cara aquela expressão de felicidade tonta. Nova Iorque sem 5.a Avenida seria uma aldeia, vai-se a Nova Iorque porque está lá a 5.a Avenida. Se a 5.a Avenida estivesse em A-dos-Cunhados, iríamos a A-dos-Cunhados. A 5." Avenida, como a Pasárgada de Manuel Bandeira, tem tudo, e nem é preciso ser amigo do rei: basta mostrar um cartão de crédito (dourado por causa do status) e ter no banco saldo que se veja. Com pouco dinheiro, ou mesmo sem nenhum, onde se pode entrar é na New Yok Public Library, que, mais do que rica, é milionária em livros. Para quem goste, claro. O que não se recomenda é sentar-se a ler o Elogio da Loucura do Erasmo de Roterdão com os diamantes de Tiffany's pendurados ao pescoço. Que, em compensação, podem ser levados sem escândalo à Catedral de Saint Patrick, que tem cem metros de altura e é riquíssima em graças.»
«A aldeia de Nova Iorque é o bairro de Greenwich Village, como a aldeia de Paris é o bairro do Marais e o bairro de Campo de Ourique a aldeia de Lisboa. Já se sabe que as diferenças são enormes, mas o que conta é serem aldeias todos eles, isto é, terem, cada um, uma maneira própria de viver, habitar e conversar com os vizinhos que não resulta das diversidades de língua, de religião ou de raça. Harlem, socialmente, sendo negro, não é uma aldeia, é um gueto, como China Town. O que define Greenwich Village... Digamos que Greenwich Village é uma coisa que se sente, que se percebe, que nos roça a pele com a sua respiração, que está feito de casas pequenas, de lojas antigas, de toldos, de flores, de ruas com princípio e fim à vista, e, se deve aos músicos, aos pintores e aos escritores que nele viveram alguma da harmonia, da cor e do silêncio em que se envolve, mais certo é ser, e sê-lo magnífica e humana-mente, um espaço. Um espaço que não se sabe por que milagre vem resistindo à gula do mundo financeiro e aos apetites das grandes empresas. Ou terá esta aldeia, afinal, mais poder do que discretamente faz parecer? Que existem associações de vizinhos, diz-se. Por que terão elas tanta força, e as dos Campos de Ourique tão pouca? Por que será?»
«Little Italy é uma sombra do que foi. Depois da Segunda Guerra Mundial chegou a ter perto de duzentos mil habitantes, mas hoje vê-se reduzida a umas escassas ruas entaladas entre Soho e China Town, e tão mal defende o diminuto território que, numa esquina da Mulberry Street, do seu lado, já China Town, atravessando a linha de Canal Street que separou durante gerações chineses e italianos, tem instalada a sua primeira cabeça-de-ponte comercial. Não tarda que, nos restaurantes napolitanos que ainda restam, o spaghetti comece a ser servido com dois pauzinhos, em vez das peças bárbaras que são o garfo e a colher. Tudo parece a caminho de perder-se nesta Itália menor. O próprio S. Januário, apesar de serem dias de festa anual, não se encontra onde mandava a obrigação, no palanque arma-do ao ar livre, com bandeirinhas vermelhas da coca-cola, a receber as homenagens dos fiéis: recolheram-no à segurança da igreja, parece que por medo de que outros fiéis menos respeitosos ou mais necessitados viessem roubar-lhe os dólares que lhe foram pregados à túnica, em momentos de férvida mas passageira exaltação religiosa. Se ao menos uma gota de sangue seco fizesse o milagre de liquefazer-se em Little Italy...»
"Baltasar and Blimunda"
Capa da edição EUA - "Memorial do Convento"
13 de Novembro
Continua Nova Iorque:
«Deve-se acreditar nos guias turísticos, tanto aqueles que são para ler como aqueles que são para ouvir: sempre dizem a verdade. Se um deles afirma, por exemplo, com intenções ditirâmbicas, que Nova Iorque não é a capital do estado de Nova Iorque nem a capital dos Esta-dos Unidos, acautelemo-nos de pensar logo que nos está a mentir ou a divertir-se à nossa custa, não seja que depois nos diga que Nova Iorque é, simplesmente, a capital do mundo, e tenhamos de dar-lhe razão. E se outro, tendo-nos levado a Wall Street, declarar, como a coisa mais natural da vida, que a população do globo é governada e dominada por este financial district, não duvide-mos, porque uma vez mais a verdade acabou de falar. Perceberemos então melhor a vaga impressão de que andávamos ali a fazer figura de parvos rematados, olhando tudo aquilo — o Stock Exchange, o Citybank, o Morgan Guaranty, o Chase Manhattan Bank, o Federal Reserve Bank of New York — como algo que, pelo facto de o podermos olhar, também nos pertencesse, como nos pertencem, sem serem nossos, o rio que passa, a montanha que está, o céu que continua. Wall Street é um monstro frio que, só de pensar, arrepia. As suas entranhas são homens frios. Um sol que me aqueça, por favor.»
«É ela, The Lady. Tem uma coroa de raios na cabeça, levanta no braço um archote de chamas douradas... Naquele filme sem palavras do Chaplin, os emigrantes correram em massa à amurada do navio, rindo e fazendo gestos, como um coro de ópera a expressar sentimentos de alegria. A Liberdade estava ali a iluminar o caminho ao povo, que, logo, em colunas lentas, homens a um lado, mulheres a outro, vai passando pelo interrogatório dos serviços de imigração. Aos demasiado velhos, aos diminuídos, aos doentes sobretudo, não será permiti-da a entrada, mesmo que isso signifique separar famílias. Alguns irão ter de regressar no mesmo barco: The Lady olhará impassível. Hoje o ferry leva-nos a Staten Island, a ilha onde é tratado o lixo de Nova Iorque. Não é para ver o lixo que estamos navegando, mas a cidade que o produz. Poucos panoramas neste mundo serão tão deslumbrantes como a parte sul de Manhattan, o estupendo ciclorama a mover-se devagar, os planos mudando de profundidade, os arranha-céus a procurarem o melhor sítio para se mostrarem... Na água, colocadas em linha, de espaço a espaço, umas bóias movem-se com as ondas e fazem soar o sino que têm suspenso. A beleza do que se vê cede ao mistério do que se ouve.»
«A inscrição da placa de bronze, ao lado da porta, informa: Trotsky viveu aqui. Estamos no East Village, onde nos anos 60 floresceram os hippies e agora prosperam os promotores imobiliários que vão empurrando para Brooklin e New Jersey os artistas e os jovens. Trotsky desceu os degraus desta casa para ir à Biblioteca da 5.a Avenida, acompanhado certamente, muitas vezes, por Bukharine. Seria interessante averiguar (se é que não se sabe já: os arquivos existem para satisfazer curiosidades) que livros foram os que consultou ali durante o tempo da sua residência em Nova Iorque, que ideias alheias terá incorporado às suas, ou, pelo contrário, rejeitou. Seria interessante, mas gratuito. O pensamento socialista (digo pensamento) é hoje um campo de destroços, um amontoado de ossos em que as formas originais mal se reconhecem e onde só a imagem de Marx se distingue, precisa, nítida, ao fundo. Mais do que reconstituir agora um esqueleto e cobri-lo de uma falsa pele, mais do que animá-lo com mecanismos que repetiriam os mesmos movimentos e instalá-lo no museu, imaginando tê-lo na vida, o que urge é varrer o terreno e abri-lo outra vez à invenção. Sem esquecer nada, sobretudo os erros.»
"The Gospel According to Jesus Christ"
Capa da edição EUA - "Evangelho segundo Jesus Cristo"
Fim de Nova Iorque:
«Numa hora de crepúsculo, com a lua já nascida, um casal desses de cinema, um casal a fingir que o era, veio sentar-se neste banco a olhar a ponte de Queensboro. É a última imagem de Manhattan. O diálogo não tem importância (as palavras de Woody Allen — «Esta cidade é magnífica, digam o que disserem» — tanto servi-riam para Lisboa como servem para Nova Iorque), o que tem importância é o silêncio do olhar enquanto a boca fala. São os momentos mais fugazes do dia, aqueles que precisamente mais desejaríamos que não findassem, a luz que pouco a pouco vai esmorecendo, que ainda se prende à flor da água, na folhagem mais alta duma árvore, no perfil do rosto que se move. Um dia que des-de a manhã até à noite não fosse mais que uma contínua luz do crepúsculo vespertino, talvez pudesse mudar os seres humanos e o destino do mundo... Muitos outros casais, de verdade, ou por suas razões fingindo, se sentaram neste mesmo banco a esta hora, alguns só porque viram Manhattan e quiseram imaginar-se como Woody Allen e Muriel Hemingway, repetir o pobre diálogo deles, sem compreenderem que esta luz pede apenas que a olhem. Admite palavras, é certo, mas com a condição de que não ofendam o silêncio.»
«A Broadway é uma rua comprida, com uns 20 quilómetros, que percorre Manhattan de norte a sul. Se alguém nos disser que a conhece bem, de duas uma: ou é amante da marcha e veio a Nova Iorque fazer o que com menos despesa podia ter feito na sua terra, isto é, andar, ou, mais provável, chama Broadway a uma área que tem Times Square como centro e os limites nas Ruas 42 e 45. Os nova-iorquinos chamam-lhe Theater District, o que aclara melhor as coisas: a gente vem aqui para se divertir. (No extremo oriental da Rua 42 está o edifício das Nações Unidas, onde a diversão é pouca, mas o teatro muito.) De dia, Times Square parece um estaleiro, com os telhados e as fachadas chupados pelas armações metálicas dos anúncios. À noite só há lugar para a luz, ali as pessoas tornam-se insignificantes, perdem identidade e sentido, como se não passassem de figuras menores de um espectáculo pobre. A excitação é artificial, calculada. Porta sim, porta não, relampejantes como naves espaciais, esfuziantes de néon, há teatros de strip-tease e cinemas pomo: a vida é fácil em Times Square. Um grupo de rap, no passeio, ensaia passos à espera de que se junte público. Em Times Square tudo é o que parece. Mesmo Victor/Victoria...»
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 248 a 255 (de 11 a 14 de Novembro de 1996)
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 248 a 255 (de 11 a 14 de Novembro de 1996)
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