Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 11 de março de 2016

"Carta aos meus Avós - A partir de Saramago" de André Gois Raposo e Maria Alice Amaro Gois

Pode ser assistido via YouTube, aqui

"Carta aos meus Avós - A partir de Saramago"

"Uma homenagem às avós, aos avôs, aos avós. 
Uma carta que tem as palavras que não são as deles, mas que são para eles. 
A partir da brilhante crónica 
"Carta para Josefa, minha avó" escrita por José Saramago."

Com: André Gois Raposo & Maria Alice Amaro Gois
Realização: André Raposo & João Descalço
Assistente de Realização: Cristiana Morais
Cinematografia & Edição: João Descalço

No ano de 1968, José Saramago publicou no jornal "A Capital", de Lisboa, a crónica "Carta a Josefa", minha avó. Anos mais tarde, ela seria publicada no livro "Deste Mundo e do Outro". Abaixo segue a reprodução da página do jornal A Capital em que foi originalmente publicado o texto.



Link original  para consulta, aqui
em http://www.josesaramago.org/carta-josefa-minha-avo-1978/

"Carta para Josefa, minha avó"

"Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e de formadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com  isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua." 

José Saramago, jornal A Capital, 1968

"Recordando a José. Voces de mujer en la obra de Saramago" - Homenagem realizada pela "Alfaguara" e "Casa de América" (14/06/2011)

Pode ser visualizado via YouTube, aqui 
em https://www.youtube.com/watch?v=vwaxXsGszkQ

"Cuando se cumple un año de la pérdida de José Saramago, la editorial Alfaguara y Casa de América hemos querido rendir tributo a este icono de literatura mundial con un homenaje que lleva por título "Recordando a José. Voces de mujer en la obra de Saramago".

El acto, celebrado el pasado 14 de junio de 2011, consistió en una lectura dramatizada de una selección de textos del propio autor realizada por su esposa y traductora, Pilar del Río, y por el director teatral Antonio Castro.

Las actrices Aitana Sánchez-Gijón, Pilar Bardem y Pastora Vega, junto a la bailaora María Pagés, acompañaron a Pilar del Río en la lectura de fragmentos de Ensayo sobre la ceguera, Memorial del convento o Las intermitencias de la muerte, entre otras obras del escritor portugués. El acto fue coordinado por la directora teatral mexicana Gema Aparicio."

Atentados de 11 de Março de 2004 - “O rosto de um povo ferido” - Palavras de José Saramago (Madrid)


“O rosto de um povo ferido” (José Saramago)

"Em Espanha, solidarizar-se é um verbo que todos os dias se conjuga nos seus três tempos: presente, passado e futuro. A lembrança da solidariedade passada reforça a solidariedade de que o presente necessita, e ambas, juntas, preparam o caminho para que a solidariedade, no futuro, volte a manifestar-se em toda sua grandeza. O dia 11 de março não foi só um dia de dor e de lágrimas, foi também um dia em que o espírito solidário do povo espanhol ascendeu ao sublime com uma dignidade que me tocou profundamente e que ainda hoje me emociona quando o recordo. O belo não é só uma categoria do estético, podemos encontrá-lo também na ação moral. Por isso digo que poucas vezes, em qualquer lugar do mundo, o rosto de um povo ferido pela tragédia terá alcançado tanta beleza."

Atentados de 11 de Março de 2004 nos comboios suburbanos 
da linha de Alcalá de Henares, em Madrid,