Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 31 de março de 2016

Roteiro de leitura sobre a obra "Levantado do Chão"

Um roteiro não nos mostra o local físico, porém, 
nos orienta pelos caminhos a percorrer até ao seu destino.
São 68 pontos de interesse, onde se acompanham os caminhos percorridos pelas gerações da família "Mau-Tempo" entregues à vida escrava do campo, sob tortura dos latifundiários e a conivência da Igreja, aqui representada pelo padre Agamedes, e a vigilância da guarda e PIDE, 
criadas para proteger os grandes senhores das terras 
É a minha visão sobre a obra e a experiência de a tornar a ler. Apelidei-a de "Ensaio sobre a Penúria"
Rui Santos (3 a 30 de Março de 2016)

Edição da Porto Editora com titulo escrito por Mia Couto

Sinopse da obra, via Fundação José Saramago, aqui
"A transformação social. A contestação. Personagens em diálogos. As cruentas desigualdades sociais. Surgem as perguntas proibidas. Vai-se adquirindo consciência e espaço, para que tudo se levante do chão. Um livro composto por 34 capítulos. No 17.º está a tortura e a morte de Germano Santos Vidigal. Germano, o nome que significa irmão, o homem da lança. Apesar de vencido, o sacrifício da sua vida indica o caminho. «Já o encontraram. Levam-no dois guardas, para onde quer que nos voltemos não se vê outra coisa, levam-no da praça, à saída da porta do setor seis juntam-se mais dois, e agora parece mesmo de propósito, é tudo a subir, como se estivéssemos a ver uma fita sobre a vida de Cristo, lá em cima é o calvário, estes são os centuriões de bota rija e guerreiro suor, levam as lanças engatilhadas, está um calor de sufocar, alto.»As mulheres são também chamadas à primeira linha das decisões neste belo romance de Saramago. O diálogo monossilábico entre marido e mulher da família Mau-Tempo vai-se alterando. Interessante observar uma narrativa que vai da submissão ao sentido de libertação, através de gerações."

---- Roteiro ----

1. Descrição "a paisagem" e os "soldados" criados para trabalhar a terra

2. Debaixo de chuva chegam a São Cristóvão. Marido, mulher e filho de colo, carroça e burro, duas arcas. Chove muito até à entrada de São Cristóvão. Pára a carroça e entra na taberna. Anuncia-se. Domingos Mau-Tempo, sapateiro. Vem com a família de Lavre e acaba de recolher a chave ma posse do taberneiro. Sara da Conceição sua mulher e mãe de João Mau-Tempo este de misteriosos olhos azuis


3. Fará 5 filhos e o seu destino será a forca perto de Monte Lavre. Laureano Carranca sogro que não aprovou o casamento de sua filha Sara com Domingos

4. Lamberto Horques Alemão, tornado alcaide-mor de Monte Lavre por Dom João I. Daqui poderão remontar os olhos azuis

5. Segundo filho Anselmo Mau-Tempo, e a caminho para Torre Gadanha e de seguida para Landeira. Desassossego que Sara da Conceição se atormenta. Filhos pequenos e tanta mudança


6. Padre Agamedes será o novo padrinho de João Mau-Tempo e compadre de Domingos Mau-Tempo. Da bebida de ambos na sacristia ao desentendimento. Sai a família de Landeira

7. Chega a República por telégrafo de terra em terra. A escassez, a fome, o jornal pago pelos senhores. Os filhos feitos. O latifúndio que não mudou da monarquia para a republica. Lamberto Horques e a sensação dos ventos insurrectos que o comandante da guarda fará por travar. Carregará o tenente Contente e seu esquadrão sobre os camponeses e os incitadores rebeldes


8. trinta e três foram apanhados mas só cinco, os cabecilhas vão prestas contas a Lisboa no Limoeiro

9. Os trabalhadores do norte que vêem às terras dos do sul trabalhar por menos e assim baixar a jorna deste. O feitor que manda chamar a guarda para malhar nos animais do sul

10. Landeira, Santana do Mato, Tarrafeiro e Afeiteira, paragens e outras viagens de Domingos Mau-Tempo e Sara da Conceição. Chega o terceiro filho, Domingos como o pai. Canha. João Mau-Tempo numa ida à fonte quase que morre afogado. Porrada do pai e a aflição da mãe.

11. Domingos Mau-Tempo fugiu de casa. Pede Sara a seu pai perdão e que a venha buscar. A Monte Lavre retorna. Domingos Mau-Tempo volta com pedido de desculpas e leva a família para Cortiçadas de Monte Lavre. Daqui para Ciborro. João Mau-Tempo já tem idade para ir à escola.


12. O episódio das noites de terça feira do homem que morava em Monte do Curral da Légua perto de Pedra Grande. De animais e lendas de lobisomens.

13. Domingos Mau-Tempo e os seus maus tratos e a bebida. A família que sofre pela vida e pelos tratos do pai. Fome e miséria. Domingos Mau-Tempo desapareceu e os próximos dois anos será maltês

14. Laureano Carranca pai de Sara recebe dois netos. Um predilecto porque lhe poderá dar algum proveito, José Nabiça, o outro João Mau-Tempo, filho de relação com um homem agora maltês era tratado como empecilho. Foi para as arrancas com o tio Joaquim Carranca. Trabalho duro mesmo para os homens quanto mais para uma criança.

15. Chega a Monte Lavre o anúncio de guerra na Europa.


16. Poderá ter Domingos Mau-Tempo aparecido nas Cortiçadas. Sara da Conceição foge para casa de uns parentes perto de Ponte Cava. Vem Domingos Mau-Tempo mais tarde pedir satisfações a José Picanço que lhe tinha dado asilo. Confronto entre homens e Domingos Mau-Tempo que volta costas à luta e segue, volta pelas costas de Monte Lavre até decidir enforcar-se.

17. Anda João Mau-Tempo com dez anos a cavar, perto da herdade Pedra Grande, por esmola. Depois na herdade de Norberto com Gregório Lameirão seu capataz para dar porrada pronta nos desgraçados. A família de Norberto aspirava a ir a Paris mal acabasse a guerra pela Europa e os mais novos já deixavam as terras de Lavre para vir morar para Lisboa.

18. De vez em quando chegam notícias das guerras, a da Europa e as de África. Poucos sabem ler em Monte Lavre, a guerra aqui é da fome e sobrevivência. Do czar deposto na Rússia e dos primeiros aviões na guerra.

19. Sara da Conceição e seu irmão juntaram-se em família de tios e primos.


20. Trabalho no Monte de Berra Portas, trabalho duro e mais porrada e fome. Soldada de miséria.

21. Morrerá Joaquim Carranca, assim ficou assim se foi.

22. João Mau-Tempo cresce, rapaz novo de trabalhos forçados. O de olho azul, bom bailador o que ajuda nos namoricos. Foi para a cortiça em Salvaterra de Magos. Chega à maioridade com a ida às sortes. Pode a tropa abrir as portas para a polícia ou a guarda em Lisboa. Nem uma nem outra, livrou-se com muito desgosto do serviço militar. Tem vinte anos.

23. De Augusto Pintéu, se contará como morreu na travessia de um pego com a suas mulas e carro nos lados do Pego da Carriça.

24. Foi João Mau-Tempo trabalhar para o monte Pendão das Mulheres entre Monte Lavre e Monte de Berra Portas, lá se irá enamorar de Faustina. A fama da família Mau-Tempo não lhes ajudará a que a família dela aceite a nova vida.

25. Lamberto e o seu feitor, o chicote para meter na linha os que para si trabalham. O seu feitor será considerado como Judas por trair os seus a troco de pouco mais e quanto mais trabalho lhe ls consiga arrancar mais próximo e considerado será.

26. O povo escravo e seus ofensores, a podridão e a fome.
A penúria, sempre a penúria. Os fiados de mercearia e as contas, sempre as contas


27. Dos trabalhos da carvoaria no Infantado. A visita às primas de Lisboa que trabalham no patrão Alberto.

28. João Mau-Tempo e Faustina, casados e três filhos. António o mais velho. Restantes são filhas. António guarda em pequeno os porcos e vai aprendendo as artes do trabalho da terra.

29. Alguém entra em casa com papel para assinar,  diz que é a favor dos nacionalistas espanhóis e contra os comunistas, em Évora e com transporte. João Mau-Tempo não pode recusar, este tal Requinta é dos que vai contar e ainda se arrisca a ter problemas. Não sabendo muito de política há dias descobriu uns papeis debaixo de uma pedra e que ficou para trás para ler.

30. Foram a Évora. Foros, Montemor, Santa Sofia e São Matias, o tal Requinta do recado segue como apoio ao evento. A praça de touros está cheia. Os vivas a Portugal e a Salazar contra os comunistas. Pelos espanhóis dos campos de Castela e Andaluzia. Pela igreja contra o perigo vermelho e ateu.


31. A debulhadora, máquina monstruosa que se alimenta de trigo. Da espiga sai o cereal para um lado e a palha para outro. Junto à máquina estão cinco homens. um mais velho e quatro rapazes. A violência do trabalho. A máquina mal consegue ser alimentada por estes homens. MANUEL ESPADA não aguenta mais e larga a máquina. Os três restantes acompanham-o. O feitor Anacleto acorre ao local por causa do silêncio. Vai à guarda fazer queixa e acusa-os de serem grevistas. Da guarda o tenente Contente pega nos seus homens e seguem até Monte Lavre para apanhar os grevistas. Daqui seguirão a Montemor onde apanharam um raspanete e por sorte lhes é perdoada ida a Lisboa prestar contas. Ficaram uns tempos sem trabalho até que episódio se foi desvanecendo

32. Sara da Conceição vive agora com o filho e nora. João Mau-Tempo e Faustina mais as duas netas, Gracinda e Amélia. Tem o pesadelo do marido que se enforcou na oliveira,  Domingos Mau-Tempo. Todas as noites sai de casa durante algum tempo, talvez para dar alguma privacidade ao casal. Um dia será apanhada louca e fora de si. De Lisboa, os familiares arranjam um lar em Rilhafoles para a receber. Morreu passado tempo.


33. A homilia do padre Agamedes e o elogio aos latifundiários e guardas que protegem o povo dos vermelhos. A organização e os papéis distribuídos às escondidas. João Mau-Tempo que é poucas missas duvida das palavras do padre. SIGISMUNDO CANASTRO aparece no adro. Ele que distribui "papéis" pergunta a João Mau-Tempo o que achou da missa.

34. António Mau-Tempo fez amizade com Manuel Espada, tem treze anos e aprende várias artes e trabalhos do campo. De terra em terra, virá a trabalho perto do mar na zona de Setúbal.

35. Histórias de malteses, do Zé Gato e sua quadrilha. Histórias de carnes e porcos roubados

36. Em Monte Lavre é tempo de ceifar. Na Europa terminada a II Guerra Mundial os ventos são de paz. As guerras agora são outras. Os homens não vão para o campo por menos de 33 escudos por dia, os feitores e capatazes não têm ordens para pagar mais que os 25 do ano passado. A Guarda que se apronta e o sermão habitual do padre Agamedes. Na praça reúnem de um lado os que exigem 33 escudos, do outro os feitores que não avançam dos 25, e em casa alguns que já cederam a este valor por necessidade e por vergonha agora se escondem.

37. Na praça o clima é tenso, Sigismundo Canastro apela à resistência, João Mau-Tempo desanima com os poucos que ficaram a lutar por melhor jorna. Vinte e dois homens reúnem-se na ribeira em Ponte Cava. Dali seguiriam pelas herdades a lutar por melhores jornas e mais apoiantes para se lhes juntarem nesta luta. Sigismundo Canastro e Manuel Espada e outros vão repetindo as mesmas palavras. Mais dinheiro que os patrões muito bem podem pagar mais. Mais se juntam e campos que param.

38. Vai o cabo Tacabo a casa de Humberto. Existem grevistas à solta a desestabilizar as terras. Os 22 que se encontraram e seguiram para junto das herdades estão identificados. Sigismundo Canastro, Manuel Espada e João Mau-Tempo e todos os outros estão presos no posto da guarda. Murmuram palavras de confiança e aguardam. Foram enviados para Montemor. Todos juntos num pátio à espera de serem interrogados. João Mau-Tempo e outros três são os primeiros. Tenente Contente e outro homem não fardado sentados à secretária. Começa o interrogatório. Os "aves" e outros papéis, a propaganda,  organização e nomes dos cabecilhas. Os quatro sao colocados cada um na sua sala para escreverem num caderno tudo o que sabem. Cada um coloca o seu nome e esperam pela pancada. Mais tarde são juntos aos restantes. João Mau-Tempo recebe inesperada visita. Padre Agamedes que tenta demovê-lo a denunciar dois indivíduos já referenciados, João Mau-Tempo resiste ao interrogatório sem dizer palavra. Na volta para o pátio passa pelos dois que quiseram que ele denunciasse. Afinal já estavam presos e muito mal tratados. Ele tinha passado esta provação. Vieram algumas famílias saber dos presos, vem também Faustina e as filhas Gracinda e Amélia. Manuel Espada há-de reparar e cumprimentar a irmã de António Mau-Tempo, a Gracinda. Hão-de sair de Montemor enamorados.


39. A praça de touros de Montemor está cheia de homens. Uns na arena presos. Outros de espingardas a guardá-los junto às bancadas. Germano Santos Vidigal foi apanhado e é levado por dois guardas. Numa sala igual à que amanhã João Mau-Tempo e os outros três escolhidos para denunciar um e outro cabecilha, está Germano Santos Vidigal a ser espancado por dois torturadores, Escarro e Escarrilho. Cospe sangue e dentes partidos, sons e dor mas não abrirá boca para qualquer denúncia. O chão ensanguentado tem a companhia de formigas, quando a maior passar por Germano Santos Vidigal ele tombará morto. Os guardas encontrarão forma de simular o enforcamento do torturado para que conste na certidão de óbito.

40. Episódios de penúria e esmolas da dona Clemência às quartas e sábados, quando dá uns feijões e umas fatias de toucinho às crianças. O bem que sente fazer e a sua alma que rejuvenesce nestes dias. Não dar esmola todos os dias será o seu cilício e também para não habituar mal as crianças que devem sofrer desde cedo para saber o que custa a vida.

41. Episódios da criação de filhos. João Mau-Tempo e Faustina, os filhos, António que tem o hábito de andar longe nos trabalhos, Gracinda que espera poder ter dote para casar e já irá a saber ler pela cartilha de João de Deus, Manuel Espada que já vai passando da entrada da porta e Amélia a mais nova que vai vivendo

42. António Mau-Tempo em breve será recruta e por ano e meio estará na tropa.


43. Novembro posto. Sigismundo Canastro sai de casa antes casa antes do sol levantar, deixa Joana Canastro, o mesmo acontecerá a Faustina e filhas que irão ver João Mau-Tempo, agora com 42 anos, sair sem saber para onde. Terra Fria é o local de destino. O Silva vai de bicicleta, que a deixará escondida. Será o terceiro a chegar e percebe-se que tem papel importante no encontro. Virão Francisco Petinga e João dos Santos. São camaradas, não há nomes por segurança, tal como as boinas não serão colocadas de copa para baixo para os nomes possam ser vistos. O Silva entregará "papéis", desta vez João Mau-Tempo ajudará Sigismundo talvez por ser novo nestas andanças. Falam dos patrões e da fome.

44. Manuel Espada e Gracinda Mau-Tempo casaram, ele com vinte e sete anos ela com vinte. As palavras do padre Agamedes e o tropa António Mau-Tempo que conseguiu chegar mesmo nas últimas para assistir ao casamento da irmã.

45. A boda e seu cerimonial, pouco abastada mas com direito a discursos. Padre Agamedes que de palavras lembra os grevistas que salvou, o desagrado destas palavras que António Mau-Tempo fez calar na boca do padre. As histórias deste militar, o levantamento de rancho que levou o pelotão para a formatura e sob ameaça de metralhadoras queriam os oficiais obriga-los a comer a comida que nem os porcos comeriam. Depois foi a vez de Sigismundo Canastro contar outra história, a do cão Constante que ia com ele à caça da perdiz e lá ficou um dia

46. Vai o guarda José Calmedo a Monte Lavre buscar João Mau-Tempo para ser testemunha de um caso de roubo de uns molhos de grãos. Diligência a ser tratada rapidamente no posto da guarda. O inquiridor ser o cabo Tacabo que de pronto lhe dá a ordem de prisão vinda de Vendas Novas por ser comunista. Chegado ao posto de Vendas Novas sabe que irá para Lisboa. Uma noite em claro na cela, a viagem de comboio, o barco e as ruas da capital. Chegado ao edifício e colocado num último andar, passado um dia seguirá para a prisão de Caxias onde fica 25 dias. De volta tem o inspector Paveia à espera e começa a luta. Setenta e duas horas de estátua e torturas. Espancado sem mais não.


47. Na sala ao lado, outro com igual sorte. Pergunta o inspector Paveia se João Mau-Tempo tem algo a dizer. É remetido para o Aljube, enquanto descansa uns dias e recupera para outra carga de porrada. Está quase morto, passa 48 horas sem se mexer. Passaram 5 dias na solitária e depois passou para a parte comunitária. O tabaco que havendo para um há para todos.

48. Voltou ao Terreiro do Paço para prestar declarações, de volta ao Aljube e depois a Caxias. Virá Faustina Mau-Tempo de Monte Lavre e sua comadre a encaminhará até à prisão de Caxias. Estamos em Agosto. Falha a hora de visita e por muito pouco lhes concedem 5 minutos. João Mau-Tempo terá outras visitas, entre elas as filhas, Gracinda e Amélia, o filho António e o genro Manuel Espada .


49. Passam os meses e está esquecido na prisão sem saber se para sempre. Saberá que Albuquerque seu suposto delator estava preso, assim como Sigismundo Canastro. Faz 6 meses e chega o dia da libertação. É posto fora, rápido e assim sem mais nem menos. De noite fria é João Mau-Tempo um homem perdido e abandonado em Lisboa. Terá o episódio de um homem que lhe dará apoio e guarida por uma noite. Ricardo Reis e Ermelinda sua esposa abrem a porta de casa, uma sopa quente e vinho, dormirá na cama do casal.

50. Chegará João Mau-Tempo a Monte Lavre e de seguida com a filha Amélia seguirão para Elvas. Serão 16 semanas nos arrozais, as febres e bicho de toda a ordem, será quase um campo de morte. Manuel Espada estará na cortiça que bem maneja o machado.

51. Os episódios dos senhores que iam aos tiros e tinham as suas ordens um lacaio que subia e descia montes a carregar um bidon que serviria de alvo, ou dos senhores que entregavam as terras para serem cultivadas e por se situarem perto de cursos de água retinham a porção das terras que dariam acesso à água para aceder ao regadio. E outras histórias de guardas que servem para proteger os latifúndios dos miseráveis esfomeados, ou daquela vez que Adalberto em passeio viu alguém nas suas terras no pastoreio de seiscentas ovelha e foi depressa chamar o cabo Tacabo ao que se veio a descobrir que o pastor era seu empregado, vergonha que se disfarçou com umas doações.


52. António Mau-Tempo e as histórias de espingardas e caçadas aos coelhos, sem mulher ou filhos seguiu para França onde o trabalho dava muito mais dinheiro e fama de rico para quem lá ia, mas que desconhecia a escravatura e o racismo para com estes estrangeiros que procuravam os trabalhos da apanha da beterraba. Voltará aos trabalhos por Monte Lavre, andará no campo com Manuel Espada e sua irmã Gracinda, grávida agora. Seguirá António Mau-Tempo para outro trabalho findo este. Manuel Espada e Gracinda Mau-Tempo ficarão. Ela terá uma filha, Maria Adelaide e sua mãe Faustina e Belisária uma velha aparadeira ajudarão ao parto.
O avô João Mau-Tempo, depois o tio António Mau-Tempo e só por fim, Manuel Espada que chega de longe e logo se despede para chegar antes do sol levantar, são as principais visitas de Maria Adelaide, menina de olhos azuis herdados do bisavô ou de histórias com quinhentos anos.

53. Tempo de eleições e o general Humberto Delgado que tinha ameaçado demitir Salazar, que outras artes a não permitiram, levou a que no latifúndio de Norberto a campanha da seara fosse mandada ficar em terra sem dar trabalho a estes homens. Foi lição para aprenderem a não apoiar quem não deviam. Outra vez e sempre o padre Agamedes apoiava estes senhores feitores, guardas e latifundiários. O povo esse serve para sofrer e ser castigado, sempre porque sim para não ficar mal acostumado. O povo se junta e vê perder a temporada de trabalho.


54. Sigismundo Canastro conversa com João Mau-Tempo e António Mau-Tempo e depois com Manuel Espada. Aprontam ida à câmara de Montemor pedir trabalho em manifestação. Vão-se juntando de vários lugares estas gentes para clamar o trabalho de pouco dinheiro. Do alto do castelo as famílias abastadas assistem aos manifestantes. A guarda, a pé ou a cavalo, com espingardas ou espada preparam-se para carregar forte e feio. Teme-se o pior.

55. Lançam os cavalos e suas parelhas montadas investindo contra os manifestantes, são lançadas pedras mas pouca mossa farão. De espada em riste, acertando em fio de lâmina ou de chapada, o vinte e três de Junho ficará marcado na história deste país. Os que estão a pé carregam a rajadas de metralhadora. Duas para o ar e a terceira para matar. Três corpos no chão, um que se levanta agarrado ao braço, outro que rasteja e o terceiro que não se mexe. Foi abatido, José Adelino dos Santos, disseram que era ali de Montemor. Das muralhas do castelo, os senhores das terras gritam para os matar sem piedade.


56. Chegará à beira do cadáver de José Adelino dos Santos o doutor Cordo. O formalismo do óbito tem de ser cumprido. Aparecerá Leandro Leandres dando nota a que o morto não estará morto aos olhos dos superiores interesses e que deverá ir para Lisboa com a maior urgência. Não cede o doutor Cordo que trata de feridos e doentes, acompanhar mortos não será de sua competência. Leandro Leandres responde à competência médica com a ameaça do regime. Dos que vieram de Monte Lavre ficou António Mau-Tempo em Montemor, por muito que lhe tivessem pedido tinha um episódio para cumprir, o das pedras que caíram nessa noite no telhado e janelas do posto da guarda. Passadas as primeiras horas da noite lá chegou a casa.

57. O latifúndio como um mar de fome e gente que não conhece outra coisa. De Peniche alguém que saltou o muro e houve fuga do forte prisional.  E houve também revoltas no navio Santa Maria. Dona Clemência muito se preocupa, o seu sossego que nunca teve acabou e o padre Agamedes que a oiça. Também a guerra em África e os pretos que se rebelam. Também se perdem as Índias de Goa, Damão e Diu. Dona Clemência preocupada com o que será destes novos ventos que cheiram a comunistas. Ano novo será ano bom nas palavras de dona Clemência. Continuam a chegar notícias de actos revoltosos, agora em Beja o quartel de infantaria três foi assaltado.

58. O homem como máquina parida e tratada o quanto baste para dar produção no latifúndio, e quando gasta ou avariada será substituída por outra. Assim ficarão os cemitérios cheios de velhos de pouca idade mas mortos pelo trabalho. Correm pelos latifúndios uma voz inconformada exigindo em surdina as 8 horas de trabalho. Os patrões revoltados contra estes mandriões operários do campo que querem trabalhar só 8 horas, dormir outras tantas e ainda ficar com 8 de sobra para gastarem o tempo a beber nas tabernas e a dar porrada nas mulheres e filhos.
A guarda foi reforçada em todos os lugares e agora aprumam a caça aos comunistas e aos papéis e "aves" deixados de propósito ou de armadilha para apanhar mais uns curiosos.

59. Pelos montes e descampados, nas casas de uns e de outros se reúnem e discutem o que fazer. As oito horas de trabalho, os quarenta escudos da jorna, e alguém que fala da dignidade humana, do episódio do pai e filho que foram apanhar bolotas por nada mais terem que comer e a guarda que os apanhou, a humilhação que aqueles guardas obrigaram a que pai e filho brigassem caso contrário apanhariam mais porrada no posto. Cheira subversão à guarda e ela aí está em peso.

60. Chega o dia de apresentar revolução no latifúndio. Nesse dia não foi de sol a sol, chegaram às oito horas e pegaram. Na herdade onde está Manuel Espada é ele que fala. Norberto ameaça que ali é trabalhar enquanto há sol. Todos voltarão à praça onde estão reunidos como que num plenário já previamente agendado. Será o cabo Tacabo que vem à frente questionar os grevistas. Quantos dias sem receber? Quantos dias resistem os latifúndios? E os fiados e atrasados quem e como se pagam?


61. João Mau-Tempo esteve dois meses no hospital em Montemor, veio para casa morrer. Morre com a família perto. Não está a Maria da Conceição que ainda serve os patrões em Lisboa, o irmão Anselmo que está para o norte e não se sabe dele, a filha Amélia que serve em Montemor e muito ajudo quando o pai esteve no hospital. Estão todos os que deveriam estar e não poderia faltar a neta Maria Adelaide, tem dezassete anos e se despedirá do seu avô que morreu nesta noite junto dos seus aos setenta e sete.

62. Maria Adelaide está na vinha em Pegões, já tem dezanove anos, para lá foi com oa vizinhos Geraldos para estes trabalhos. Vai a tarde passando e alguém fala de tropas em Lisboa. Maria Adelaide está alerta mas ali no meio do nada, tal como a notícia chegou assim se foi em pouca informação. Ainda no mês anterior se tinha ouvido falar de coisa parecida aquando da rebelião das Caldas da Rainha. Acabou a tarde e a revolução em Lisboa não chegou a Pegões. Noite alta no acampamento onde estes camponeses se juntam já se sabem as novidades do que se passa em Lisboa. Acabou o que se sabe e não se sabe ainda o que aí vem. Os Geraldos e Maria Adelaide seguem no dia seguinte para Monte Lavre. Apanhada a camioneta que por sorte trás lugares livres. Muito do que se fala ainda é especulação, caiu o Tomás e o Marcelo e agora duvidam que junta seja nome de novo governo.

63. Entram em Vendas Novas e há festa. A tropa está na rua em parada. Maria Adelaide sente uma luz nova e parece que acorda e percebe o que o pai, Manuel Espada fazia em ausências não justificadas e também sem necessidade de as explicar à família. Segredos e cumplicidades. Estão por estas horas muito preocupados os senhores latifundiários, está também a guarda que não servia para cuidar do povo, e o padre Agamedes que nem sim nem não dirá algo sobre a revolução antes que superiormente alguém dê uma directiva.



64. Vem aí o primeiro de Maio, livre e às claras sem problemas com a guarda. Passou o Abril e Maio em tempos de estranha liberdade. Mas os temores são sempre os mesmos e não desapareceram, não há trabalho e os mesmos latifundiários que outrora tornaram escravos esta gente, continuam sorrateiramente a pôr e dispor. As searas estão no chão e com as primeiras chuvas teriam que fazer as sementeiras. O que havia em condições de colher foi destruído pelos senhores. E a fome continua.

65. Quem tem continua a poder, seja enviando os dinheiros para o estrangeiro ou escondendo nos automóveis que os levam para depósito seguro. As fronteiras fecham agora os olhos ao contrabando

66. Vem o primeiro inverno depois de Abril igual a tantos outros. A mesma fome e miséria. Começam as terras a serem ocupadas pelos trabalhadores. Os horrores que sente dona Clemência porque estas gentes estão a profanar as terras dos seus antepassados.


67. Foram-se juntando. Manuel Espada e Sigismundo Canastro, António Mau-Tempo e outros mais em assembleia e decidiram nomear Manuel Espada porta voz, andaram duas semanas a avaliar a situação pelas herdades e deitaram comunicado para que todos os trabalhadores se juntassem no dia seguinte na herdade das Mantas. De todo o lado chegam máquinas e tractores com atrelados, uns a pé e outros montados nestas máquinas. Da herdade das Mantas seguem para outras, engrossam a coluna mais e mais. É a revolução no campo. São feitas as ocupações e respectivos inventários das existências e materiais. Esta gente não rouba e a guarda não sai do quartel.

68. Neste dia levantado, seguem os vivos e também os mortos. Todos os que a fome neste Alentejo sofreram. E também o cão Constante.