Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 9 de março de 2016

Imagem de apoio à divulgação do blog


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"A Jangada de Pedra" no dia em que a península parou

Formação rochosa, rasgada com enseada de acesso ao mar
Cabo Espichel (Sesimbra - Portugal) - Fotografia Helena Mesquita

(...) "A península parou. Os viajantes descansarão aqui este dia, a noite e a manhã seguinte. Chove quando vão partir. Chamaram o cão, que durante todas estas horas não se afastou da cova, mas ele não foi, É o costume, disse José Anaiço, os cães resistem a separar-se do dono, às vezes deixam-se morrer. Enganava-se. O cão Ardent olhou José Anaiço, depois afastou-se lentamente, de cabeça baixa. Não o tornaram a ver. A viagem continua. Roque Lozano ficará em Zufre, irá bater à porta de sua casa, Voltei, é a sua história, alguém há-de querer contá-la um dia. Os homens e as mulheres, estes seguirão o seu caminho, que futuro, que tempo, que destino. A vara de negrilho está verde. talvez floresça no ano que vem."

in, "A Jangada de Pedra"
Caminho, 6.ª edição - Página 330

"A esquerda explicada" Texto de José Saramago publicado em "Cadernos de Lanzarote Diário IV" (15/01/1996)

"José Saramago e Jorge Sampaio num acto da campanha de 1989"

15 de Janeiro (de 1996)
«A esquerda explicada». Assim chamei ao artigo, interrompido não sei quantas vezes por chamadas de Madrid a reclamá-lo com desesperadora urgência. Não sei se os leitores vão realmente encontrar a esquerda explicada. Por mim, penso que esta será uma maneira tão boa como outra de dizer o que a esquerda é: 
«Certamente são muito poucos os espanhóis que têm notícia de ter havido em Portugal, há mais de trinta anos, precisamente em 1962, um vasto movimento de protesto e reivindicação estudantil, de que a Universidade de Lisboa foi um dos principais focos. Menos ainda serão os que ouviram falar da existência, naquela época, entre o corpo docente da Universidade, de um professor que se chamava Luís Filipe Lindley Cintra, filólogo. E não há com certeza um só espanhol que tenha conhecimento de que o secretário-geral do órgão coordenador das diversas associações académicas era então um jovem licenciado em Direito, de 23 anos, chamado Jorge Sampaio. Para entender o que vem a seguir, seria preciso começar por saber isto. Aí fica, pois. 
«Não estarei a caluniar ninguém se disser que, naqueles tempos, quando o fascismo português começou a receber os primeiros golpes duros (o assalto ao navio Santa Maria, o começo da luta independentista de Angola, a invasão de Goa pelas tropas indianas), os eméritos catedráticos da Universidade não eram propriamente pessoas que se distinguissem por cultivar fortes ideais de progresso e manifestar pública ou privadamente insofridas ânsias de liberdade. Digamos que o contrário esteve sempre muito mais perto da verdade. Haveria algumas discretas excepções, e uma ou outra aberta e declarada, como foi o caso do professor Lindley Cintra, que, corajosamente, tomou o partido do movimento estudantil universitário. A gratidão dos estudantes de Direito levou-os, nesses dias, a oferecer ao professor Cintra uma pintura, um quadro em cujo verso, usando as palavras mais simples, sem retórica revolucionária ou qualquer outra, expressaram o respeito e a admiração que ele lhes merecia. 
«Passaram trinta e quatro anos. Dois filhos que o professor tinha, cresceram e tornaram-se homens (um deles, Luís Miguel Cintra, é hoje, sem dúvida, o maior actor português), há poucos anos a morte levou o professor Lindley, o quadro que tinha sido oferecido pelos estudantes de Direito, em 1962, ficou, sem o saber, à espera da segunda parte do seu destino. Que principiou há três dias: depois de obtido o consentimento e a aprovação de seu irmão, Luís Miguel Cintra procurou Jorge Sampaio para lhe entregar o quadro. Trinta e quatro anos depois, a pintura voltou às mãos que primeiro lhe tinham tocado.


«É isto suficiente para explicar a esquerda? Um leitor dirá que sim, outro dirá que não. Contemos então mais unia história, esta brevíssima. No domingo, Jorge Sampaio, já presidente eleito da República Portuguesa, teve de responder, em conferência de imprensa, a uma pergunta impertinente e mal-intencionada de uma jornalista, que quis saber que ia ele fazer agora do cartão de militante do Partido Socialista, uma vez que havia afirmado que seria o presidente de todos os Portugueses. A resposta de Sampaio foi esta: "Não é preciso entregar o cartão partidário para ser isento e responsável na mais alta magistratura do Estado." Não tenho a certeza de que a jovem aprendiza de jornalismo tenha compreendido bem aquilo que ouviu. Habituada ao espectáculo quotidiano de um exercício demagógico da política, esperaria provavelmente ouvir de Jorge Sampaio uma tirada grandiloquente sobre os deveres das altas funções em que vai ser investido, esperaria provavelmente que ele aproveitasse a ocasião para anunciar a sua retirada do partido, a fim de que no espírito dos cidadãos não pudesse perdurar qualquer dúvida sobre a futura imparcialidade das suas decisões. O que Jorge Sampaio disse, afinal, foi que o espírito, a inteligência e a sensibilidade não se definem e exercem por causa de um cartão de partido, mas que estão na cabeça e no coração, e que a coerência das ideias, o respeito pelos princípios e a isenção dos juízos não se tornaram mais sólidos pelo facto de se ter devolvido um documento que é muito mais do que a simples prova burocrática duma filiação partidária, porque é o sinal de um sentido de vida, se, quem a ele entendeu não dever renunciar, também não renunciou a si mesmo. Jorge Sampaio é esse.» 

in, "Cadernos de Lanzarote - Diário IV"
Caminho, páginas 23 a 25 (15/01/1996)

Lutas académicas na Universidade de Lisboa
Dia do Estudante (24 de Março de 1962)

No dia em que novo Presidente da República toma posse...



11 de Outubro (de 1995)
"Cavaco Silva saiu do PSD e anunciou a sua candidatura à presidência da República. Para não escapar ao nariz-de-cera de qualquer candidato, tanto dos passado como dos futuros, já foi prometendo que será «o presidente de todos os portugueses». Como quem diz «O que lá vai, lá vai.» Se Portugal não perdeu de todo a vergonha, este homem inculto e autoritário nunca será presidente da República. Mas se, por um absurda viesse a ser, presidente «meu» é que ele não seria, fossem quais fossem as circunstâncias. Em tal caso, exigiria simplesmente dos serviços de secretaria de Belém que retirassem o meu nome dos ficheiros que lá têm. Não quereria ter de vir a recusar a saudação a um presidente que foi primeiro-ministro do governo que exerceu censura sobre um livro. Não cabe nas minhas forças evitar a existência dos «dráculas», mas nada poderá obrigar-me a apertar-lhes a mão." 
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, página 174 (11/10/1995)